10 ANOS - Dom Bosco

EOS
ISSN 1980 - 7430
REVISTA JURÍDICA DA FACULDADE DE DIREITO - v. 1, n. 12, Ano 7 (jan./jul. 2015)
EDIÇÃO EM COMEMORAÇÃO AOS
10 ANOS
DO CURSO DE DIREITO
EOS
EOS — Revista Jurídica da Faculdade de Direito / Faculdade Dom Bosco. Núcleo
de Pesquisa do Curso de Direito. — v. 1, n. 12, Ano 7 (jan./jul. 2015) —
Curitiba: Dom Bosco, 2015. Semestral.
ISSN 1980 - 7430
1. Direito — Periódicos. I. Faculdade Dom Bosco. Núcleo de Pesquisa do
Curso de Direito.
CDD 3
EOS - REVISTA JURÍDICA DA FACULDADE DE
DIREITO
ISSN 1980—7430
PRESIDENTE DO SISTEMA EDUCACIONAL
BRASILEIRO — SEB
Chaim Zaher
VICE - PRESIDENTE DO SISTEMA EDUCACIONAL
BRASILEIRO — SEB
Adriana Baptiston Cefali Zaher
DIRETOR GERAL DA FACULDADE DOM BOSCO
Ary de Oliveira Filho
COORDENADORA ACADÊMICA DA FACULDADE
DOM BOSCO
Sueli Zimermann
COORDENADOR DO CURSO DE DIREITO
Prof. Me. Robson Luiz Santiago
Prof. Dr. Jeferson Teodorovicz
Prof. Me. José Maurino
Profª. Me. Juliana Montenegro
Profª. Me. Juliana Leite Ferreira Cabral
Profª. Me. Karime Smaka Barbosa Rodrigues
Profª. Esp. Kelly Pauline Baran
Profª. Me. Lediane Ramo Fernandes Silva
Profª. Me. Lijeane Cristina Pereira Santos
Prof. Me. Luis Alberto Coelho
Prof. Me. Luiz Gustavo Braga
Profª. Me. Mara Angelita Nestor Ferreira
Prof. Me. Marco Aurélio Schilichta
Profª. Esp. Margareth Macedo
Prof. Dr. Maurilucio Souza
Prof. Me. Michel Knolseinsen
Profª. Me. Paola Nery Ferrari
Prof. Me. Rafael dos Santos Pinto
Profª. Me. Rebeca Fernandes Dias
Prof. Me. Robson Luiz Santiago
Prof. Me. Rogério Born
Prof. Me. Rodney Caetano
COMISSÃO EDITORIAL
Prof. Dr. Marcelo Miguel Conrado (Fac. Dom Bosco / UFPR
Profª. Me. Maria Cristina Leite Gomes (Fac. Dom Bosco)
Profª. Me. Michelle Chalbaud Biscaia Hartmann (Fac. Dom
Bosco)
COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA Profª. Dra. Sarah Linhares (Fac. Dom Bosco)
Prof. Dr. Adriano Correia da Silva (UFG)
Prof. Me. Adriano Barbosa
Prof. Dr. Aloísio Surgik (UNICURITIBA)
Profa. Dra. Ana Paula Myszczuk (UTFPR)
COORDENADORA DO NÚCLEO DE MONOGRAFIA
Prof. Dr. Bortolo Valle (PUC-PR)
DO CURSO DE DIREITO
Profa. Dra. Clarissa Bueno Wandscheer (UP/FAMEC)
Profª. Me. Michelle Chalbaud Biscaia Hartmann
Profa. Dra. Gisela Maria Bester (Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária)
COORDENADORA DO NÚCLEO DE PESQUISA DA
Prof. Dr. Ignacio Ara Pinilla (UNIVERSIDAD DE LA LAGUNA)
FACULDADE DOM BOSCO
Profa. Dra. Katya Isaguirre Torres (UFPR)
Profª. Drª Marcela Lima Cardoso Selow
Prof. Dr. Marcus Paulo Rycembel Boeira (UFRGS)
Profa. Dra. Maria Berenice Dias (IBDFAM)
COORDENADORA DA REVISTA CIENTÍFICA DO
Profa. Dra. Regina Nery
CURSO DE DIREITO — EOS
Prof. Dr. Ricardo Franco Pinto (UNIVERSIDAD DE LEON /
Profª. Me. Maria Cristina Leite Gomes
Tribunal Penal Internacional)
Profa. Dra. Rosalice Fidalgo Pinheiro (UNIBRASIL)
COMISSÃO CIENTÍFICA
Prof. Dr. Walter Guandalini Junior (UFPR)
PROFESSORES DO CURSO DE DIREITO DA FACULDADE
Prof. Dr. Zulmar Antonio Fachin (PUC-PR)
DOM BOSCO
Prof. Me. Adriano Barbosa
REVISÃO
Profª. Me. Ana Beatriz Ribeiro
Noemia Panke
Profª. Dra. Ana Cristina Zadra Valadares
Profª. Me. Breezy Miyazaki Vizen Ferreira
DIAGRAMAÇÃO
Profª. Dra. Carolina dos Anjos Borba
Priscila Zimermann
Profª. Me. Carolina Fátima Alves
Prof. Me. Cassiano Luiz Iurk
EDITORA DA REVISTA - CORRESPONDÊNCIA
Prof. Me. Cristiano Dionísio
Faculdade Dom Bosco
Profª. Me. Denise Cristina Brezezinski
Coordenação do Núcleo de Pesquisa
Prof. Me. Elton Baiocco
Campus Marumby
Prof. Me. Evandro Limongi Marques de Abreu
Av. Wenceslau Braz, 1172 – Guaíra 81010-000
Prof. Me. Guilherme Helfenberger Galino Cassi
Telefone: 41 3213-5200
Prof. Me. Guilherme Rittel
E-mail: [email protected]
Prof. Me. Henrique Brunini
COORDENADORAS ADJUNTAS DO CURSO DE
DIREITO
Profª. Me. Michelle Chalbaud Biscaia Hartmann
Profª. Me. Mara Angelita Nestor Ferreira
EOS
APRESENTAÇÃO
É com muita satisfação que apresentamos esta edição comemorativa dos dez anos do curso de Direito da Faculdade Dom Bosco – Curitiba. Durante o transcurso destes dez anos, o curso
sempre esteve preocupado com a formação crítica de seus acadêmicos e buscou impregnar na
cultura acadêmica a autogestão do processo de conhecimento.
Nos últimos anos, vocacionou-se ao incentivo à pesquisa com a implementação de iniciação científica curricular, grupos de pesquisa alinhados com as áreas de pesquisa institucionais
(direitos humanos e cidadania, vida urbana), bem como pela constante aproximação dos conteúdos programáticos ministrados em sala de aula, com as práticas jurídicas.
Desta forma, o curso procura desenvolver no acadêmico a habilidade de aproximação
constante da teoria (o antes) e da prática (o depois), bem como a investigação científica dos problemas jurídicos e suas possíveis soluções para a vida contemporânea.
Esta é uma das habilidades que entendemos como primordiais para aproximar o nosso
acadêmico do mercado de trabalho. Pois, tal como afirma Tolstói, a sabedoria com as coisas da
vida não consiste em saber o que é preciso, mas em saber o que é preciso fazer antes e o que fazer
depois.
Com o compromisso de solidificar a produção jurídica dos últimos anos é que se lança,
excepcionalmente, a título comemorativo, este edição impressa da Revista EOS. A revista é fruto
da dedicação, esforço, profissionalismo e competência de todo o corpo editorial que com toda a
qualidade e rigor científico, semestralmente, concretizam a sua edição online.
Robson Luiz Santiago
Mara Angelita Nestor Ferreira
Michelle Chalbaud Biscaia Hartmann
EOS
SUMÁRIO
MEMBROS EXTERNOS
Artigo 1
1 UN ANÁLISIS JURIDICO-HISTORICO DEL CRIMEN
DE GUERRA DE AGRESION EN EL TRIBUNAL
INTERNACIONAL DE TOKIO
08
Gutenberg Alves Fortaleza Teixeira
23
Artigo 2
TRADIÇÃO E MULTICULTURALISMO: O PAPEL
CIVILIZATÓRIO DO ESTADO CONSTITUCIONAL NO
INTERCÂMBIO CULTURAL
Marcus Paulo Rycembel Boeira
MEMBROS INTERNOS
Artigo 3
QUESTÃO FUNDIÁRIA: POSSE TRADICIONAL E
PROPRIEDADE PRIVADA DA TERRA, ENTRE BRASIL E
CABO VERDE.
52
Carolina dos Anjos de Borba
Artigo 4
CONTRATAÇÕES NA SOCIEDADEDE CONSUMO E
TECNOLOGIA: FUNÇÃOSOCIAL DO CONTRATO EBOAFÉ OBJETIVA
Carolina Fátima de Souza Alves
Antonio Carlos Efing
Artigo 5
DIREITO À EDUCAÇÃO COMO DIREITO DA
PERSONALIDADE
Cristiano Dionísio
6
39
68
82
Artigo 6
PRINCÍPIOS PROCESSUAIS: UMA VISÃO REMODELADA
A PARTIR DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA
INFORMAÇÃO
Elton Baiocco
Artigo 7
A PROTEÇÃO AO TRABALHO ENQUANTO DIREITO
FUNDAMENTAL E O PODER POTESTATIVO DE
DISPENSA DO EMPREGADOR
108
96
Kelly Pauline Baran
Artigo 8
A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR
AÉREO: UMA BREVE ANÁLISE SOB O ASPECTO DO
CONFLITO DE NORMAS.
Luiz Gustavo Thadeo Braga
Artigo 9
REFLEXÕES A PARTIR DO “CONCEITO DE POLÍTICO”
Mara Angelita Nestor Ferreira
140
126
RESENHAS
Resenha
DIREITO E PSICANÁLISE: DIÁLOGO NECESSÁRIO
Lijeane Cristina Pereira Santos
7
Artigo 1
UN ANÁLISIS JURIDICO-HISTORICO
DEL CRIMEN DE GUERRA DE AGRESION
EN EL TRIBUNAL INTERNACIONAL DE
TOKIO11
Gutenberg Alves Fortaleza Teixeira2
Resumo:
Este artigo busca analisar como foi tratado o crime de guerra de agressão, também conhecido
como crime contra a paz, no Tribunal para o Extremo Oriente em Tóquio. Partindo dos
primeiros passos para para estreitar o entendimento de julgar indivíduos para iniciar uma
guerra agressiva até o entendimento atual do que se tem hoje para o significado desde
julgamento na sociedade japonesa.
Palavras-Chave: Crime; guerra; agressão; julgamento.
Abstract:
This paper analyzes was treated as the war crime of aggression, also known as a crime
against peace, in the Tribunal for the Far East in Tokyo. Taking the first steps to realize
the understanding to judge individuals to begin an aggressive war up to the current
understanding we have today which meant that judgment in Japanese society.
Keywords:
Crime; war; aggression; trial.
1 Como la idea de juzgar individuos por el crimen de guerra de agresión llega a
Nuremberg
Después de la consolidación de las potencias que iban a salir victoriosas de la II Grande
Guerra Mundial, se tuvo el entendimiento de que sus sistemas penales podrían resultar también
útiles a sus políticas exteriores y de guerra. Si ante la agresión podían hacer la guerra a otro país
y reducirlo a cenizas, parecía posible también aplicar a las autoridades del país enemigo los efectos del poder punitivo para reprimir y prevenir agresiones futuras. Esta idea se hizo realidad en
Nuremberg y Tokio (Pastor, 2006: 25).
Estos dos Tribunales Militares Internacionales funcionaron con éxito después de la Segunda Guerra Mundial. Es cierto que fueron establecidos por los vencedores de la guerra pero
la experiencia nos enseñó la viabilidad de la creación de tribunales internacionales (Dinstein y
Tambory, 1996:15).
Este trabajo fue realizado en el periodo de vigencia de la tutela académica de tesis doctoral, en el Programa de Responsabilidad Jurídica: perspectiva multidisciplinar, Universidad de León, España.
2
Doctorando en el Programa de Responsabilidad Jurídica: perspectiva multidisciplinar, Universidad de León, España. Email:
[email protected]
1
8
UN ANÁLISIS JURIDICO-HISTORICO DEL CRIMEN DE GUERRA DE
AGRESION EN EL TRIBUNAL INTERNACIONAL DE TOKIO
Históricamente, la cuestión de la responsabilidad individual por el crimen de agresión
empezó a concretarse al 30 de octubre de 1943, en la Conferencia Tripartita de Moscú, donde
EEUU, Gran Bretaña y la URSS, dictaron una declaración para la punición de los criminales de
guerra que al final del conflicto iban a ser conducidos a un sitio apropiado para su castigo de
acuerdo con la voluntad conjunta de los países aliados (Andrés Domínguez, 2006:58). Así que
el proceso para juzgar a los autores de la Segunda Guerra Mundial ya había empezado cuando
la misma estaba todavía en curso y durante 1943 y 1944, los escritores académicos y gobiernos
aliados examinaron la cuestión de la posible responsabilidad penal individual por el crimen de
agresión (Kemp, 2010:82).
En la Conferencia de Londres de 1945, Francia, la Unión Soviética, los Estados Unidos y
el Reino Unido acordaron crear un Tribunal Militar Internacional para juzgar personas por el
crimen de emprender una guerra agresiva (Wynen Thomas y Thomas, 1972:20).
A pesar de que las cuatro partes estaban de acuerdo que debería haber responsabilidad
penal y sanción a los responsables de esa guerra, ellos diferían en su respuesta a la cuestión de
la criminalidad de la guerra agresiva y la base legal de la pena de sus autores (Rifaat, 1979:144).
La URSS por ejemplo, creía que el propósito se limitaba a determinar el castigo que había de imponerse a los acusados lo que era inaceptable para los Estados Unidos. Además las
diferencias entre la ley civil de Francia y URSS y las contrapartes de common-law (Reino Unido y
Estados Unidos) sobre los procedimientos adecuados para juicio también causaron dificultades
(Cryer at al, 2010:111).
Los EE.UU. entendían que la guerra de agresión era un crimen internacional que implicaba la responsabilidad penal de sus autores e insistieron en que el Estatuto del Tribunal debería
incluirse una declaración universal sobre los crímenes específicos de la guerra, sus perpetradores e instigadores los cuales tenían responsabilidad penal (Rifaat, 1979:144) en cuanto que
Francia quería que la disposiciones sobre la agresión estuviesen vinculadas a las violaciones de los
tratados y otros instrumentos internacionales para evitar problemas de aplicación retroactiva del
derecho penal. Además las referencias a violaciones de los tratados también aliviaban a los redactores de tener que definir la agresión (Kemp, 2010:83).
Francia sugirió que el castigo de los líderes podía justificarse legalmente en el Derecho
internacional si se basan en la conducta criminal de la guerra, pero no en la criminalidad de la
guerra en sí misma. Su argumento era que a pesar de la guerra de agresión ser ilegal porque se
trata de una guerra en violación de las leyes y tratados internacionales, no es un crimen bajo el
Derecho Internacional vigente. Por lo tanto, no había sanciones penales que podrían ser atribuidas a los Estados por hacerlo y tampoco a las personas (Rifaat, 1979:145). Sin embargo, los
E.E.U.U. insistieron que el lanzamiento de una guerra de agresión se debería cargar como un
acto criminal y el crimen de agresión debería ser específicamente definido3.
Sostener que se debería definir claramente qué se entiende por agresión tenía en parte el
Ferencz, Benjamin B.: Defining Aggression: Where it Stands and Where it’s Going, The American Journal of International Law,
Vol. 66, No. 3, 1972, p. 492.
3
9
Artigo 1
propósito de descartar que la defensa recurriera a pretextos, evasivas y probabilidades y también para evitar argumentos de distracción. El objetivo era concentrarse en la cuestión material
que fue responsable de iniciar la guerra4.
Los EE.UU. entendían como necesario para completar la definición de la agresión en el
Estatuto del Tribunal Militar Internacional utilizar como base las definiciones de agresión contenidas en las Convenciones de Londres5 (Komarnicki, 1949:65). Estas definiciones se centraban
en el Estado como el agresor (Bartman, 2010:14).
Cuando llegó el momento de firmar el Estatuto de Tribunal Militar Internacional, el problema de la definición de la agresión estaba en absoluto punto muerto. En vano los Estados
Unidos insistieron en incluir una definición (Aroneanu, 1958:29). Los representantes británicos,
franceses y soviéticos se negaron a aceptar cualquier definición de la agresión. En consecuencia
eso fue resuelto sin que una definición de agresión fuera inserida en el Estatuto. La formula final
adoptada fue el compromiso entre los diferentes puntos de vista de las cuatro potencias. Enumeración de los crímenes fueron incluidos en el capítulo por el cual se consideró una guerra de
agresión un crimen en sí mismo (Rifaat, 1979:148-149).
En el caso de la agresión, se entendió más importante condenar y castigar esa conducta
que seguir literalmente el principio de la retroactividad, o sea, se consideró más importante
reivindicar y cristalizar repugnancia para la guerra agresiva que la mecánica para aplicar nulla
poena sine lege. Fue la reflexión sobre estas consideraciones que impulsaron el juez Wyzanski a
retirar sus críticas anteriores y aprobar la condena de la guerra de agresión como un crimen6.
Hubo el compromiso que el jefe de los fiscales de cada país preparara la acusación y presentara la evidencia sobre la base de la ley consagrada en el Estatuto7. En el caso de su artículo 6(a), trataba de la planificación, preparación, iniciación o ejecución de una guerra de agresión o una guerra
en violación de tratados internacionales, acuerdos o garantías internacionales, o la participación en
un Plan Común o Conspiración para la realización de cualquiera de los anteriores8.
Las conductas de planificación, preparación y orden de llevar adelante la conducta agresiva constituían el núcleo de la conducta del crimen de agresión y se entendió que no hacía falta
que los propios dirigentes y organizaciones hubieran ejecutado el crimen de agresión puesto que
ya serían responsables por el hecho de haber ordenado su ejecución (Zapico Barbeito, 2009:634).
Es significativo que el Acuerdo de Londres ha dado lugar de destaque al crimen contra
la paz que está delante de todos los demás. Además algunas de las categorías siguientes hacen
mención al crimen contra la paz enumerado inicialmente9.
Jackson, William Eldred: Putting the Nuremberg Law to Work, Foreign Affairs, Vol. 25, No. 4, Council on Foreign Relations,
1947, p. 555.
5
Fueron firmadas en 1933 entre la URSS y Afganistán, Estonia, Letonia, Persia, Polonia, Romania y Turquía, entre la URSS y
Checoeslovaquia, Romania, Turquía y Yugoslavia y entre la URSS y Letonia. Las partes consideraban agresor aquel Estado
que fuera el primero a declarar la guerra; invadir el territorio de otro; atacar el territorio, las naves o aeronaves de otro; hacer
un bloqueo naval de las costas o de los puertos de otro; Proporcionar apoyo a bandas armadas en su territorio que hayan invadido el territorio de otro, o negativa de tomar, todas las medidas que estuvieren a su alcance para privar a tales bandas de toda
ayuda o protección.
6
Meltzer, Bernard D.: A Note on Some Aspects of the Nuremberg Debate, The University of Chicago Law Review, Vol. 14, No. 3,
1947, p. 458.
7
Wright, Quincy: The Law of the Nuremberg Trial, The American Journal of International Law, Vol. 41, No. 1, 1947, p. 40.
8
Paulson, Stanley L.: Classical Legal Positivism at Nuremberg, Philosophy and Public Affairs, Vol. 4, No. 2, Blackwell Publishing,
Princeton University Press, 1975, p. 138.
9
Leonhardt, Hans: The Nuremberg Trial: A Legal Analysis, The Review of Politics, Vol. 11, No. 4, Cambridge University Press,
4
10
UN ANÁLISIS JURIDICO-HISTORICO DEL CRIMEN DE GUERRA DE
AGRESION EN EL TRIBUNAL INTERNACIONAL DE TOKIO
Esta fue la primera vez que un tratado internacional estableció la responsabilidad individual en virtud del derecho penal internacional para librar una guerra de agresión (Werle et al,
2005:391).
El juicio de individuos por el crimen de guerra de agresión en el Tribunal de Nuremberg
abrió las puertas para que lo mismo ocurriera en Tokio.
2 El Tribunal de Tokio
Las bases de creación de un Tribunal Militar Internacional para el Lejano Oriente fueron
lanzadas el 1 de diciembre de 1943 en la Conferencia del Cairo donde chinos, británicos y estadunidenses firmaron una declaración exponiendo el objetivo de terminar con la agresión de
Japón y llevar a juicio a los criminales japoneses. Estos objetivos fueron reafirmados en julio de
1945 en la Conferencia de Potsdam (Japiassú, 2009:76-77).
El 18 de febrero de 1946, Douglas MacArthur, Comandante Supremo de las Potencias
Aliadas anunció el nombramiento de John P. Higgins, el juez presidente del Tribunal Superior
de Massachusetts, como el juez de Estados Unidos en los crímenes de guerra de Tokio10.
Tanto en Nuremberg como en Tokio había quedado claro que los aliados tenían interés en
enseñar al mundo la naturaleza de la conspiración criminal internacional que había sido fundamental en deflagrar una guerra mundial agresiva11. Esperaban que juzgar y sancionar a los ex
gobernantes del Eje dejaría una huella en la conciencia de las naciones derrotadas haciendo que
rechazaran todo lo que sus antiguos líderes representaron12.
MacArthur estaba autorizado a aplicar la Declaración de Potsdam que prometía una justicia severa por crímenes de guerra. La declaración había sido acepta por Japón en su instrumento
de rendición y la creación del Tribunal de Tokio sobre esta base dio lugar a la competencia de
este con los crímenes contra la paz (Cryer et al, 2010:115).
El juicio de Tokio sufrió influencia en el tema de conspiración de las recomendaciones
hechas por el Departamento de Guerra de los EE.UU., donde todo lo hecho en cumplimiento
de la conspiración desde su inicio sería admisible. Estas ideas formaron el núcleo central de la
política de crímenes de guerra de los EE.UU., una política internacionalizada por medio de la
incorporación de los crímenes contra la paz en el Estatuto de Nuremberg13.
En Tokio, los acusados iban a recibir los cargos de conspirar como líderes, organizadores,
instigadores o cómplices de guerras de agresión contra cualquier país o grupo de países que
podrían oponerse a que Japón asegurase el dominio militar, naval, político y económico de Asia
Oriental, del Pacífico, del Índico y de los territorios adyacentes. La conspiración fue también
cargada en relación con violaciones de la ley y las costumbres de la guerra (Darcy, 2007:219).
1949, p. 454.
10
Takatori, Yuki: The Forgotten Judge at the Tokyo War Crimes Trial, Massachusetts Historical Review, Vol. 10, 2008, p. 115.
11
Thornberry, Cedric: Saving the War Crimes Tribunal, Foreign Policy, No. 104, Washington post. Newsweek Interactive, LLC,
1996, p. 73.
12
Takatori, Yuki: The Forgotten Judge..., op. cit., p. 116.
13
Boister, Neil: The Application of Collective and Comprehensive Criminal Responsibility for Aggression at the Tokyo International Military Tribunal. The Measure of Crime of Aggression? Journal of International Criminal Justice, Vol. 8, 2010, pp. 427-428.
11
Artigo 1
En la preparación del Estatuto del Tribunal de Tokio los Estados Unidos actuaron solos.
El elaborador principal fue el Fiscal Jefe de Estados Unidos, el Sr. J.B. Keenan. Los aliados fueron
consultados sólo después de que el Estatuto del Tribunal había sido emitido (Nyri, 1989:76) y la
versión sin restricciones de la política de EE.UU. sobre la conspiración tuvo su momento cuando
introducida en Tokio por medio del artículo 5 (a) del Estatuto del Tribunal14.
La redacción del artículo 6 (a) de la Carta de Nuremberg fue copiada en el artículo 5(a)
de la Carta de Tokio (Werle et al, 2005:391). Bajo el título de Crímenes contra la Paz el Estatuto
cita cinco crímenes separados (Boister, 2008:84) que son: la planificación, preparación, iniciación o ejecución de una guerra declarada o no declarada de agresión o una guerra en violación
del derecho internacional, los tratados, acuerdos o garantías internacionales, o la participación
en un plan común o conspiración para la perpetración de cualquiera de los anteriores (Rifaat,
1979:158).
Parece que especial atención fue dada al concepto de agresión, aparte de que la guerra
agresiva. La planificación, preparación, iniciación o realización de un acto de agresión, independientemente de una declaración de guerra, es un crimen según el artículo 5 (a). De la misma
manera, la existencia de un estado de guerra en el sentido formal no era una condición de ese
crimen. El Estatuto además, no trataba de la legítima defensa y no hizo distinción entre esta y la
agresión (Rifaat, 1979:158).
Curiosamente, Tokio iba heredar una característica del Tribunal de Nuremberg, o sea,
una limitación que conllevan todos los estatutos de tribunales ad hoc (Nuremberg, Tokio, Yugoslavia o Ruanda) que es que tipificar conductas que se han realizado en un determinado contexto
conocido cuando son redactados (Cuerda Riezu y Jiménez García, 2009:198).
a. Juzgando a los acusados por la guerra de agresión en el extremo oriente
El Tribunal estaba compuesto, por once jueces, todos designados por el General MacArthur, de una lista de nombres propuesta por los firmantes de la rendición de Japón, Filipinas y
por India (Castillo Daudí y Salinas Alcega, 2007:30). Este grupo difícil de manejar fue supervisado por el juez de Australia, Sir William Webb (Cryer et al, 2010:115).
En 1 de marzo de 1946 cuando llegaron a Tokio los jueces B.V.A. Roling de Holanda y E.
Stuart McDougall, de Canadá, los preparativos para el juicio estaban lejos de finalización. El juez
soviético I.M. Zaryanov y toda su delegación pasaron más tiempo de lo previsto en Vladivostok
y Francia aún no había anunciado su representante15.
Los EE.UU tuvieron derecho a designar al fiscal principal, mientras sólo se permitió que
a los otros países designaran a fiscales asociados. La opción estadounidense fue Joseph Keenan.
La defensa fue emprendida por varios abogados japoneses y americanos, los más conocidos de
ellos eran Kenzo Takayanagi, un profesor de derecho anglo americano de Tokio e Ichiro Kiyose,
un político y abogado (Cryer et al, 2010:115-116).
14
15
Boister, Neil: The Application of..., op. cit, p. 428.
Takatori, Yuki: The Forgotten Judge..., op. cit., p. 122.
12
UN ANÁLISIS JURIDICO-HISTORICO DEL CRIMEN DE GUERRA DE
AGRESION EN EL TRIBUNAL INTERNACIONAL DE TOKIO
A esta altura ya estaba claro para todos que el castigo de los criminales de guerra no era
suficiente; su culpa tenía que ser acepta por el pueblo japonés. Se esperaba que el Tribunal contribuyera a este fin. Procesando y castigando a individuos y separándolos de la mayoría de la
nación16.
El tema central del Tribunal de Tokio, como el de Nuremberg, era la criminalidad de la
guerra de agresión y de la responsabilidad penal de sus autores. En lo que respecta a estas preguntas, la acusación y la defensa actuaron, cada uno en su parte, como se ha ocurrido en el juicio
de Nuremberg (Rifaat, 1979:160).
El juicio empezó con la presentación de la acusación ante el Tribunal el 29 de abril de 1946.
La acusación, en cincuenta y cinco cargos, acusó a los veintiocho acusados de crímenes contra la
paz y conspiración, crímenes de guerra y los asesinatos, el último en la base de una teoría de la
fiscalía de que todos los asesinatos (incluidos combatientes) fueron en una guerra ilegal (Cryer
et al, 2010:116).
Es importante destacar que entre los imputados de los crímenes de iniciar y emprender
una guerra de agresión contra las posesiones de las naciones acusadoras, ninguno de ellos atacó
directamente los Estados occidentales. Japón atacó sólo a sus colonias a pesar de eso el odio a los
japoneses jugó un papel preponderante en los juicios (Nyiri, 1989:77).
Los primeros treinta y seis cargos fueron etiquetados como crímenes contra la paz, los siguientes dieciséis asesinato, y los tres últimos crímenes de guerra y crímenes contra la humanidad.
La fiscalía describió el ataque japonés a Nanking en la acusación como el cargo 45. De acuerdo
a las categorías en la acusación, se trataba de una acusación de asesinato y no un crimen contra la
humanidad17.
La fiscalía alegó varias conspiraciones para cometer crímenes contra la paz en la Acusación. En el cargo 1, alega que los acusados ​​habían conspirado con otras personas no identificadas,
entre el 1 de enero de 1928 y 02 de septiembre 1945, para emprender guerras de agresión a fin
de dominar Asia Oriental y el Pacífico y eran responsables de todos los actos realizados por ellos
mismos o por cualquier otra persona en ejecución de dicho plan. En el argumento, la fiscalía
sostuvo que esta gran conspiración se encuentra en el marco del gobierno de Japón, con lo que
establece la responsabilidad de los titulares de los cargos, cuando los hechos se cometieron18.
Se afirmó además, que había un plan y una conspiración entre Alemania, Italia y Japón
para asegurar la dominación naval, política y económica de todo el mundo. La agresión, sin
embargo, no se puso claramente de relieve en el sentido de la dominación, a pesar de que estaba
implícita en el principio de la planificación y preparación. No se hacía referencia a un tratado
específico cuya violación conlleva un acto de agresión, como fue en Nuremberg. Esta omisión
facilitó los objetivos políticos y los propósitos del Juicio de Tokio y se aceleró el proceso en sí
Futamura, Madoka: Individual and Collective Guilt: Post-War Japan and the Tokyo War Crimes Tribunal, European Review, Vol.
14, No. 4, 2006, p. 473.
17
Brook, Timothy: The Tokyo Judgment and Rape of Nanking, The Journal of Asian Studies, Vol. 60, No. 3, Association for Asian
Studies, 2001, p. 678.
18
Boister, Neil: The Application of..., op. cit, p. 429.
16
13
Artigo 1
(Nyiri, 1989:78-79). Pero el juicio en Tokio parecía paralizado por la invocación de la acusación
del término conspiración. Cuando el abogado defensor Ben Blakeney se quejó de la incertidumbre que se produciría, el Presidente del Tribunal respondió que ni al abogado defensor ni el eran
responsables por la definición de conspiración y su alcance19.
La respuesta legal del Tribunal fue direccionada por el juez escoses Lord Patrick que en
su borrador identificó dos tipos de conspiración: conspiración ejecutada, una doctrina de complicidad y la conspiración desnuda, o crimen rudimentario, el cual fue considerado valido porque estaba
previsto en el articulo 5(a). La mayoría en el Tribunal adoptaron la analice de él en los juicios y
utilizaron un acuerdo como la única condición para el establecimiento de la conspiración. Una
vez que el acuerdo estuviera en efecto todo lo rudimentario involucrado para ese objetivo, como
el planeamiento o preparación en ello se encajó18.
La acusación, mientras ponía la proposición de que el Tribunal aceptara el Estatuto como
cumplimento obligatorio en la vanguardia, también puso los mismos hechos en los cargos de
asesinato, un método no adoptado en Nuremberg. La fiscalía consideró que aquellos que inician
las guerras de agresión deberían ser reconocidos como asesinos comunes y si este punto de vista
de su conducta fuera acepta por el Tribunal estaría eliminada cualquier posible duda en cuanto
al cargo ser ex post facto o con base en un acto legislativo de las potencias vencedoras20.
Es indudable que la política entró en el proceso de acusación y gracias a eso el Emperador
no fue acusado en razón de que su inmunidad era necesaria para la estabilidad del Japón de la
posguerra, y fue deliberadamente no mencionado por la fiscalía (Cryer et al, 2010:119).
Si Hirohito tuvo un papel importante en la planificación y en librar las guerras de agresión ha sido objeto de debate. Sin embargo, es innegable que el pueblo cree que luchó en la guerra
en su nombre y que todos los pedidos seguidos por los soldados durante la guerra se hicieron
bajo su nombre y autoridad. Con la concesión de la inmunidad al Emperador, el Tribunal de
Tokio ocultó la responsabilidad de la guerra japonesa de una manera bien distorsionada21.
La decisión de mantener Hirohito fuera del juicio de Tokio cerró la posibilidad de que los
japoneses rechazaran lo que el gobierno imperial había hecho. Las consecuencias han sido dos:
la sentencia de Tokio ha unido a algunos japoneses en el rechazo de la sentencia del Tribunal y
China tuvo la convicción de que Japón todavía tenía que soportar toda su “carga legal” por lo
que hizo22.
Ninguno de los acusados alegaron que estaban engañados, coaccionados o inducidos por
el Emperador para hacer lo que hicieron. Si el Emperador hubiera sido llevado a juicio se podría
haber alegado en su nombre que él fue engañado, inducido, o incluso forzado a jugar su parte en
el asunto por algunos de los acusados y otros que murieron antes o durante el juicio23.
Ibídem, pp. 429-430.
Comyns-Carr, A. S.: The Tokyo War Crimes Trial, Far Eastern Survey, Vol. 18, No.10, Institute of Pacific Relations, 1949, pp.109110.
21
Futamura, Madoka: Individual and Collective..., op. cit., p. 474.
22
Brook, Timothy: The Tokyo Judgment..., op. cit., p. 676.
23
Comyns-Carr, A. S.: The Tokyo War..., op. cit., p. 111.
19
20
14
UN ANÁLISIS JURIDICO-HISTORICO DEL CRIMEN DE GUERRA DE
AGRESION EN EL TRIBUNAL INTERNACIONAL DE TOKIO
b. La sentencia de Tokio en relación al crimen de agresión y sus controversias
El Tribunal concluyó que había, en la política japonesa, una conspiración criminal para
librar guerras de agresión y que los militares japoneses habían cometido graves crímenes de
guerra contra prisioneros de guerra aliados y civiles24.
En la sentencia de la mayoría se determinó que, en el momento de la firma de su rendición
el gobierno japonés había entendido que el término criminales de guerra incluyera a los responsables de iniciar la guerra (Cryer et al, 2010:115).
En lo que respecta a la criminalidad de la guerra de agresión y de la responsabilidad
penal de sus autores, la sentencia de la mayoría de Tokio siguió el juicio de Nuremberg y sus
conclusiones en esta materia e incluso el lenguaje de la sentencia de Nuremberg fue adoptado
por el Tribunal de Tokio (Rifaat, 1979:161).
El Tribunal no pudo definir la agresión, pero, no obstante, respaldó la definición seleccionada por el Fiscal General estadounidense Mr. Joseph B. Keenan, tomada emprestada del
Nuevo Diccionario Webster. La fuente más improbable para una definición política y legalmente
vinculante (Nyiri, 1989:79).
La sentencia de la mayoría siguió la opinión del juicio de Nuremberg en prácticamente todos los aspectos de la ley que adopten expresamente su razonamiento en relación con el carácter
vinculante del Estatuto del Tribunal, la criminalidad de la guerra de agresión y la abolición de
la defensa absoluta del orden de un superior (Cryer et al, 2010:116). El Tribunal en su sentencia
de mayoría no encontró ninguna dificultad en afirmar que los ataques que Japón inició contra
Gran Bretaña, Estados Unidos y los Países Bajos fueron guerras de agresión. Fueron ataques no
provocados, impulsados por el deseo de apoderarse de las posesiones de estas naciones (Rifaat,
1979:163).
A diferencia de Nuremberg, el juicio de Tokio, fue incapaz de limitar la gran conspiración
a una serie de pequeñas conspiraciones, porque eso habría significado la absolución de muchos
de los acusados, ya que no eran parte en cualquiera de las conspiraciones más pequeñas o para
los más importantes crímenes de hacer la guerra25.
El más llamativo del juicio fueron las distintas actitudes de los miembros del Tribunal en
su juicio final. Los once jueces, cada uno representando una de las naciones victoriosas contra Japón, se dividieron. La sentencia de la mayoría, que se llevó a cabo por ocho jueces y leída en sesión pública, estaba en pleno acuerdo con la sentencia del Tribunal de Nuremberg. Los otros tres
no estuvieron de acuerdo con la sentencia de la mayoría en diferentes grados (Rifaat, 1979:160).
Las críticas internas al juicio provinieron de estos tres jueces disidentes (Nyiri, 1989:80).
Las más importantes sentencias disidentes fueron dadas por los jueces de Holanda y de
India, Röling y Pal.
24
25
Futamura, Madoka: Individual and Collective..., op. cit., p. 473.
Boister, Neil: The Application of..., op. cit, p. 431.
15
Artigo 1
Röling estaba en desacuerdo con la mayoría y con el Tribunal de Nuremberg sobre la cuestión de los crímenes contra la paz, al considerar que no había responsabilidad penal individual por
agresión en el derecho internacional (Cryer et al, 2010:117). Inicialmente había estado a favor de
dictar una sola sentencia. Sin embargo, cuando el juez Pal expresó su intención de disidencia, los
que habían sido inicialmente reacios a expresar su desacuerdo decidieron que lo harían26.
Roling, en su opinión disidente consideró que el objetivo de la política exterior japonesa
para ganar una posición dominante en Asia era reducir o incluso eliminar la dominación europea y eso no era ilegal en sí mismo. También puso en duda las sentencias basadas en crímenes
contra la paz, un crimen hasta aquel momento no definido e insertado en los estatutos de los tribunales de Nuremberg y Tokio después de la guerra27. Sin embargo, estuvo de acuerdo en que
la agresión era el más grave y supremo crimen internacional, aunque observó que la Comunidad
Internacional no solía actuar sobre esta premisa28.
Negaba la existencia de una guerra de agresión como crimen ya sea bajo el Pacto de París
o en el Derecho Internacional en general, pero estaba de acuerdo con la mayoría de que los autores de una guerra de agresión deberían ser condenados y castigados (Rifaat, 1979:162). Además
expuso sus diferencias con la mayoría y el juez Pal de una manera equilibrada y erudita. Su opinión y sus comentarios en el juicio de Tokio son la evidencia de un juez que trató de superar la
visión provinciana de la fiscalía y de la defensa, tanto en la ley y los hechos29.
El juez Bernard de Francia consideró que los crímenes contra la paz podrían basarse en la
ley natural. Él fue quien tomó un enfoque más sofisticado de la responsabilidad de mando de la
mayoría. No obstante, consideró que el juicio ha avanzado de tal manera que no pudo llegar a
un juicio sobre la responsabilidad de los acusados (Cryer et al, 2010:116-117).
Bernard entró en una sentencia minoritaria pidiendo la absolución de los acusados y nombró el emperador Hirohito como el autor principal de la declaración de guerra de Japón (_____,
1949:186). Según Bernard, la cuestión de la responsabilidad de este último, constituía el más
grave de los actos cometidos contra la paz que siguen sin respuesta. No se podía negar, que los
acusados presentes
​​
sólo podían ser considerados como cómplices (Bernard, 1948:677).
De los votos por separado emitidos junto con la sentencia mayoritaria el Juez Radhabinod
Pal de la India fue el más devastador en el rechazo de la acusación central que Japón había librado una guerra de agresión y por lo tanto ilegal30.
Pal no aceptó la sentencia del Tribunal de que Japón atacó sin haber sido provocado. Se
opuso a la definición concluyente del cargo principal de la fiscalía y no estuvo de acuerdo con
todas las propuestas de definición de agresión utilizadas por la acusación en el juicio (Nyiri,
1989:80).
Cryer, Robert: Röling in Tokyo, Journal of International Criminal Justice, Vol. 8, 2010.p.1110.
Schrijver, Nico: B.V.A. Röling – A Pioneer in the Pursuit of Justice and Peace in an Expanded World, Journal of International Criminal Justice, Vol. 8, 2010, p. 1076.
28
Van Der Wilt, Harmen: A Valiant Champion of Equity and Humaneness. The Legacy of Bert Röling for International Criminal Law,
Journal of International Criminal Justice, Vol. 8, 2010, pp. 1129-1130.
29
Cryer, Robert: Röling in Tokyo, op. cit., pp.1110-1111.
30
Brook, Timothy: The Tokyo Judgment... op. cit., p. 677.
26
27
16
UN ANÁLISIS JURIDICO-HISTORICO DEL CRIMEN DE GUERRA DE
AGRESION EN EL TRIBUNAL INTERNACIONAL DE TOKIO
Argumentó doble nulidad en la legislación y en la sustancia con respecto a la afirmación
de la acusación que los líderes japoneses habían participado en una conspiración para llevar a
cabo una guerra31.
Pal estaba en desacuerdo con la mayoría que vía la guerra de agresión como un crimen
desde antes del estallido de la Segunda Guerra Mundial. Insistió en que nunca el Pacto de París,
así como el derecho consuetudinario internacional, introdujo el elemento de la criminalidad a
cualquier guerra en la vida internacional. Fue incluso dudoso para él que el Acuerdo de Londres
y el Estatuto lograran esa mutación en el Derecho internacional (Rifaat, 1979:162).
El juez indiano se hizo campeón en lo que se llamaría más tarde tercermundismo. Para él,
no había evidencia de que los acusados ​​fueron los autores de crímenes contra la paz (Jaudel,
2010:128).
Pal señaló que en ausencia de una definición clara el concepto de agresión fue abierto a
la interpretación interesada. En gran parte aceptó los argumentos de la defensa que las acciones
de Japón fueron sólo reacciones a las provocaciones de las potencias occidentales. El hizo una
extensa crítica de la equidad de las actuaciones judiciales y dejó claro que vio la acusación como
hipócrita, debido al registro de que muchos de los Estados acusadores eran colonialistas, y del
uso de armas nucleares contra Hiroshima y Nagasaki (Cryer et al, 2010, 117).
Como consecuencia de su rechazo total de la idea de la criminalidad de la guerra de agresión, Pal llegó a la conclusión de que el individuo que compone un gobierno y que actúa como
agente de este no incurre en responsabilidad penal en el Derecho internacional por los hechos
denunciados. Sostuvo además, que todos y cada uno de los acusados ​​deberían ser absueltos de
todos y cada uno de los cargos presentados por la acusación (Rifaat, 1979:163).
Aunque los argumentos de Pal contra la validez de la sentencia de Tokio han sido evaluados como de sonido, fueron desestimados en la época por motivos políticos y no se han examinado con la atención que se merecían32.
El dictamen de Pal fue criticado en la opinión concurrente del juez Jaranilla, el juez de Filipinas, que dijo que Pal debería haber aceptado las disposiciones del Estatuto de Tokio sobre la
ley, como había aceptado el nombramiento bajo lo mismo. También afirmó que las actuaciones
judiciales fueron justas, y que los bombardeos atómicos estaban justificados, ya que pusieron fin
a la guerra (Cryer et al, 2010, 117-118).
Según Jaranilla, si cualquier crítica debería ser hecha contra el Tribunal de Tokio era que
había actuado con indulgencia en favor de los acusados y les había permitido todas las oportunidades de presentar toda y cualquier defensa que tuviesen prolongando el juicio y que la acusación y la defensa fueron tratados por igual con los mismos derechos y privilegios (Jaranilla,
1948:650-651).
31
32
Ibídem, pp. 687-688.
Brook, Timothy: The Tokyo Judgment..., op. cit., p.677.
17
Artigo 1
El nombramiento de Jaranilla fue controvertido, ya que él había sido víctima de la marcha
de la Muerte de Bataan33 y por lo tanto no debería haber sido nombrado, sobre la base de que podría haber sido parcial en contra de los acusados. Su opinión de que las penas impuestas fueron
demasiado indulgentes hizo poco para disipar esa sospecha (Cryer et al, 2010:118).
El Presidente del Tribunal emitió un dictamen por separado, en el que le dio su propia
opinión sobre la ley, en particular, que la criminalidad de la guerra de agresión podría basarse
en la ley natural. Webb afirmó también que el Emperador fue responsable del inicio de estas
guerras y su ausencia se reflejó en las sentencias impuestas a los acusados (Cryer et al, 2010:116).
El Presidente del Tribunal negó que el Estatuto de Tokio pudiera proporcionar autoridad
sobre el crimen rudimentario porque él no reflectaba la ley internacional, una visión compartida
por el juez indiano Pal34.
El Tribunal de Tokio podía imponer la pena de muerte u otra pena que creía justa según
el artículo 16 de su Estatuto. La ejecución de las sentencias era competencia del Comandante en
Jefe de las Fuerzas Aliadas en el Lejano Oriente (Castillo Daudí y Salinas Alcega, 2007:31), o sea,
del propio General MacArthur. Con la única excepción de Matsui y Shigemitsu, todos los acusados ​​fueron condenados por el Tribunal de Tokio por conspirar para participar en las guerras de
agresión contra las naciones representadas en la corte (Jaudel, 2010:120).
El 12 de noviembre, la sentencia se dictó a 25 acusados. Siete, incluso Tojo, fueron condenados a la muerte, 16 a la cadena perpetua, uno a encarcelamiento de veinte años y otro a siete
años de encarcelamiento. Las siete ejecuciones ocurrieron el 23 de diciembre de 194835.
c. El legado del Tribunal de Tokio
Se esperaba que Tokio fuera una mejora sobre el juicio de Nuremberg, en particular con
respecto a las opiniones de la jurisprudencia, por ejemplo, si la guerra de agresión es un crimen,
y si los líderes individuales de la guerra son punibles según el Derecho internacional36.
Donde el Tribunal de Tokio concordó con su homólogo de Nuremberg sobre la ley, las
mismas críticas son aplicables a ambos, aunque en relación con la conspiración y la responsabilidad del mando el Tribunal de Tokio fue más allá, y en el juicio de muchos, demasiado lejos
(Cryer et al, 2010:118).
El juicio presentó tres debilidades inherentes a la aplicación de la doctrina de la conspiración para el crimen de agresión. La conspiración podría ser manipulada para producir la culpa
colectiva entre la élite política del estado agresivo, fue utilizada por la fiscalía en Tokio para
evitar las dificultades de establecer la responsabilidad individual para la acción en la toma de
Ocurrió en Filipinas en 1942. La marcha de alrededor de 100 Km trasladaba de la península de Bataan a 75.000 prisioneros
entre ellos soldados estadounidenses, filipinos y civiles capturados. Durante la marcha hubo una amplia gama de abusos físicos y asesinatos infligidos a los prisioneros por las fuerzas armadas de Japón a lo largo del transcurso (decapitaciones, apuñalamientos con bayonetas, violaciones, golpes de culata de rifle, negativa a permitir beber y comer a los prisioneros durante la
marcha de casi una semana bajo el calor tropical).
34
Boister, Neil: The Application of..., op. cit, p. 430
35
Futamura, Madoka: Individual and Collective..., op. cit., p. 473.
36
Liu, James T. C.: The Tokyo Trial: Source Materials, Far Eastern Survey, Vol. 17, No. 14, Institute of Pacific Relations, 1948, 168.
33
18
UN ANÁLISIS JURIDICO-HISTORICO DEL CRIMEN DE GUERRA DE
AGRESION EN EL TRIBUNAL INTERNACIONAL DE TOKIO
decisiones. Haciendo caso omiso de las divisiones entre los acusados se les unió en un solo juicio
y supuesto acuerdo amplio que demostraron a través de pruebas circunstanciales37.
Mismo que fuera históricamente correcto que Japón buscó su alargamiento territorial por
medios de conquista entre 1928 a los años de 1940, no estaba claro de ninguna forma porque
razón el uso de la fuerza contra las posesiones coloniales de las potencias occidentales en 1941
fueron considerados actos de agresión. El juicio no trató sobre este importante tema y sacó el
significado de la agresión de la acusación de que la búsqueda por el dominio y la redistribución
de valores y recursos por el uso de la fuerza describen ampliamente la naturaleza realista de la
agresión (Nyiri, 1989:82).
Para Jaudel, el juicio de Tokio fue la venganza de los vencedores. Todos los acusados​​
quedarán exentos de responsabilidad penal. Una opinión que alimentan las tesis revisionistas
en Japón y se encargarían de la reputación de Pal (Jaudel, 2010:129).
Para Röling, Nuremberg y Tokio son los típicos ejemplos de tribunales ad hoc en que los
jueces fueron nombrados para la ocasión y en que las reglas de procedimiento fueron establecidas para la ocasión. La crítica en relación con este aspecto ha sido casi universal. Fue un procedimiento primitivo, insatisfactorio para cualquiera acostumbrado a uno procedimiento más
imparcial y mejor organizado en su propio país38.
El Tribunal de Tokio fue el más largo de los dos tribunales de guerra tras la Segunda
Guerra Mundial. Sin embargo, a pesar de sus aportaciones ganó menos reconocimiento, elogios,
admiración, y fama como un hito judicial que el proceso de Nuremberg había ganado39.
Hoy en día, los Estatutos de Nuremberg y Tokio son los puntos de partida para la establecida opinion juris de la Comunidad internacional de que librar una guerra de agresión es un
crimen (Werle et al, 2005:392).
En general, Nuremberg y Tokio abrieron un hueco importante entre el cargo y la prueba
de agresión. Fue esta brecha de credibilidad, que iba a crear el carácter problemático de la agresión
en las Naciones Unidas. Al no poder probar quien de hecho inició la guerra, y mucho menos
ser responsable de ella, las Potencias Aliadas introdujeron en la política internacional, la idea
de responsabilidad política y legal para demostrar que la agresión se concentraba en romper
las obligaciones internacionales y en el primer recurso a la fuerza lo que dominaría los debates
futuros en las Naciones Unidas (Rifaat, 1979:82).
El castigo penal de individuos en Tokio provocó efectos secundarios, que dejaron un legado ambiguo en la interpretación japonesa de la culpabilidad de la guerra y la responsabilidad
a un nivel más colectivo, más social40.
A pesar de la aceptación de la sentencia por el gobierno japonés en el artículo 11 del
Tratado de Paz de 1952, la discusión se mantuvo sin que sus conclusiones fueran aceptadas por
Boister, Neil: The Application of..., op. cit, p. 431.
Röling, B.V.A.: On Aggression, on International Criminal Law, on International Criminal Jurisdiction, Nederlands Tijdschrift voor
International Recht, Vol. 2, No. 3, 1955, pp. 286-287.
39
Takatori, Yuki: The Forgotten Judge..., op. cit., p.117.
40
Futamura, Madoka: Individual and Collective... op. cit., p. 474.
37
38
19
Artigo 1
todas las partes de la sociedad japonesa (Cryer et al, 2010:119).
El castigo criminal individual separó la sociedad japonesa no sólo de los criminales de
guerra sino también de los crímenes de guerra en su conjunto, causando una apatía nacional
hacia el Tribunal de Tokio y su significado. Al mismo tiempo, la percepción de la “justicia del
vencedor’ dio la impresión de que el Tribunal estaba castigando colectivamente a los japoneses
como una nación. Estos efectos han contribuido a la sensación ambivalente de la responsabilidad de Japón, que consiste en una mezcla de culpa, falta de interés, cinismo y frustración. Todo
un problema para la reconciliación de Japón con sus vecinos y con su propio pasado41.
A diferencia de Alemania, donde los acusados y condenados por crímenes de guerra fueron convertidos por la mayoría en parias de la sociedad, en Japón estas personas no fueron consideradas criminales sino victimas (Bassiouni, 2003:418).
La experiencia del Tribunal de Tokio nos enseña la necesidad de reexaminar la estrategia
de tribunales de crímenes de guerra internacionales y preguntar el entendimiento de lo que el
derecho penal internacional puede conseguir y que forasteros pueden – y no pueden – hacer
para promover actitudes de cambio y reconciliación42.
El castigo para el crimen de guerra de agresión debe ser un acto de justicia internacional
y no la simple satisfacción de una necesidad de venganza.
Tokio deja un mensaje muy claro. Solo existe justicia internacional cuando además de los
Estados vencidos, que son obligados a entregar sus ciudadanos a la jurisdicción penal internacional, los Estados victoriosos también transfieren la jurisdicción de sus ciudadanos que hayan
delinquido contra el Derecho penal internacional al mismo tribunal.
Referências
Aroneanu, Eugene: La Définition de L’Agression, Les Editions Internationales, Paris, 1958.
Andrés Domínguez, Ana Cristina: Derecho Penal Internacional, Tirant lo Blanch, Valencia, 2006.
Bartman, Christi Scott: Lawfare: Use of the Definition of Aggressive War by the Soviet and
Russian Federation Governments, Cambridge Scholars Publishing, Cambridge, 2010.
Bassouni, M. Cherif: Introduction to International Criminal Law, Transnational Publishers,
Inc., Ardsley, NY, 2003.
Bernard, Henri: Dissenting Judgment of the Member from France of the International Military
Tribunal for the Far East, 1948, en Boister, Neil y Cryer, Robert: Documents on the Tokyo
International Military Tribunal. Charter, Indictment and Judgments, Oxford University Press,
New York, 2008.
Boister, Neil y Cryer, Robert: Documents on the Tokyo International Military Tribunal.
Charter, Indictment and Judgments, Oxford University Press, New York, 2008.
Boister, Neil: The Application of Collective and Comprehensive Criminal Responsibility
for Aggression at the Tokyo International Military Tribunal. The Measure of Crime of
Aggression? Journal of International Criminal Justice, Vol. 8, 2010.
Brook, Timothy: The Tokyo Judgment and Rape of Nanking, The Journal of Asian Studies, Vol.
60, No. 3, Association for Asian Studies, 2001.
41
42
Ibídem, p. 480.
Ibídem, p. 480.
20
UN ANÁLISIS JURIDICO-HISTORICO DEL CRIMEN DE GUERRA DE
AGRESION EN EL TRIBUNAL INTERNACIONAL DE TOKIO
Castillo Daudí, Mireya y Salinas Alcega, Sergio: Responsabilidad penal del individuo ante los
tribunales internacionales, Tirant lo Blanch, Valencia, 2007.
Comyns-Carr, A. S.: The Tokyo War Crimes Trial, Far Eastern Survey, Vol. 18, No.10, Institute
of Pacific Relations, 1949.
Cryer, Robert: Röling in Tokyo, Journal of International Criminal Justice, Vol. 8, 2010.
Cryer, Robert; Friman, Hakan; Robinson, Darryl y Wilmshurst, Elizabeth: An Introduction
to International Criminal Law and Procedure, Cambridge University Press, second edition,
Cambridge, 2010.
Cuerda Riezu, Antonio y Jiménez García, Francisco: Nuevos Desafíos del Derecho Penal
Internacional. Terrorismo, Crímenes Internacionales y Derechos Fundamentales, Tecnos,
Madrid, 2009.
Darcy, Shane: Collective Responsibility and Accountability Under International Law,
Transnational Publishers, Danvers, 2007.
Dinstein, Yoram y Tabory, Mala: War Crimes in International Law, Martinus Nijhoff Publishers,
The Hague/ Boston/ London, 1996.
Ferencz, Benjamin B.: Defining Aggression: Where it Stands and Where it’s Going, The
American Journal of International Law, Vol. 66, No. 3, 1972.
Futamura, Madoka: Individual and Collective Guilt: Post-War Japan and the Tokyo War
Crimes Tribunal, European Review, Vol. 14, No. 4, 2006.
___________: International Military Tribunal for the Far East. International Organization, Vol.
3, No. 1, 1949.
Jackson, William Eldred: Putting the Nuremberg Law to Work, Foreign Affairs, Vol. 25, No. 4,
Council on Foreign Relations, 1947.
Japiassú, Carlos Eduardo Adriano: O direito penal internacional, Editora Del Rey, Belo
Horizonte, 2009.
Jaranilla, Delfin: Concurring Opinion, 1948, en BOISTER, Neil/ CRYER, Robert: Documents
on the Tokyo International Military Tribunal. Charter, Indictment and Judgments, Oxford
University Press, New York, 2008.
Jaudel, Étienne: Le process de Tokyo. Un Nuremberg oublié, Odile Jacob, Paris, 2010.
Kemp, Gerhard: Individual Criminal Liability for the International Crime of Aggression,
Series Supranational Criminal Law: Capita Selecta, Vol. 7, Intersentia, Antwerp – Oxford –
Portland, 2010.
Komarnicki, M. Waclaw: La Définition de L’Agresseur dans le Droit International Moderne,
Collected Courses of the Hague Academy of International Law 075. Martinus Nijhoff Publishers,
1949.
Leonhardt, Hans: The Nuremberg Trial: A Legal Analysis, The Review of Politics, Vol. 11, No.
4, Cambridge University Press, 1949.
Liu, James T. C.: The Tokyo Trial: Source Materials, Far Eastern Survey, Vol. 17, No. 14, Institute
of Pacific Relations, 1948.
Meltzer, Bernard D.: A Note on Some Aspects of the Nuremberg Debate, The University of
Chicago Law Review, Vol. 14, No. 3, 1947.
Nyiri, Nicolas: The United Nations’ Search for a Definition of Aggression, American University
Studies, ser. 10, Vol. 22, Peter Lang Publishing, Inc., New York, 1989.
Pastor, Daniel R.: El poder penal internacional. Una aproximación jurídica a los fundamentos
del Estatuto de Roma, Atelier, Barcelona, 2006.
Paulson, Stanley L.: Classical Legal Positivism at Nuremberg, Philosophy and Public Affairs,
21
Artigo 1
Vol. 4, No. 2, Blackwell Publishing, Princeton University Press, 1975.
Rifaat, Ahmed M.: International Aggression. A Study of the Legal Concept: Its Development
and Definition in International Law, Almqvist & Wiksell International, Stockholm, Humanities
Press Inc., Atlantic Highlands, New Jersey, 1979.
Röling, B.V.A.: On Aggression, on International Criminal Law, on International Criminal
Jurisdiction, Nederlands Tijdschrift voor International Recht, Vol. 2, No. 3, 1955.
Schrijver, Nico: B.V.A. Röling – A Pioneer in the Pursuit of Justice and Peace in an Expanded
World, Journal of International Criminal Justice, Vol. 8, 2010.
Takatori, Yuki: The Forgotten Judge at the Tokyo War Crimes Trial, Massachusetts Historical
Review, Vol. 10, 2008.
Thornberry, Cedric: Saving the War Crimes Tribunal, Foreign Policy, No. 104, Washington
post. Newsweek Interactive, LLC, 1996.
Van Der Wilt, Harmen: A Valiant Champion of Equity and Humaneness. The Legacy of Bert
Roling for International Criminal Law, Journal of International Criminal Justice, Vol. 8, 2010.
Werle, Gerhard; Jessberger, Florian; Burchards, Wulf; Nerlich, Volker y Cooper, Belinda:
Principles of International Criminal Law, T.M.C. Asser Press, The Hague, 2005.
Wright, Quincy: The Law of the Nuremberg Trial, The American Journal of International Law,
Vol. 41, No. 1, 1947.
Wynen Thomas, Ann Van y Thomas, A. J. Jr.: The Concept of Aggression in International Law,
Southern Methodist University Press, Dallas, 1972.
Zapico Barbeito, Mónica: El crimen de agresión y la Corte Penal Internacional en Criminal Law
Between War and Peace, Justice and Cooperation in criminal matters in international military
interventions, Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, Cuenca, 2009.
22
TRADIÇÃO E MULTICULTURALISMO: O PAPEL CIVILIZATÓRIO DO
ESTADO CONSTITUCIONAL NO INTERCÂMBIO CULTURAL
TRADIÇÃO E MULTICULTURALISMO:
O PAPEL CIVILIZATÓRIO DO ESTADO
CONSTITUCIONAL NO INTERCÂMBIO
CULTURAL
Por Marcus Paulo Rycembel Boeira1
Resumo:
Cultura é palavra derivada do latim colere, que quer dizer cultivar. No passado, a palavra
cultura incorporou o sentido da antiga expressão humanitas, freqüentemente usada por autores
medievais. Humanitas, também conhecida pela palavra latina civilitas, referia-se ao conjunto
humano dedicado ao desenvolvimento do saber e do poder dos homens em sociedade. A
humanitas era a própria civilização em seu devir histórico, arraigada e sustentada pelos valores
da tradição religiosa dos antepassados. Incorporando o significado de humanitas, cultura
hoje tem a ver com civilização, tradição e, sobretudo, com sociedade. Por essa razão, sua
importância para a política no Estado Constitucional é indispensável, pois o devir civilizatório
que é próprio de seu conceito é também o núcleo axiológico da tarefa de resolver conflitos
entre tradições culturais diferentes, realidade política do mundo multicultural atual. E o
Estado Constitucional aparece nesse cenário como nova realidade política e institucional
voltada para a solução de conflitos entre tradições, através da promoção e defesa da verdade
comum da pessoa humana e de seus valores. É disso que esse artigo trata, considerando
cultura, tradição e Estado Constitucional três áreas da realidade concreta do homem
indissociáveis e em permanente comunicação no contexto civilizacional atual.
Palavras-chave: Cultura; Civilização; Estado Constitucional.
Abstract:
Culture is a word derived from the Latin colere, which means cultivate. In the past, the
word culture has incorporated the meaning of the old expression humanitas often used by
medieval authors. Humanitas, also known by the Latin word civilitas, referring to the whole
human being devoted to the development of knowledge and power of men in society. The
humanitas was civilization itself in its historical dynamic, sustained by the values ​​of the
religious tradition of their ancestors. Incorporating the meaning of humanitas, culture today
has to do with civilization, tradition and, above all, society. Therefore, its importance for
polics in the Constitutional State is necessary because the civilization that is becoming its own
concept is also the core set of values of the task of resolving conflicts between different cultural
traditions, political realities of multicultural world today. And the constitutional state appears
in this scenario with new political and institutional focused on resolving the conflicts between
traditions, promoting and defending the common truth of the human person and his values.
That’s what this article deals, considering culture, tradition and constitutional state three areas
of the man are inseparable and in constant communication in the context of civilizational
today.
Key words: Culture; Civilization; Constitional State.
Marcus Paulo Rycembel Boeira. Doutor e Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor de Filosofia
do Direito na Faculdade de Direito da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). E-mail: [email protected]
1
23
Artigo 2
O significado originário de cultura
A importância da cultura
Os gregos e alguns povos primitivos do mundo ocidental separavam em dois os mundos da existência dos homens: o mundo da natureza e o mundo da cultura. Naquele tempo,
muitas escolas gregas (escola cínica e estóica, por exemplo) acreditavam que os dois mundos
eram inconciliáveis, havendo nesses casos uma prevalência pelo universo natural em combate
ao mundo cultural, até então entendido como corrupto e vicioso. No entanto, tal distinção foi se
mostrando cada vez mais incompatível frente ao processo histórico, que procurava, na medida
de sua evolução, conciliar as duas ordens cosmológicas.
Com o desenvolvimento da civilização ocidental, natureza e cultura mostraram ser realidades interdependentes, de modo que a cultura passou a ser vista como alguma coisa inserida
na natureza mesma do homem em sociedade. Daí entender-se que a cultura está radicada na
dimensão antropológica da realidade, do modo que sua inserção na natureza se processa por
intermédio do ser humano em contato com o cosmos em sua existência política e histórica.
Apesar disso, cultura e natureza possuem significados diferentes. A natureza é uma dimensão da realidade que aparece de pronto, como se mostra e da maneira que se apresenta de
plano. O mundo cultural não é assim2.
A cultura se processa no próprio espaço do agir humano em sua existência histórica. E,
como tal, suscetível de mudança. A cultura, então, pode ser definida em primeira análise como
“o produzir-se de um povo, de que a civilização é o produto, o resultado de sua realização
criadora”3. Indica o devir, a dinâmica, a transformação e o desenvolvimento de uma sociedade
humana em seu atuar na história.
Essa transformação não se dá por uma mudança completa e absoluta. O tipo de transformação ocorrida na cultura é um devir que se sustenta no passado histórico. Por isso, a dinâmica
aqui deve ser entendida como algo que se desenvolve tendo por base uma tradição.
A tradição, escolha originária que prioriza um conjunto de valores herdados dos antepassados e que é feita pela “autoridade” da religião em uma civilização, serve de base para o desenvolvimento da cultura, de modo que não há dinâmica cultural sem uma base arraigada nos
valores fundamentais da assim chamada tradição4.
Entre as unidades políticas antigas5, o conhecimento sobre a importância da tradição era
bastante difundido. Com o Estado Moderno, o advento da filosofia racionalista e do secularismo, a tradição foi deixando de ser “fundamento” para a cultura e para as ciências práticas, torFERRATER MORA, Jose. Diccionario de Filosofia, p. 377.
DOS SANTOS, Mário Ferreira. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais, p. 393.
4
FRIEDRICH, Carl. Tradição e Autoridade em Ciência Política, p. 52.
5
Unidade política quer dizer tipo de ordem política existente em uma dada comunidade específica no tempo e no espaço na
história de uma civilização. Exemplos de unidades políticas civilização ocidental: pólis para os gregos, civitas para os romanos,
reino para os medievais na era Cristã e assim por diante.
2
3
24
TRADIÇÃO E MULTICULTURALISMO: O PAPEL CIVILIZATÓRIO DO
ESTADO CONSTITUCIONAL NO INTERCÂMBIO CULTURAL
nando-se obsoleta frente aos modernos clichês racionalistas. No século XIX, a tradição ganhou
contornos heréticos, com o auge do romantismo, do idealismo e do positivismo. No século XX,
em pleno desenvolvimento político e econômico dos Estados Europeus, o mundo presenciou a
prática dos regimes totalitários, originados justamente pela negação política da importância da
tradição6.
Após a segunda guerra mundial, a Europa passou a vivenciar um novo tipo de Estado:
o chamado Estado Constitucional. Esse, a bem da verdade, foi e ainda é o caminho encontrado
para buscar aquilo que fora negado pelo totalitarismo: a recuperação da tradição e dos valores
na raiz da política (como veremos ao final desse artigo)7. Portanto, tradição é, hoje, um conceito
indispensável para se compreender a cultura no cenário atual da política contemporânea.
Definição de cultura: autoridade, tradição e civilização
O conceito de tradição está intimamente ligado ao de autoridade. “Auctoritas”, termo latino muito conhecido na era da civitas romana, deriva de “augere”, que significa aumentar ou
ampliar. Condiz com a escolha decisiva e originária (daí autoridade) acerca do caminho a ser
percorrido pela civilização, concebendo assim o respeito e a importância por um conjunto de
valores essenciais que passam a formar a tradição8. Sendo conceitos complementares, tradição
e autoridade refletem o aumento (no tempo e no espaço) do respeito e da importância pelas
gerações futuras em relação aos valores religiosos dos antepassados, bem como sua relevância
indispensável para o desenvolvimento cultural na história de uma civilização9.
Dentro desse aspecto, a cultura aparece como dinâmica de um agrupamento de diversas
sociedades humanas enraizadas em certo conjunto de valores originários da tradição e que se
transformam a partir de tais valores, como se a autoridade da tradição exercesse forte influência
no agir histórico desses povos. Assim, o devir histórico da civilização (cultura) encontra na tradição o elemento fundamental para a inserção de novas descobertas e práticas sociais no próprio
contexto cultural em questão, de modo que a tradição aparece decisivamente nos momentos
em que a civilização se vê em choque com outras realidades culturais. Aliás, é a autoridade da
tradição exercida sobre a história de uma civilização que permitirá que tal agrupamento de sociedades se mantenha de pé, firme em seu devir histórico e preparado para enfrentar possíveis
choques culturais existentes.
A cultura, então, é o desenvolvimento da tradição. Nessa dinâmica, tanto a atualização
dos valores da tradição na própria realidade social como também o choque com outras novidaARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro, p. 43 e seguintes. VOEGELIN, Eric. A Nova Ciência da Política, p. 18.
FRIEDRICH, Carl. Tradição e Autoridade em Ciência Política, p. 117.
7
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro, p. 128. ARENDT diz que a crise do mundo moderno “é política em sua origem
e natureza. O ascenso de movimentos políticos com o intento de substituir o sistema partidário, e o desenvolvimento de uma
nova forma totalitária de governo, tiveram lugar contra o pano de fundo de uma quebra mais ou menos geral e mais ou menos
dramática de todas as autoridades tradicionais. Em parte alguma essa quebra foi resultado direto dos próprios regimes ou
movimentos; antes, era como se o totalitarismo, tanto na forma de movimentos como de regimes, fosse o mais apto a tirar
proveito de uma atmosfera política e social geral em que o sistema de partidos perdera seu prestígio e a autoridade do governo
não mais era reconhecida”.
8
FRIEDRICH, Carl. Tradição e Autoridade em Ciência Política, p. 52. CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos: volume I,
p. 200.
9
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro, p. 130.
6
25
Artigo 2
des culturais são inevitáveis. Os choques eventuais entre tradições podem ocasionar a repulsa
imediata ou a abertura para o diálogo e, daí, o intercâmbio cultural, isto é, a inserção de novos
elementos e práticas de uma outra cultura no âmbito interno de uma tradição. O desenvolvimento desses conflitos e inserções constitui a existência histórica de determinados agrupamentos sociais homogêneos a que chamamos de civilização. A civilização, palavra que possui uma
definição histórica próxima de cultura, deriva de “civilitas”. Para o propósito dessa investigação,
civilização significa o resultado da junção entre tradição e cultura, ou seja, entre valores e dinâmica histórica.
Resumidamente, então, a Autoridade elege alguns valores fundamentais que servirão de
base para uma tradição. Por sua vez, essa tradição servirá de base para a cultura, que passa a
indicar desenvolvimento e depuração de tais valores na existência humana histórica e concreta.
À somatória desses elementos denominamos civilização.
Os valores escolhidos10 pela auctoritas sustentam a tradição e, enquanto tais, exercem fortíssima influência sobre o desenvolvimento das gerações futuras. Diante disso, a cultura é a
operação desses valores na história, originando uma dialética fundamental no existir histórico
antropológico. Os valores, assim, vão servindo de guias e de peças importantes para que uma
civilização possa julgar os possíveis enfrentamentos com outras tradições, avaliando se aquilo
que se apresenta como “cultura” diante de si possui “valor” ou não, a saber, se pode inculturar-se na tradição da civilização ou ser descartado no processo histórico.
Como ensina Mario Ferreira dos Santos, “a civilização é, em suma, a exteriorização da
cultura, e, também, a estratificação dos resultados obtidos”11. Esta estratificação é justamente
fruto do diálogo que se trava a fim de se verificar, a cada choque cultural, o que é valioso para
uma civilização e o que não é.
Resta claro, daí, que cultura é o devir civilizatório em operação, tendo como ponto de partida uma base radicada nos valores e sustentada pela autoridade da tradição, encerrando uma
dinâmica que se derrama na história e que se mostra indispensável para a existência do homem
na história concreta.
Importância da cultura na ordem concreta da realidade
Três pontos sustentam o significado de cultura: tradição, história e civilização. Tradição
como resultado da escolha pela autoridade por um conjunto de valores fundamentais que dão
origem ao próprio sentido de cultura; história como o próprio desenvolvimento da existência do
homem e sua dialética com a realidade12; civilização como o conjunto de sociedades e comuniOs valores aí aparecem como resultado da escolha realizada na realidade. Sobre isso, Mário Ferreira caracteriza os valores
como fruto dessa eleição, dizendo que “há um selecionar cósmico: o existir é a revelação de uma selectividade, de uma escolha,
em que tais ou quais formas são aceitas aqui, repudiadas ali, segundo as diversas constelações das coordenadas da realidade.
Ora, onde há escolha, há uma ruptura da indiferença. Não é indiferente acontecer isto ou aquilo. A própria ordem universal é a
revelação dessa selectividade, dessa intelectualidade cósmica, universal, que aqui escolhe deste modo, ali de outro. Portanto, há
ruptura da indiferença, ao mesmo tempo que se verifica que as coisas são preteridas ou preferidas umas pelas outras, segundo
os múltiplos relacionamentos. Onde há selectividade, há escolha; onde há escolha, há preferência de uma coisa a outra; onde
há preferência, há ruptura da indiferença, portanto preterições, e, conseqüentemente, valor”. DOS SANTOS, Mário Ferreira.
Filosofia concreta dos valores, p. 14.
11
DOS SANTOS, Mário Ferreira. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais, p. 393.
12
Sobre o sentido aqui empregado de história, ver LONERGAN, Bernard. Collected Works: philosophical and theological
10
26
TRADIÇÃO E MULTICULTURALISMO: O PAPEL CIVILIZATÓRIO DO
ESTADO CONSTITUCIONAL NO INTERCÂMBIO CULTURAL
dades humanas que compartilham – mesmo que a custa de diferenças habituais e práticas – de
uma mesma tradição como ponto de partida.
Na tradição, os valores13 ocupam lugar de destaque. São os valores princípios substanciais
e indicativos de como o ser humano se insere nesse mundo, qual lugar ocupa na história e de
que modo procura a vida boa14. Assim, os valores correspondem aos princípios fundamentais
para um existir coerente do homem e, acima de tudo, para uma boa organização da comunidade
humana. Enquanto tais, os valores assumem a forma do que é certo e desejável para uma civilização15. Estimados por corresponderem a tradição e por serem decorrências diretas do plano
divino16, mostram-se fundamentais para a estabilidade e perenidade da cultura.
Os valores, assim, se originam de algo. A substância do valor, assim como sua estrutura, está vinculada aos antepassados. Mas, por que razão princípios unidos ao passado de uma
civilização possuem autoridade sobre o desenvolvimento da cultura, isto é, por que a tradição
influencia decisivamente o desenvolvimento dos povos? A resposta a tal pergunta, necessariamente, deve recorrer àquilo que está detrás da auctoritas que elege tais valores para constituir
uma tradição, a saber, uma religião. Como afirma Ratzinger, “o núcleo das grandes culturas radica em que elas interpretam o mundo em relação com o Divino”17.
A filosofia da antiguidade era lúcida quanto a autoridade das religiões sobre a formatação
de uma tradição, de modo que sabia-se da importância do plano divino para se justificar a realidade da ordem concreta dos homens18. Em alguns pensadores da antiguidade, como Platão, por
exemplo, a vida prática da ação (realização de virtudes morais) era compreendida como uma
tentativa de resposta do homem com relação à realidade da presença divina enquanto significado transcendente19. Quanto a política, então, a boa pólis com cidadãos virtuosos e valores realizados corresponderia a uma projeção do que seria em verdade a boa alma da cidade política.
A saber, a ordem certa da comunidade não é um Estado Ideal, mas o desenvolvimento de uma
papers, p. 54 e seguintes.
13
MONDIN, Batista. Os Valores Fundamentais, p. 17. MONDIN define valor em seu sentido ontológico dizendo que “exprime
a qualidade pela qual uma coisa possui dignidade e é, portanto, digna de estima e de respeito”. E adiante acrescenta que “tudo
o que é considerado precioso e que, de qualquer modo, pode aperfeiçoar o homem, como indivíduo ou como ser social, merece
estima e é por isso um valor. Disso decorre a enorme vastidão e a grande complexidade do mundo dos valores”.
14
RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância: o cristianismo e as grandes religiões do mundo, p. 59.
15
MONDIN, Batista. Os Valores Fundamentais, p. 154. MONDIN nos diz que “para que o valor bondade (do fim último) tenha
realmente peso e autoridade, é necessário que o homem disponha de uma faculdade que o ilumine sobre a dignidade axiológica
das próprias ações e que seja, por outro lado, munido do poder de realizá-las. Por esse motivo, a constelação axiológica da
moral abrange, primeiramente, valores noéticos que ajudam a razão a reconhecer a dignidade axiológica das várias ações a que
o homem é chamado a realizar em sua vida: a consciência, a lei natural, as leis positivas, as tradições e os costumes, etc. Em
segundo lugar, abrange valores práticos que dão à vontade a força de realizar as ações que reconhecem como boas: as paixões
e as virtudes”.
16
RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância: o cristianismo e as grandes religiões do mundo, p. 59.
17
RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância: o cristianismo e as grandes religiões do mundo, p. 60.
18
REALE, Giovanni. O saber dos antigos: terapia para os tempos atuais, p. 172. REALE faz uma observação interessante sobre
o significado do plano espiritual no pensamento clássico, dizendo que “a partir de Sócrates, o homem pensou a si mesmo
em termos de psyche e corpo, e reconheceu na psyche sua melhor parte. Observe-se que a palavra psyche, que habitualmente
traduzimos por alma, indica a sede da inteligência e do querer, ou seja, a sede dos valores humanos intelectuais e morais.
Os gregos identificaram nela a parte de nós destinada a sobreviver à morte do corpo. Os próprios materialistas, que negam a
existência de qualquer realidade espiritual, não conseguiram encontrar um meio de escapar inteiramente dessa concepção, na
medida em que foram obrigados a se haver com ela, mesmo com o objeto de tentar destruí-la, para encontrar uma identidade
própria. A descoberta e a base teórica do conceito de psyche assinalaram uma verdadeira revolução espiritual, e constituíram
uma conquista irreversível, tanto para os que crêem quanto para os que não crêem na existência da realidade espiritual, na
medida em que o homem não pode voltar a ser pensado como o era antes da descoberta desse conceito”.
19
VOEGELIN, Eric. Order and History, p. 135 e seguintes.
27
Artigo 2
oposição concreta às desordens da pólis do tempo de Platão20.
Nesse sentido, Platão e grande parte do pensamento filosófico da antiguidade compreendiam o mundo concreto em dois planos: o plano empírico e o plano espiritual, sendo os dois
reais, concretos e verdadeiros. Assim, a ordem concreta da sociedade política era vista como que
a própria estrutura da realidade21, constituída por esses dois planos interdependentes e mutuamente conciliados. A tarefa do filósofo naquele tempo, então, era a de averiguar a essência da
alma boa da pólis por meio da descoberta da verdade. Ao assim proceder, poderia então ter consciência acerca dos “valores” (derivados do plano espiritual), o que lhe facultaria a possibilidade
de avaliar – a luz desses princípios - de que modo a realidade empírica poderia ser mudada a
fim de se adequar aos mesmos.
Segundo a tradição clássica do pensamento filosófico ocidental (conectada a importância do pensamento grego nas figuras de Platão e Aristóteles, assim como às religiões Judaica e
Cristã22), a vida boa23 de uma sociedade política não se justifica apenas pela racionalidade de suas
instituições, senão também pelos valores herdados do plano espiritual e sua oposição concreta
aos vícios do plano existencial do homem.
Portanto, é possível dizer que os valores que fundamentam a tradição na cultura de uma
civilização possuem uma ligação direta com o Divino, pois uma Religião autêntica e concisa
ocupa papel fundamental na dinâmica cultural de uma civilização. Em uma oração: a religião
fornece “identidade” para uma civilização24.
A compreensão sobre a substância dos valores, assim, é algo que transcende o plano experimental da mera existência e busca fundamentar-se no plano invisível do divino25.
Religião, Tradição e Cultura
A “autoridade” da escolha originária em uma tradição está apoiada na Religião. Religião
é palavra relacionada ao termo latino “religatio”, derivado de “religare”, que significa “vincular”
ou “atar”. No caso, Religião expressa um vínculo dos homens com a divindade, isto é, uma
subordinação do homem em relação a Deus. Porém, como aduz Ferrater Mora, quando se fala
VOEGELIN, Eric. Order and History, p. 135 e seguintes.
Nesse sentido, ver ZUBIRI, Xavier. El Hombre y la Verdad, p. 105 e seguintes.
22
STRAUSS, Leo. ? Progreso o retorno?, p. 149.
23
ARISTÓTELES. Política, p. 53. A expressão vida boa é utilizada tendo por base o sentido tratado por Aristóteles na Política.
Quer dizer felicidade, isto é, o fim para importante para uma comunidade política. Por isso, vida boa pode ser entendida como
bem comum.
24
Nesse sentido, interessante observar o que disse GUÉNON sobre a falsa oposição entre o oriente e o ocidente que se costuma
fazer hoje em dia, bem como sobre a importância dos princípios da religião para uma tradição: “Uma das características
particulares do mundo moderno é a cisão entre Oriente e Ocidente, e, ainda que tenhamos tratado da questão de forma
específica, é necessário voltar a ela para precisar alguns aspectos e dissipar certos mal-entendidos. A verdade é que sempre
existiram civilizações distintas e múltiplas, cada uma das quais se desenvolveu da forma que lhe era própria e de acordo com as
aptidões dos diversos povos ou raças; mas a distinção não quer dizer oposição, e pode existir uma espécie de equivalência entre
civilizações muito diferentes desde o momento em que todas se baseiam nos mesmos princípios fundamentais, que aplicam de
formas diversas em função das distintas circunstâncias. Tal é o caso de todas as civilizações que podemos chamar de normais, ou
também tradicionais; não existe entre elas nenhuma oposição essencial, e as divergências, se existem, não são mais que externas
e superficiais. Em contrapartida, uma civilização que não reconheça nenhum princípio superior, que só se baseia na negação dos
princípios, carece por si mesma do entendimento com relação as outras, pois esse entendimento, para ser profundo e eficaz, só
pode se estabelecer para acima, vale dizer, precisamente por aquilo que falta a essa civilização anormal e desviada. No estado
atual do mundo temos, por um lado, as civilizações que permaneceram fiéis ao espírito tradicional, que são as civilizações
orientais, e, por outro, uma civilização propriamente antitradicional, que é a civilização ocidental moderna”. GUÉNON, René.
La crisis del mundo moderno, p. 30 e 31.
25
LAVELLE, Louis. Studi sul pensiero contemporaneo, p. 146 e seguintes.
20
21
28
TRADIÇÃO E MULTICULTURALISMO: O PAPEL CIVILIZATÓRIO DO
ESTADO CONSTITUCIONAL NO INTERCÂMBIO CULTURAL
em Religião nesse propósito pode-se entender o termo em dois sentidos específicos: “como vinculação do homem a Deus ou como união de vários indivíduos para o cumprimento de ritos
religiosos”26. No primeiro caso, tratamos da relação fundamental entre o Criador e a criatura, a
ver, do modo como o Criador se relaciona com a criatura em uma comunicação baseada na Fé
verdadeira do segundo e na existência real e singular do Primeiro. No segundo caso, estamos a
presenciar o conjunto de cerimônias que constituem o modus vivendi de uma civilização em relação a sua Religião, ou melhor, a liturgia moral de uma tradição. Por isso, como vemos, a Religião
não é apenas a “comunicação” com Deus, mas também a base de sustentação da autoridade de
uma tradição no que diz respeito aos seus valores morais.
Nesse contexto, a realidade cultural de uma tradição é o devir contínuo dessa liturgia
moral, sendo que a Religião é a base fundamental de sustentação dessa dinâmica da civilização.
Por essa razão, grande parte da escola antropológica realista afirma que a cultura, assim como
a civilização que é seu produto, não se sustenta nem se justifica realmente sem uma grande tradição religiosa27.
Otto Maria Carpeaux diz que uma tradição se estrutura pela “escolha” feita pela autoridade e pela “continuidade”. Adiante, acrescenta que a cerimônia e a transmissão entre gerações
formam o próprio caráter pedagógico da tradição28.
A “escolha” da autoridade, a saber, a seleção dos valores constitutivos da tradição é obra
da Religião, ao passo que a continuidade e a pedagogia são tarefas da própria cultura. Eis aí,
portanto, a base ontológica de uma civilização: religião, autoridade, tradição, valores e cultura.
Dentro da questão, podemos referir cultura como sendo a própria causa originária da
ontologia da realidade antropológica, de maneira que o modo de existência histórica do homem
é uma dinâmica que atualiza os valores da tradição no tempo e no espaço, seja concretizando-os ou ainda colocando-os à prova diante da diversidade. Nesse aspecto, a investigação ofertada
pelas ciências práticas na busca da verdade e da essência das coisas em vínculo com a metafísica,
do qual derivam, mostra-se conectada a cultura. O potencial investigativo de cada ciência está
em conexão com a dinâmica cultural, assim como as artes ou mesmo a própria filosofia29.
Há uma unidade central na cultura, que lança raízes sobre a filosofia, as artes e as ciências.
Por isso, apoiada nos valores da tradição, a cultura transborda uma centralidade axiológica que
atinge a toda a realidade cosmológica da pessoa humana em sua existência histórica30.
Fica claro, disso, que a cultura, apoiada na tradição religiosa e na escala selecionada de
valores surgidos daí, condiz com a forma existencial do humano na história e, assim, com a
transformação mesma do homem que produz e atualiza a civilização. Dentro dessa linha, a cultura passa a ser o mundo reflexivo do homem em relação ao plano supra-racional da Religião.
Porém, como também é centrada na história, possui uma raiz fundada na concepção antropolóFERRATER MORA, José. Diccionario de Filosofía, p. 1612.
RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância: o cristianismo e as grandes religiões do mundo, p. 59. GUÉNON, René. La
crisis del mundo moderno, p. 30. GIRARD, René. Los orígenes de la cultura, p. 83 e seguintes.
28
CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos: volume I, p. 204.
29
FERRATER MORA, José. Diccionario de Filosofía, p. 378.
30
FERRATER MORA, José. Diccionario de Filosofía, p. 378.
26
27
29
Artigo 2
gica e, por isso, essencialmente política.
Cultura e Política
Se, como diz Aristóteles, o homem “é um ser vivo político”31, o é porque não sobrevive
isoladamente, mas em comunidade. E, por essa razão, a existência política do homem é uma
existência que se realiza na comunicação – logos – com os outros e, daí, no modo como o ser humano se insere em uma sociedade e, disso, na civilização.
A existência histórica do homem, por sua vez, é uma existência política32, pois enquanto
animal político dotado de razão e palavra (logos), o homem é um ser histórico e concreto que age
para realizar os valores e para transformar a realidade dinamizando a cultura.
Como se vê, a política, enquanto dimensão essencial do homem ou então como ciência
prática investigativa, está abraçada a cultura. Desta, a política se sustenta pelos valores da tradição e pelo dinamismo cultural provocado na civilização, para daí então cuidar do modo de
organizar racionalmente uma comunidade política33.
A cultura é a dinâmica da civilização, a política é o devir genético de uma comunidade. A
cultura é a operação dos valores, a política é a concreção dos mesmos. Cultura e política, embora
distintas, andam juntas, em uma relação simbiótica em que a política encontra na cultura o seu
ponto de apoio. Sim, pois os valores originários da cultura (tradição) são os pontos cardeais para
que a política se mantenha fiel a sua raiz ontológica: existência humana em sociedade. Sim, pois,
política sem tradição é igual a poder sem limites, cujo resultado é o totalitarismo34.
Multiculturalismo e o encontro de tradições
O multiculturalismo como intercâmbio cultural: o encontro entre tradições
Vimos como a cultura é entendida a partir de sua consideração originária e ontológica.
Dentro disso, também tratamos do ponto que sustenta a própria existência da cultura: a tradição. E, como a realidade é composta de várias tradições, precisamos averiguar de que maneira
o encontro entre diferentes tradições se resolve. No mundo atual, o termo “multiculturalismo”
passou a ser utilizado justamente para indicar a convivência em uma mesma esfera pública de
várias tradições. A esfera pública a que referimos pode ser entendida no plano local de cada
Estado ou ainda no plano das relações internacionais com a globalização. De qualquer modo,
o problema do choque entre tradições é um problema que vai além da mera análise político-geográfica, sendo que o modo de se solucionar tais questões é obra da força civilizatória de cada
cultura em sua abertura para o diálogo, buscando-se, assim, descobrir quais os valores comuns
ARISTÓTELES. Política, p. 15.
VOEGELIN, Eric. A Nova Ciência da Política, p. 17.
33
Sobre a questão, ver FERRERO, Guglielmo. Poder: los genios invisibles de la ciudad, p. 87 e seguintes.
34
HUYN, Hans Graf. Sereis como Dioses: vicios del pensamiento político y cultural del hombre de hoy, p. 211. Diz o autor que
“os regimes totalitários, certamente, mas também nessas sociedades ‘livres’ empapadas de materialismo, o culto ao ego próprio
do homem autônomo, esse homem que se sente o umbigo do mundo, vem a fazer impossível a convivência entre os homens. O
homem autônomo não pode erigir-se em um deus para o homem. Se tudo for lícito, nada mais terá sentido, e se há de ser factível
qualquer coisa, tudo poderá ser destruído”.
31
32
30
TRADIÇÃO E MULTICULTURALISMO: O PAPEL CIVILIZATÓRIO DO
ESTADO CONSTITUCIONAL NO INTERCÂMBIO CULTURAL
entre tradições distintas.
Em uma tradição cultural, os valores iniciais servem de parâmetro crítico para a novidade
que vai surgindo no desenvolvimento da cultura. Mas, cabe a pergunta: como a novidade cultural vai sendo depurada e como se junta ao contexto cultural interno de uma tradição?
O choque entre culturas, isto é, o contato entre uma tradição e outra nas respectivas dinâmicas civilizacionais de cada uma, se armazena em duas etapas: na primeira, correspondente
ao plano existencial, o contato primário se estabelece mediante um conflito prévio em que a
apreensão da realidade simbólica alheia se dá de forma primária, isto é, pelo mero dado da sensibilidade civilizacional. Nesse momento, sucede a incorporação de alguns valores comuns entre
ambas tradições. Já na segunda etapa, quando a tradição já absorveu os pontos aparentemente
concordes da novidade cultural simbólica (outra tradição cultural), submete tais valores comuns
absorvidos à contextos sociais mais amplos, a fim de averiguar a aplicação concreta de tais símbolos, estabelecendo, assim, a extensão de seus “reais” valores comuns. Isto é assim porque, nesse segundo estágio, os símbolos incorporados serão testados e avaliados pela tradição. Caso o
teste prático resulte afirmativo, tais valores são introjectados na tradição, passando a fazer parte
do contexto civilizacional respectivo.
Permite-se, assim, um exame concreto de tais símbolos novos na realidade existencial da
tradição receptora, verificando-se a compatibilidade prática do que foi absorvido como cultura
no próprio ambiente interno de cada civilização.
À essa incorporação simbólica precedida de um choque de tradições chamamos de intercâmbio cultural. O intercâmbio entre culturas, assim, ocorre quando uma tradição possui abertura para a novidade de outras tradições, incorporando valores comuns entre ambas. O intercâmbio, nesse sentido, aparece como modo atual de solução dos problemas do multiculturalismo,
pois demonstra o caminho para consenso prático entre os diferentes modos do existir humano.
Por outro lado, o desenvolvimento cultural ocorre por meio de uma transmissão contínua
dos valores fundamentais de uma tradição. A bem da verdade, não há cultura sem um “iter”.
Aí se trava a chamada dialética civilizacional, a saber, a continuidade litúrgica dos valores de
uma tradição em contraste constante com as novidades simbólicas de outras tradições, em que
se depuram os valores incompatíveis e se incorporam os valores comuns.
O choque entre o que já é cultura e o que está por ser, não ocasiona apenas a atualização
da própria tradição e de todas as suas potencialidades de abertura para o diálogo, senão também
a transmissão dos valores originários dessa mesma cultura para as gerações futuras, mostrando-se, com isso, a perenidade dos valores fundamentais na história concreta do existir humano em
uma civilização.
Os valores comuns como expressões da verdade comum do ser humano
Ratzinger, em seu Fé, Verdade e Tolerância, afirma que “a inculturação pressupõe (...) a universalidade potencial de cada cultura. Pressupõe que em todas atue a mesma essência humana,
31
Artigo 2
e que nelas viva uma verdade comum do ser humano, uma verdade que tende à união”35.
O intercâmbio mostra-se presente sempre que uma tradição possua abertura para a novidade simbólica de outra cultura, desde que os valores de ambas sejam comuns. No mais das
vezes, porém, a abordagem que se faz sobre valores comuns costuma ser feita sobre pontos
acidentais, impendindo-se, assim, o caminho para o consenso. Isto porque quando se trata de
choque entre culturas, comumente se verifica a própria cerimônia de cada tradição e o que há
de comum entre liturgias culturais. Ora, como cada cultura possui uma base de sustentação vinculada a uma dada Religião, e, ainda, como cada religião possui liturgias distintas, é corrente se
pensar que o intercâmbio é impossível.
No entanto, o intercâmbio não está na averiguação de características comuns da liturgia
das tradições religiosas, mas sim no fundamento comum de ambas com relação ao tratamento
dado ao ser humano. Por isso, o encontro intercambiante não é tanto um problema de encontrar
hábitos comuns entre religiões (o que é extremamente difícil), mas sim o de verificar como cada
tradição trata da dimensão antropológica da realidade. Ou seja, quais são os valores da pessoa
humana que sustentam uma tradição acima de tudo, bem como tais valores são entendidos em
sua perspectiva universal.
Desse modo, o encontro de tradições será precedido de uma etapa prévia de investigação
a partir da própria cultura, para então se poder avaliar como o encontro será efetuado. Essa etapa prévia será indispensável porque aí os valores humanos serão detectados e então submetidos
a contextos sociais mais amplos. Na sujeição à universalidade, os valores poderão ser intercambiados em outra tradição quando corresponderem também a esta.
Nesse sentido, os valores relativos ao ser humano, enquanto expressões da verdade comum de toda e qualquer pessoa humana, serão necessariamente descobertos em cada tradição,
para daí serem submetidos ao processo de intercâmbio. Aí, isto é, no encontro de culturas, tais
valores serão a base de sustentação da viabilidade do diálogo e do consenso.
O multiculturalismo, assim, pode ser resolvido quando as tradições culturais existentes em uma
mesma esfera pública (local ou global) possuírem uma abertura para a universalidade, assim como
uma concepção verdadeira acerca da pessoa humana, entendendo-a como epicentro da sociedade.
Entre as grandes tradições religiosas, a pessoa humana figura como fundamento do corpo
social, sendo entendida como ser digno à alguns direitos que lhe são inalienáveis. O intercâmbio
entre culturas é facilitado quando essa orientação comum é detectada em cada uma das tradições em questão36.
Qual o papel da política no multiculturalismo?
O papel da política no multiculturalismo é o de servir de força civilizatória para que a
verdade comum do ser humano apareça como finalidade das instituições que regem o espaço
público onde o encontro das diferentes tradições se sucede.
35
36
RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância: o cristianismo e as grandes religiões do mundo, p. 59.
RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância: o cristianismo e as grandes religiões do mundo, p. 59.
32
TRADIÇÃO E MULTICULTURALISMO: O PAPEL CIVILIZATÓRIO DO
ESTADO CONSTITUCIONAL NO INTERCÂMBIO CULTURAL
Vimos que o consenso entre tradições culturais e religiosas distintas é possível quando
há universalidade e vontade comum de tratar a pessoa humana como fundamento e finalidade.
O ser humano, enquanto ser político, é voltado para a vida em comunidade. Mas a convivência
com o diferente, com o novo, com o estranho, é sempre muito difícil. É algo que exige o teste
prático da existência concreta para que o consenso ocorra de modo lento e gradual.
A comunidade é a pressuposição para a realização do ser humano e, por isso, cada pessoa
humana – por sua condição política nuclear – necessita de outras para atualizar suas potencialidades humanas fundamentais. A saber: o homem procura “ser pessoa” de modo potencial. E,
para que possa desenvolver-se a fim de existir “sendo” pessoa, indispensável é que coexista com
o “outro”, em uma comunidade disposta a bem viver e a bem coexistir37.
Conquanto haja uma comunidade que oferta aos seus indivíduos a possibilidade de exercerem, cada qual, suas liberdades em busca de existirem enquanto seres humanos38, aí estará a
verdadeira comunidade humana política. Sim, pois, enquanto espaço das liberdades, a comunidade permite o desenvolvimento potencial de seus membros, atuando também como ponto
cardeal na dinâmica da cultura, pois abre espaço para que a “novidade” engendrada pelo livre
atuar de seus membros se transforme também em cultura mediante a depuração cultural.
Ademais, a política, entendida aqui como meio civilizatório de regular conflitos surgidos
internamente na comunidade39, também o é enquanto modo de transmitir os valores da tradição
para as gerações futuras, buscando realizar uma gama de finalidades comuns almejadas no seio
da própria comunidade.
E é justamente a “gama de fins comuns”40 que constitui o aspecto civilizatório da política.
Isso se deve ao fato de que os “fins comuns” são conceituações políticas do que na verdade são
os valores de uma tradição. Ou seja, no plano político, os valores constitutivos da cultura são entendidos como objetivos almejados na solução dos conflitos internos da comunidade. Daí dizer
que a política é uma dimensão importante da cultura, subordinada a esta e dela dependente41.
De fato, não há política sem comunidade. Tampouco comunidade sem cultura. Ora, se a
tradição cultural é a própria identidade de uma comunidade no sentido existencial, e esta é por
natureza “política” (uma vez que composta de seres vivos políticos42), não há dúvida de que a
política é também o braço imperativo da tradição cultural43, vez que oferece os modos de solução
dos conflitos com base na transmissão dos valores culturais originários para as futuras gerações.
Em uma frase: se a atualização da cultura é o que liga uma geração à outra, a política serve como
ponte para tanto, pois enquanto meio, a política opera um tipo de relação na realidade existenPOLO, Leonardo. La persona humana y su crecimiento, p. 10.
Afirmamos, com base em Aristóteles, que o ser humano só “existe” efetivamente enquanto ser comunitário, pois fora da
comunidade não existe vida humana. Aristóteles diz que fora da pólis só existe Deus ou a bestialidade. ARISTÓTELES. Política,
p. 55.
39
FREUND, Julien. Che cos`è la política?, p. 19 e 254.
40
FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights, p. 152. FINNIS diz que “mais que a multiplicidade de interações, o constitutivo
dos grupos humanos, das comunidades e das sociedades, é a participação em uma meta (...), o propósito compartido de A e B
de que suas atividades estejam coordenadas, ou por que querem a interação coordenada por si mesma ou então por quererem
um objetivo compartido ulterior”.
41
FREUND, Julien. Che cos`è la política?, p. 254.
42
ARISTÓTELES. Política, p. 53.
43
FREUND, Julien. Che cos`è la política?, p. 254.
37
38
33
Artigo 2
cial em que a atualização dos valores da pessoa humana na ordem concreta corresponde a força
civilizatória que está no alicerce do modo de regular conflitos.
Diante disso, resta verificar de que tipo de comunidade se está tratando quando se analisa
o mundo contemporâneo. Na verdade, a política é a natureza de toda e qualquer comunidade
composta de homens44. Porém, sua maneira de resolver os problemas derivados da convivência
humana varia conforme a época e o lugar. Na atualidade, o multiculturalismo exige uma tarefa
mais difícil para a política: o de servir como marco consensual para as diferentes tradições religiosas e culturais.
Nesse particular, então, importa considerar o modo como a atual política trabalha em direção ao consenso entre tradições. E tal modo chama-se Estado Constitucional.
O estado constitucional como força civilizatória no marco do encontro entre tradições
O Estado Constitucional é o casamento bem sucedido entre a unidade política contemporânea e a Constituição. Tal casamento pode ocorrer mediante a mera formalidade jurídico-política de se elaborar uma Constituição e submeter o Estado ao seu poder normativo. Porém,
tal casamento por si só não responde ao problema do multiculturalismo. Desde o século XVIII
esse casamento acontece em praticamente todos os Estados do mundo ocidental. Porém, do período alto do iluminismo até a primeira metade do século XX o constitucionalismo mostrou ser
muito diferente do que é hoje45.
De fato, a resposta do Estado Constitucional ao problema não está no casamento em si,
mas no modo como a Constituição é feita e como trata das relações políticas ocorridas no Estado.
Nesse sentido, o Estado Constitucional aparece como o modelo contemporâneo de solucionar os
problemas decorrentes do conflito entre tradições46, isto é, como conjunto de instituições políticas e jurídicas voltadas para a defesa e promoção de valores comuns da pessoa humana47.
De fato, é o Estado Constitucional um tipo de Estado constituído após a segunda guerra
mundial na Europa Continental48. Com o término das catástrofes totalitárias que varreram a Europa em nome de ideologias salvacionistas, utópicas e gnósticas49, os Estados europeus sentiram
a necessidade de buscar meios efetivos para a defesa e promoção dos valores da pessoa humana.
Para isso, fizeram com que tais valores passassem a ser “categoria jurídica”, isto é, se tornassem
normas jurídicas obrigatórias. Para tanto, depositaram tais valores no texto das Constituições do
pós-guerra, tornando-as modos legítimos e eficazes de defesa da pessoa humana.
Além disso, tais Constituições também se preocuparam com a maneira política-estrutural
de aplicar tais normas axiológicas na realidade.Assim, em sentido morfológico, os Estados euARISTÓTELES. Ética Nicomáquea, p. 132 e seguintes.
FRIEDRICH, Carl. Teoría y realidad de la organización constitucional democrática (en Europa y América), p. 35.
46
Sobre constitucionalismo e tradição, ver PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do Direito, p. 38 e seguintes.
47
FRIEDRICH, Carl. Teoría y realidad de la organización constitucional democrática (en Europa y América), p. 30. Tratando
das origens históricas do constitucionalismo, FRIEDRICH nos diz que “essa fé no valor de cada um dos seres humanos obriga
a buscar um equilíbrio (...) em algum sistema de limitações que proteja o indivíduo, ou pelo menos as minorias, contra todo
exercício despótico da autoridade política”.
48
FRIEDRICH, Carl. Gobierno Constitucional y Democracia, p. 637 e seguintes. GRASSO, Pietro Giuseppe. El problema del
constitucionalismo después del Estado Moderno, p. 74 e seguintes. KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito, p. 46.
49
VOEGELIN, Eric. A Nova Ciência da Política, p. 85 e seguintes.
44
45
34
TRADIÇÃO E MULTICULTURALISMO: O PAPEL CIVILIZATÓRIO DO
ESTADO CONSTITUCIONAL NO INTERCÂMBIO CULTURAL
ropeus também construíram, a partir do marco normativo do novo constitucionalismo, um modelo de instituições políticas estatais voltadas para a defesa e realização dos valores da pessoa,
limitando rigorosamente o poder político por intermédio do Direito Constitucional50.
Portanto, o Estado Constitucional aparece como marco civilizatório51: torna a Constituição um documento normativo vinculante, expositor de valores fundamentais para o ser humano, ao tempo em que oferta um modelo de instituições voltadas para a promoção desses valores.
Em sentido formal, portanto, a Constituição serve de parâmetro para o Direito e para a política,
sendo verdadeiro ponto de partida para o modo de operar jurídica e politicamente do Estado.
Em sentido material, a substância da Constituição contemporânea está na afirmação positiva
que faz sobre os valores do ser humano, definindo o que é fundamental para a existência humana concreta, existencial e integral.
Nesse particular, fica claro que o Estado Constitucional assume uma tarefa típica do mundo atual: a de servir como meio de solução de conflitos multiculturais, ou seja, de auxiliar as
culturas no encontro da verdade comum do ser humano. E isso é assim porque estamos vivendo
um momento da história em que as tradições estão convivendo, como foi dito, em uma mesma
esfera pública concomitantemente global52 e local53.
O Estado Constitucional aí assume o empenho de ajudar no encontro entre tradições culturais. O encontro nem sempre é fácil e, por vezes, pode demorar até mesmo gerações para
que a paz se conquiste. Porém, o auxílio fornecido pelo Estado Constitucional nesse processo
evolutivo de intercâmbio cultural está na procura que faz para ofertar um mínimo de valores
comuns da pessoa humana nos países em que se faz presente. Por essa razão, enquanto Direito
do Estado, a Constituição como documento jurídico-político do Estado Constitucional, aparece
como mosaico de valores do humano para o atuar político do Estado.
O Direito Constitucional atual, então, é o Direito dos valores, mais aberto aos requerimentos da política constitucional54, embora mais firme na defesa da pessoa humana. O caráter aberto
permite um certo grau de suavidade em suas estruturas55, o que permite que a Constituição se
mantenha aberta para as novidades culturais que possam ser inculturadas na realidade de um
Estado. Porém, nesse mesmo aspecto, a Constituição se mostra firme no propósito de promover
os valores comuns do ser humano, submetendo tais novidades ao marco avaliativo desses princípios.
FRIEDRICH, Carl. Teoría y realidad de la organización constitucional democrática (en Europa y América), p. 123.
FRIEDRICH aduz que o constitucionalismo implica em “uma técnica de estabelecer e manter limitações efetivas a ação política
e governamental”.
51
Nesse sentido, ACKERMAN, Bruce. La política del diálogo liberal, p. 53. ACKERMAN fala do caso Alemão, em que a Lei
Fundamental de Bonn serviu de marco civilizatório no período posterior ao regime nazi vigorante durante a segunda guerra.
A esse respeito, diz que “o cenário do Novo começo faz uso de símbolos expressivos, não de imperativos funcionais. Sob
esse cenário, uma constituição emerge como um indicador simbólico de uma grande transição na vida política de uma nação.
Por exemplo, resulta impossível compreender o êxito extraordinário do Tribunal Constitucional Alemão – tanto em termos
jurisprudenciais como de autoridade efetiva – sem reconhecer que a Lei Fundamental se converteu, para a sociedade em seu
conjunto, em um símbolo central da ruptura da nação com seu passado nazi”.
52
TRUYOL Y SERRA, Antonio. La sociedad internacional, p. 137.
53
A Globalização é um fenômeno maior que a mera troca econômica: globalização significa a existência de uma esfera pública em
que ocorre o encontro entre diferentes tradições religiosas culturais, a saber, onde é possível o choque e o diálogo entre distintas
civilizações.
54
ACKERMAN, Bruce. La política del diálogo liberal, p. 99.
55
Ver ZAGREBELSKI, Gustavo. Historia y Constitución, p. 13 e seguintes.
50
35
Artigo 2
Por isso, a Constituição aparece como marco civilizatório na busca do consenso entre tradições56. Antigamente, a política do Estado Constitucional era voltada para resolver problemas do pluralismo político, ou seja, diversidade ideológica de fundo programático.
Porém, o multiculturalismo é muito diferente do pluralismo57. Se o pluralismo é uma condição para
a democracia política, o multiculturalismo é uma realidade correlativa a existência humana concreta e existencial na história.
Empiricamente, o multiculturalismo existe desde a fundação das tradições na história do
homem. Porém, em nosso tempo, esse problema aparece de modo latente com a chamada globalização. E, diferentemente do pluralismo em que o consenso se trava mediante o conflito de
ideologias em uma mesma tradição e dentro de um Estado, o multiculturalismo é um problema
que vai além do plano interno do Estado e do plano político ideológico do conflito plural de uma
democracia.
Multiculturalismo diz respeito ao choque entre tradições. O Estado Constitucional é um
modo de resolver mais do que meros problemas de natureza político-ideológica. Diz respeito aos
valores comuns da pessoa humana que são o próprio objeto do Estado Constitucional. Como,
então, o Estado Constitucional pode auxiliar na solução do problema do multiculturalismo?
Evidentemente que o Estado Constitucional não resolve problemas em escala internacional. Porém, em nível local, seu papel civilizatório é importantíssimo, pois ao promover os valores comuns do ser humano, também promove valores comuns entre tradições culturais distintas,
auxiliando, assim, na tarefa de conciliar diferentes perspectivas culturais. Por isso, o Estado
Constitucional é o modo de existência institucional da comunidade política contemporânea,
sendo verdadeiro meio eficaz de solução dos problemas surgidos a partir da convivência comum
na mesma esfera pública.
A política é, ao mesmo tempo, algo correlato a natureza humana, a história concreta e ao
devir de uma civilização. Em todos esses significados, a política aparece ligada ao homem e seu
desenvolvimento na história, na comunidade e na plenitude de sua forma existencial. Nesse
sentido, a política é a própria existência humana em sua dimensão ontológica. Por se radicar no
homem e, assim, na comunidade de pessoas, a política possui o caráter civilizatório de servir
como meio de solucionar conflitos58.
O modo institucional encontrado na política contemporânea para tanto foi o Estado Constitucional. O modo axiológico encontrado foi o feixe de valores, comuns entre tradições, que condizem com a natureza da pessoa humana, algo comunicado entre todas as tradições, vez que todas tratam do homem em sua forma existencial. O Estado Constitucional, então, é a morfologia
política atual para o cumprimento dessa tarefa: reunião de instituições e valores voltados para a
plenitude da pessoa humana, seja no ambiente interno de uma tradição, ou ainda no marco do
encontro entre diferentes tradições.
ACKERMAN, Bruce. El futuro de la revolución liberal, p. 73.
Sobre as diferenças entre pluralismo e multiculturalismo, ver SARTORI, Giovanni. Pluralismo, Multiculturalismo e estranei:
saggio sulla società multietnica, p. 55.
58
FREUND, Julien. Che cos`è la política?, p. 19.
56
57
36
TRADIÇÃO E MULTICULTURALISMO: O PAPEL CIVILIZATÓRIO DO
ESTADO CONSTITUCIONAL NO INTERCÂMBIO CULTURAL
Referências
ACKERMAN, Bruce. La política del diálogo liberal. 1ª ed. Barcelona: Gedisa, 1999.
ACKERMAN, Bruce. El futuro de la revolución liberal. 1ª ed. Barcelona: Ariel, 1995.
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 5ª ed. São Paulo: perspectiva, 2001.
ARISTÓTELES. Política. 1ª ed. Lisboa: Vega, 1998.
ARISTÓTELES. Ética Nicomáquea. 1ª ed. Madrid: gredos, 1985.
CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos: volume I. 1ª ed. Rio de Janeiro: UniverCidade,
1999.
DOS SANTOS, Mário Ferreira. Dicionário de Filosofia e Ciências culturais. 1ª ed. São Paulo:
Matese, 1963.
DOS SANTOS, Mário Ferreira. Filosofia concreta dos valores. 1ª ed. São Paulo: logos editora,
1960.
FERRATER MORA, José. Diccionario de Filosofía. 5ª ed. Buenos Aires: Sudamericana, 1964.
FERRERO, Guglielmo. Poder: los genios invisibles de la ciudad. 2ª ed. Madrid: tecnos, 1998.
FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights. 1ª ed. Oxford: clarendon press, 1980.
FREUND, Julien. Che cos`è la política?. 1ª ed. Roma: ideazione editrice, 2001.
FRIEDRICH, Carl. Tradição e Autoridade em Ciência Política. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
FRIEDRICH, Carl. Gobierno Constitucional y Democracia. 1ª ed. Madrid: Instituto de estudios
políticos, 1975.
FRIEDRICH, Carl. Teoría y realidad de la organización constitucional democrática (en Europa
y América). 1ª ed. México: fondo de cultura, 1946.
GIRARD, René. Los orígenes de la cultura. 1ª ed. Madrid: Trotta, 2006.
GRASSO, Pietro Giuseppe. El problema del constitucionalismo después del Estado Moderno.
1ª ed. Madrid: Marcial Pons, 2005.
GUÉNON, René. La crisis del mundo moderno. 1ª ed. Barcelona: paidós, 2001.
HUYN, Hans Graf. Sereis como Dioses: vicios del pensamiento político y cultural del hombre
de hoy. 1ª ed. Barcelona: eiunsa, 1991.
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. 1ª ed. Lisboa: calouste gulbenkian, 2004.
LAVELLE, Louis. Studi sul pensiero contemporaneo. 1ª ed. Milano: Fratelli bocca, 1943.
LONERGAN, Bernard. Collected Works: philosophical and theological papers. 1ª ed. Toronto:
University of Toronto press, 1996.
MONDIN, Batista. Os Valores Fundamentais. 1ª ed. Bauru: Edusc, 2005.
PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do Direito. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
PAULO II, João. Memória e Identidade. 3ª ed. Buenos Aires: Planeta, 2005.
POLO, Leonardo. La persona humana y su crecimiento. 2ª ed. Pamplona: Eunsa, 1999.
RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância: o cristianismo e as grandes religiões do mundo.
1ª ed. São Paulo: Instituto brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2007.
REALE, Giovanni. O saber dos antigos: terapia para os tempos atuais. 1ª ed. São Paulo: Loyola,
1999.
SARTORI, Giovanni. Pluralismo, Multiculturalismo e estranei: saggio sulla società multietnica.
1ª ed. Milano: SuperBur, 2002.
STRAUSS, Leo. ? Progreso o retorno?. 1ª ed. Barcelona: paidós, 2004.
TRUYOL Y SERRA, Antonio. La sociedad internacional. 2ª ed. Madrid: Alianza editorial, 2004.
VOEGELIN, Eric. A Nova Ciência da Política. 1ª ed. Brasília: UnB, 1979.
37
Artigo 2
VOEGELIN, Eric. Order and History, volume III: Plato and Aristotle. 1ª ed. London: University
of Missouri press, 2000.
ZAGREBELSKI, Gustavo. Historia y Constitución. 1ª ed. Madrid: Editorial Trotta, 2005.
ZUBIRI, Xavier. El Hombre y la Verdad. 1ª ed. Madrid: Alianza editorial, 1966.
38
QUESTÃO FUNDIÁRIA: POSSE TRADICIONAL E PROPRIEDADE
PRIVADA DA TERRA, ENTRE BRASIL E CABO VERDE.
QUESTÃO FUNDIÁRIA: POSSE
TRADICIONAL E PROPRIEDADE
PRIVADA DA TERRA, ENTRE BRASIL E
CABO VERDE
Carolina dos Anjos de Borba1
Resumo
O presente trabalho intenciona analisar os processos sociais que possibilitaram a ascensão de
descendentes de escravos como possuidores de terra em contextos pós-coloniais. O debate ora
suscitado busca eleger como foco de reflexão as relações que produzem discursos de verdade,
nos quais antigos rendeiros (Cabo Verde) e quilombolas (Brasil) não se constituem facilmente
na figura de proprietários. As teorias do Estado de Exceção leem esses fenômenos de oscilação
política como uma forma peculiar de resguardar a segurança pública em um paradigma
arbitrário de governo. Sendo assim, serão apresentados argumentos que vislumbrem a
insegurança fundiária nos dois países em um quadro complexo do referido Estado de Exceção,
que mescla elementos étnicos e políticos. Neste fulcro, serão apresentados dois universos
rurais: São Salvador do Mundo (Cabo Verde) e Canguçu (Brasil) - o primeiro assistiu às fortes
disputas territoriais entre morgados e rendeiros, passando pelo projeto de Reforma Agrária
e, atualmente, encontra-se sob a posse de pequenos agricultores; o segundo experimentou
as variadas transformações históricas no que se refere à questão fundiária sulina, bem como
concentrou em seu espaço territorial um grande número de trabalhadores escravos no séc.
XIX. Além disso, as duas localidades oferecem materiais etnográficos densos para trabalhar a
questão teórica “terra-segurança”.
Palavras-Chave: Propriedade da terra. Estado de Exceção. Quilombolas, Rendeiros.
Abstract
This paper intends to analyze the social processes that enabled the rise of the descendants of
slaves as having land in postcolonial contexts. The debate raised now seeking election as a focus
for reflection relations that produce discourse of truth, in which former tenants (Cabo Verde) and
maroon (Brasil) are not easily figure of the owners. Theories of the state of exception read these
oscillation phenomena in politics as a peculiar form of protecting public safety in a paradigm
of arbitrary government. Thus, arguments are presented that envisage tenure insecurity in both
countries in a complex picture of that state of exception that ethnic and political mix. This core will
be presented two rural universes: the São Salvador do Mundo (Cabo Verde) and Canguçu (Brasil)
- the first attended the strong territorial disputes between heirs and tenants, through the agrarian
reform project and currently is under possession of small farmers, the latter tried the various
historical transformations in relation to the southern land issue, and focused on their territorial
space a large number of slave laborers in the century. XIX. In addition, both locations offer dense
ethnographic materials to work the theoretical question “land- security.”
Keywords: Land Ownership. State of Exception. Quilombolas. Rendeiros.
1
Advogada, Mestre e Doutora em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do
ul. [email protected].
S
39
Artigo 3
1 Introdução
Este artigo propõe-se a debater a questão fundiária no Brasil e em Cabo Verde com base
em estudo comparativo destinado a relacionar terra, segurança e raça em contextos pós-coloniais. Para tanto, escolheu-se dois universos empíricos a se espelharem mutuamente produzindo uma série de questionamentos capazes de reproblematizar questões cruciais no que tange à
emergência de descendentes de escravos como proprietários de terra. Em Cabo Verde, a análise
será proposta a partir do caso paradigmático do Município de São Salvador do Mundo (Picos)
– Ilha de Santiago; enquanto no Brasil, optou-se por apresentar a comunidade quilombola de
Maçambique -– Canguçu-RS.
Diversos processos históricos provocaram modificações importantes nas relações sociais
constituídas no meio rural cabo-verdiano - tais como a decadência dos morgados, a independência nacional, a reforma agrária, entre outros. É Relevante destacar as questões raciais envolvidas
no que tange à propriedade da terra: a população negra, durante longo período de colonização,
via-se excluída dos meios de produção, os quais eram monopolizados pelos pouco brancos que
estiveram no país. Em razão desse quadro, os confrontos entre “morgados e rendeiros” foram
uma constante na biografia das Ilhas, sobretudo, na Ilha de Santiago, onde a atividade agrária
era mais intensa.
O processo de concentração fundiária nas mãos de um pequeno grupo de proprietários sofreu alterações importantes com a Independência Nacional, ocorrida em
1975, e com a iniciativa de Reforma Agrária. Entretanto, várias questões de ordem política
e social dificultaram a implementação da lei de bases que modificaram o cenário de aquisição de
direitos no campo. Sendo assim, encontram-se atualmente, no município estudado, realidades
distintas: agricultores antes rendeiros de portugueses que após a independência deixaram de
pagar arrendamento, mas não detêm o direito de propriedade; agricultores que continuam na
condição de rendeiros mesmo no presente momento, além de pequenos proprietários que capitalizaram seus esforços principalmente, por meio das emigrações.
No que se refere à história agrária do Rio Grande do Sul – BR buscar-se-á enfocar o regime
de apropriação da terra e sua interface com a atual vulnerabilidade das comunidades quilombolas no Estado. Tendo por objetivo entender alguns dos processos sociais que envolveram tal
modelo de organização fundiária, serão investigados determinados engendramentos políticos
que impediram a efetivação do direito de propriedade por parte de alguns setores sociais. Como
será detalhado adiante, o mito do progresso econômico e da modernidade atingiu o ideário das
elites agrárias gaúchas no século XIX. Assim sendo, elas perseguiram tal quimera sem, contudo,
modificar o quadro de privilégios que lhes eram garantidos. Nesse cenário, a opção de povoamento do Estado por imigrantes europeus vem imbuída de um complexo de concepções que
vislumbram tais agricultores com “agentes do progresso”.
O projeto de colonização, ora citado, agravou ainda mais a situação fundiária das comunidades étnicas e dos lavradores nacionais, que por inúmeras razões, sejam por mecanismos for40
QUESTÃO FUNDIÁRIA: POSSE TRADICIONAL E PROPRIEDADE
PRIVADA DA TERRA, ENTRE BRASIL E CABO VERDE.
mais e/ou informais, viram-se excluídos do processo de regularização de suas posses. Esse quadro
encontra ainda hoje reflexos na ordenação agrária do território: tanto povos indígenas quanto
comunidades negras perseguem secularmente a titulação de suas terras tradicionais, sem sucesso.
Importante destacar, que não se tem aqui a pretensão de esgotar as temáticas históricas,
nem tão pouco fazer encadeamentos causais diretos entre passado e presente, mas apresentar
algumas pistas que parecem demonstrar as tensões em torno de um perfil étnico para os “proprietários de terras”, nos dois Países. O debate ora suscitado busca eleger como foco de reflexão
as relações que produzem discursos de verdade, nos quais antigos rendeiros e quilombolas não
se constituem facilmente na figura de proprietários titulados. Sendo assim, serão apresentados
argumentos que vislumbrem a insegurança fundiária nos universos elencados em um quadro
complexo de Estado de Exceção que mescla elementos étnicos e políticos.
2 Comparando o incomparável
A utilização do método comparado surge diante da possibilidade de vislumbrar modos
de vida distintos de comunidades negras rurais, tanto no Brasil quanto em Cabo Verde, entretanto, identificados no que tange à necessidade de contraposições aos regimes coloniais. Já à
primeira vista, percebe-se nos dois países, que passaram pelo longo regime de exploração do império português, uma série de sequelas comuns herdadas das relações desiguais impingidas por
essa experiência, entre as quais a concentração fundiária e a segmentação racial. Sobrelevam-se,
nesse contexto, as incompletudes dos processos de efetiva democratização do acesso a terra,
esbarrando não raramente em interesses de elites consolidadas e/ou emergentes. Entretanto, importa para o presente trabalho destacar racionalidades a compor públicos que catalisam esforços
e arranjos sociais em torno de estratégias de segurança fundiária.
Portanto, o desafio de estabelecer elementos de comparação investe-se a partir da descrição do acontecimento “colonialidade” em contextos, ainda que diversos, mas, comuns em
resistência. Observar a segurança ou insegurança na terra em Maçambique - BR e em Picos – CV
pode fazer da comparação fecundo instrumento de investigação e evidenciar múltiplas ontologias de segurança fundiária. Para tanto, adotou-se no presente, a perspectiva comparativista
do Centre de Recherches Comparées sur lês Sociétés Anciennes (CRCSA), especialmente formulada
na obra de Marcel Detienne. Na obra “Comparar o Incomparável”, o autor tece forte crítica às
formas até então utilizadas no exercício de comparação, propondo a seguir uma nova maneira
de trabalho, levando em conta outras metodologias e observações:
Sem dúvida, haverá sempre historiadores prontos para defenderem a tese irredutível de que só se pode comparar aquilo que é comparável. [...] Pouco importa. [...]
Esqueçamos os conselhos, prodigalizados por aqueles que repetem há meio século,
de que é preferível instituir a comparação entre sociedades vizinhas, limítrofes e
que progrediram na mesma direção, de mão dadas, ou então entre grupos humanos que atingiram o mesmo nível de civilização e que, à primeira vista, oferecem de
modo suficiente homologias para navegar com toda segurança.2
2
DETIENNE, M. Comparar o incomparável. Aparecida (SP): Ideias & Letras, 2004, p.46.
41
Artigo 3
Na proposta do autor, os comparáveis não são as temáticas, mas “os mecanismos de pensamento observáveis nas articulações entre os elementos arranjados conforme a entrada [...]”.
(DETIENNE, 2004, p. 57). Desta feita, um tema deve sofrer uma “desmontagem lógica” a ponto
de permitir a descoberta das microconfigurações que, ao serem comparadas, deem conta de diferenças refinadas. Descoberto um traço significativo (o território), é preciso vislumbrá-lo como
parte de um conjunto de configurações, como um sistema articulado que o comparativista analisa como mecanismos de pensamento.
Em cada microconfiguração há uma orientação que, em cadeia, denota algumas escolhas, em
outras palavras, são as “placas de encadeamento” de escolhas “os comparáveis” nessas pesquisas.
As formas de estabelecer um território demonstram a direção de um modo político de
territorialização, por isso, reconstruir tais lógicas é parte de processos de montagem e desmontagem das gramáticas de escolhas feitas em cadeia. Nesse esforço, não está em questão fazer
analogias de coisas assemelhadas, mas analisar microssistemas de pensamentos elaborados por
sociedades que comportam complexas dinâmicas de relações e práticas sociais. Ao serem colocadas em perspectiva, as experiências de Picos e Maçambique podem produzir estranhamentos
poderosos que, ao final, poderão ser revertidos no profundo conhecimento de si próprios.
3 Terras e contextos: entre picos e Maçambique...
3.1Picos...
O Município de São Salvador do Mundo (Picos – Figura 2) foi escolhido em razão de ter
assistido às fortes disputas territoriais entre morgados e rendeiros no período colonial: passou
pela desintrusão dos absentistas na Independência Nacional; foi público do projeto de Reforma
Agrária e se encontra atualmente, sob fortes tensões no que tange ao uso e à propriedade da
terra. A partir desses marcos históricos, foi reconstituído o espaço de um dos morgadios mais
antigos do país nessa área, cujo donatário chamava-se João de Deus Tavares Homem.
Na busca de instrumentalizar as narrativas históricas das comunidades rurais pesquisadas, a investigação envolveu consultas ao Arquivo Público Nacional de Cabo Verde, ao Arquivo
das extintas Comissões de Reforma Agrária, bem como ao Arquivo do Banco Nacional Ultramarino em Portugal - já que o referido proprietário posteriormente perdeu as terras para o banco.
Entre as diversas formas de agenciamentos territoriais do mundo rural em Picos, elegeram-se as disputas pela terra e as narrativas de resistência como vetores de análise da feitura de
um universo singular. É a partir da escolha dessas memórias que se vislumbram os processos
de territorialização:
[...] o território não é primeiro em relação a marca qualitativa, é a marca que faz
o território. As funções num território não são primeiras, elas supõem antes uma
expressividade que faz território. É bem nesse sentido que o território e as funções
que nele se exercem são produtos da territorialização.3
3
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 4. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.
42
QUESTÃO FUNDIÁRIA: POSSE TRADICIONAL E PROPRIEDADE
PRIVADA DA TERRA, ENTRE BRASIL E CABO VERDE.
Para além de um espaço físico repleto de significados conferidos pelo modo de vida, o
território também adquire funções capazes de constituir subjetividades e fabricar corpus. Entre
as inúmeras localidades visitadas no município, em especial, as zonas de Achada Leitão e do
Bur-Bur, revelaram de maneira mais expressiva tais marcas qualitativas, isto porque, mesmo a
topografia montanhosa é apropriada para resistir ao esbulho de terra e ao controle do regime
de morgadio. Pela reconstituição da história oral, tem-se que, parte das famílias passou a residir,
em específico no Bur-Bur, como estratégia de empoderamento e autonomização. Ainda assim,
os camponeses entrevistados afirmaram que foram rendeiros de João de Deus Tavares Homem
e passaram por inúmeros infortúnios a fim de cumprir o pagamento das rendas ao proprietário.
A figura do referido proprietário é descrita das formas mais variadas, entretanto, é comum
aos depoimentos, a maneira arbitrária de apropriação das terras, bem como a rigidez na vigília
dos pagamentos das rendas, mesmo em tempo de seca.
A Sra. Alice Teixeira (86 anos), ao caracterizar João de Deus, relata que as cantadeiras na
época lhe faziam referência nas músicas:
N sabi ma el éra un proprietáriu grandi, até ki kantaderas poba el na kantiga: ‘João
de Deus Tavares Homem é nhu branku riku, téra tamanhu, marka só ku Dez na seu’. Porki
e ten téra na Piku li ki ninhun proprietáriu… el éra primeru proprietáriu.4
Refer�������������������������������������������������������������������������������
�����������������������������������������������������������������������������
ncias a capatazes circulando nas planta���������������������������������������
çõ�������������������������������������
es, impedindo com crueldade que agricultores procedessem à colheita quando inadimplentes ou a expulsão de famílias das terras, são
fatos constantemente relatados. Possivelmente, parte das terras de João de Deus tenha advindo
da Capela do Pico Vermelho, entretanto, a extens���������������������������������������
�������������������������������������
o tomou maior volume quando, em momentos de seca, as negociações dos terrenos eram mais favoráveis - consta que se trocavam ranchos
por alimentação.
Ainda, durante o período colonial, o Banco Nacional Ultramarino tomou os referidos
bens em razão de dívida contraída (hipoteca) e passou a vendê-los em hasta pública. Contudo,
a maior porção de terras foi adquirida por duas figuras: Mário Monteiro (português) e Antônio
de Barros, mantendo a tradição de concentração fundiária na Ilha de Santiago, ainda na década de 1950. Porém, os últimos adquirentes são muito pouco mencionados entre as comunidades rurais, isto porque, eram homens de vários negócios, não apenas centrados na agricultura,
fazendo-se raras vezes presentes em Picos. Além do mais, João de Deus impregnava de forma
intensa a imagem de um “senhor colonial”, praticamente dono de todo município.
Com a Independência Nacional, os líderes revolucionários enunciaram a necessidade de
modificar as relações de trabalho no campo, proibindo a exploração indireta na agricultura e
conferindo títulos de posse útil aos camponeses. Em Picos, essa formalização não ocorreu, entretanto, a afirmação que após a Independência e a Reforma Agrária a terra tornara-se “do povo”,
era recorrente na fala das famílias camponesas. Sendo assim, a postura epistemológica adotada
Eu sei que ele era um grande proprietário, tanto que as cantadeiras colocaram-no na cantiga: ‘João de Deus Tavares Homem é
senho�����������������������������������������������������������������������������������������������������������������������
r����������������������������������������������������������������������������������������������������������������������
br�������������������������������������������������������������������������������������������������������������������
a������������������������������������������������������������������������������������������������������������������
n�����������������������������������������������������������������������������������������������������������������
co���������������������������������������������������������������������������������������������������������������
r�������������������������������������������������������������������������������������������������������������
ic�����������������������������������������������������������������������������������������������������������
o����������������������������������������������������������������������������������������������������������
,���������������������������������������������������������������������������������������������������������
te������������������������������������������������������������������������������������������������������
��������������������������������������������������������������������������������������������������������
rr����������������������������������������������������������������������������������������������������
a���������������������������������������������������������������������������������������������������
��������������������������������������������������������������������������������������������������
ta������������������������������������������������������������������������������������������������
manh��������������������������������������������������������������������������������������������
a,������������������������������������������������������������������������������������������
l����������������������������������������������������������������������������������������
�����������������������������������������������������������������������������������������
im��������������������������������������������������������������������������������������
it������������������������������������������������������������������������������������
e�����������������������������������������������������������������������������������
s����������������������������������������������������������������������������������
s��������������������������������������������������������������������������������
�����������������������������������������������������������������������������
������������������������������������������������������������������������������
c�����������������������������������������������������������������������������
o����������������������������������������������������������������������������
m���������������������������������������������������������������������������
De������������������������������������������������������������������������
��������������������������������������������������������������������������
u�����������������������������������������������������������������������
s����������������������������������������������������������������������
n��������������������������������������������������������������������
o�������������������������������������������������������������������
c�����������������������������������������������������������������
������������������������������������������������������������������
���������������������������������������������������������������
u’��������������������������������������������������������������
.�������������������������������������������������������������
Porqu�������������������������������������������������������
e������������������������������������������������������
�����������������������������������������������������
ele��������������������������������������������������
ti�����������������������������������������������
�������������������������������������������������
nh���������������������������������������������
a te�����������������������������������������
rr���������������������������������������
as�������������������������������������
a�����������������������������������
������������������������������������
qu���������������������������������
i��������������������������������
e������������������������������
m�����������������������������
P���������������������������
ic�������������������������
o������������������������
s�����������������������
c���������������������
����������������������
om�������������������
o������������������
nenhu������������
m�����������
propr�����
ietário... ele foi o primeiro proprietário.
4
43
Artigo 3
foi no sentido de perseguir a descrição dos interlocutores fielmente, instrumentalizando seus
discursos por meio de documentação dos referidos processos: “[...] se há algo que cabe de direito
à antropologia, não é certamente a tarefa de explicar o mundo de outrem, mas a de multiplicar
nosso mundo, ‘povoando-o’ de todos esses exprimidos que não existem fora de suas expressões.” (VIVEIRO DE CASTRO, 2002, p. 132).
Seguindo a investigação, encontra-se, ainda em 1975, o novo Estado Independente decretando a desapropriação das terras dos absentistas e nacionalizando os terrenos:
Decreto 06/1975. Artigo 1º Os prédios rústicos e afins já ocupados pelos cultivadores indiretos e inscritos na Conservatória dos Registros do Sotavento a favor de António de Barros, Ana Martins Carvalho, Tomás Martins de Carvalho, Artur Pereira
Carvalhal, Mario Monteiro de Macedo e Sociedade Agrícola e Comercial de Santa
Filomena Ldª, passam a constituir do Estado. (Grifos nossos)5.
Destaca-se que esse período histórico é reconhecido no campo como o momento auge da
Reforma Agrária, no qual se proporcionou um processo concreto de tomada popular. No local
pesquisado havia incógnitas que persistiram por quase toda investigação: eram os titulares das
propriedades rurais após a Independência Nacional? Se a proposta do Novo Estado focava em
emancipar os agricultores do modelo ainda semi-escravagista, por qual motivo aqueles camponeses persistiam na terra sem qualquer tipo de documentação? Evidente está a difícil tarefa de
construir novos arranjos para estruturas tradicionalmente enraizadas em relações conservadoras:
havia muitos interesses em jogo e o encargo de cotejá-los ou desprezá-los levaria longo tempo.
De fato, a resposta oferecida em campo não só “resolvia” o dilema, como revelava uma
cosmologia potente que cumpriu a missão de solidificar transformações que, apesar de pulverizadas, sobreviveram às intempéries das mudanças políticas. Em período que antecede à Independência, havia um empregado possivelmente da família de João de Deus ou dos curadores,
nomeados pelo Banco Ultramarino, que circulava pelas terras hipotecadas cobrando altos valores de renda, porém, a indignação pelos anos de exploração intensa da mão-de-obra fez com que
inúmeros agricultores expulsassem o funcionário de maneira violenta. A certeza de que após
a retirada dos portugueses e a chegada dos heróis nacionais resultaria na entrega das terras a
quem de direito, ou seja, para “o povo”, acarretou a identificação dos antigos rendeiros de João
de Deus como legítimos donatários. Todavia, a não formalização das posses e a não sedimentação de uma legislação fundiária competente às intencionadas mudanças, fomentou a situação de
insegurança fundiária que foi explorada na troca de poder, na década de 1990:
Decreto-Legislativo. O regime jurídico dos solos é daqueles sectores em que não se
registrou alteração significativa, depois da Independência Nacional. Foram feitas
intervenções legislativas em domínios como o ordenamento do território, o planeamento urbanístico, o ambiente, em geral, mas, quanto ao regime jurídico dos solos,
continuam a vigorar as leis coloniais. (Grifos nossos).
5
BOLETIM OFICIAL, 1975.
44
QUESTÃO FUNDIÁRIA: POSSE TRADICIONAL E PROPRIEDADE
PRIVADA DA TERRA, ENTRE BRASIL E CABO VERDE.
Portanto, na atualidade, as terras em Picos voltaram formalmente para o domínio dos
antigos propriet�������������������������������������������������������������������������������
�����������������������������������������������������������������������������
rios coloniais, sendo que recentemente, seus herdeiros passaram a pleitear indenizações ao Estado.
3.2 Canguçu...
O extremo Sul do Brasil não obteve muitas atenções do Império português no início da
colonização, isso porque, à primeira vista, a região não oferecia atrativos mercantis para a época
(tais como ouro, prata). O Sul passou a ser visto com uma região estratégica do ponto de vista
militar e comercial somente no s������������������������������������������������������������������
éc����������������������������������������������������������������
ulo XVIII, por raz����������������������������������������������
õ���������������������������������������������
es geoestrat���������������������������������
�������������������������������
gicas: “(...) era a porta de entrada natural para um poss���������������������������������������������������������������������
�������������������������������������������������������������������
vel ataque castelhano ao Brasil” (ZARTH, 2002, p. 50). Em raz�������
�����
o desse privilegiado posicionamento geopolítico, o Sul foi palco de guerras constantes, o que tornou o
exército figura marcante na ocupação agrária da província. Porém, no final do século XVIII, com
a produção de charque, a região destacada para o presente trabalho apresentou um quadro de
conflitos raciais intensos e mobilizador de espaços:
O grande número de escravos negros e a violência com que eram tratados nas charqueadas gerava descontentamento que sempre poderia manifestar-se sob a forma
de revoltas escravas. Essa era uma das grandes preocupações dos grandes charqueadores, especialmente quando circulavam notícias de que nas cercanias dos estabelecimentos organizavam-se quilombos.6
Foi nesse cenário de oposição ao regime colonial que escravos rebelados encontraram na
Serra dos Tapes local de refúgio, incrustando nessas terras, um modo de vida fundado pela resistência à escravidão. Especialmente nas proximidades das antigas charqueadas, documentou-se a existência de quilombos – o Município de Canguçu, que subsidiava a cadeia de produção
saladeiril, na criação de gado e plantações destinadas à alimentação, concentra até o presente,
número volumoso de agrupamentos negros, conforme mapeamento realizado pelo INCRA (somente em Canguçu, tem 11 comunidades). Destaca-se a figura de Manuel Padeiro e seu bando,
nominado como quilombo itinerante, em razão da estratégia de circulação pelo Dorsal do Canguçu, dificultando a captura por feitores. A revista pelotense “Princesa do Sul” documenta as
constantes tentativas de banir tais grupos:
Em 1835, a Câmara solicitou verba ao Presidente da Província para dar combate aos
‘Quilombolas’ perigosos escravos foragidos, que se atiravam a pratica de roubo e do crime, com
esconderijo na Serra dos Tapes. A presidência da Província, pôz a disposição da Câmara, a quantia anual de 2.400$000 réis, para perseguição e extinção dos núcleos fatídicos dos ‘Quilombolas’,
que frequentemente, fortificam-se com novos elementos f0ragidos e bem armados atacavam.7.
Escolheu-se para o comparativo, a Comunidade Quilombola de Maçambique por possuir
uma história complexa de ocupação que remonta ao período acima referenciado, evocando a
BERND, Z. e BAKOS, M. M. O negro: consciência e trabalho. 2ª.ed. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1998, p. 52-53.
MAESTRI Fº, M. J. O escravo no Rio Grande do Sul. A charqueada e a gênese do escravo gaúcho. Caxias do Sul: EDUCS,
1984, p. 133-134..
6
7
45
Artigo 3
trajetória de diversos ancestrais fundadores compondo aquele território. A retórica de origem
possui algumas versões distintas, sendo comum entre elas, a figura de um escravo chamado
Maçambique, fugindo em direção ao Cerro do Quilombo (também situado no espaço dessa comunidade) que, ao se ver na eminência de ser capturado pediu para ser enterrado naquele
lugar. A morte de Maçambique revela sua potência espiritual pelo rito de sepultamento: a seu
pedido, enterrado em pé, ainda vivo, corporificando a honra de quem não cede à escravidão e
à resistência ao “imponderável” - a morte, o Império. Seus companheiros cobriram o corpo com
uma grande pedra que monumentaliza sua perda, ao mesmo tempo em que referencia o marco
fundacional da comunidade. O jazigo, situado no alto de uma montanha, de onde se pode visualizar quase todo território, inspira sua presença protetora a velar pelos vivos. Ressalta-se que
Maçambique está entre muitas outras referências de ancestrais escravizados.
O Sr. Adão da Rosa (75 anos) afirma que naquela região todos tem “sangue mina”, explicitando a identidade compartilhada pelo grupo que perpassa relações entre famílias herdeiras
de um mesmo processo histórico. Relatos indicam que durante o período do cativeiro e no pós-escravidão havia numerosos agrupamentos negros naquele lugar, entretanto, as ligações com a
classe senhorial em pouco se modificou. Tornou-se prática dar pequenas fatias de terra de mato
para as famílias “limparem” e assim encontrarem subsistência no plantio de feijão e milho. Os
camponeses entregavam parte da produção ao proprietário como pagamento pelo uso da terra,
e a esse modelo de “parceria”, os quilombolas denominam como “sócios”.
Tem-se a conta de que, ao menos, cinco gerações trabalham sob esse regime:
A gente plantava a meia e também entregava mais 10% da colheita para pagar o
batedor do feijão. Certa vez, o patrão deu 2ha para plantar o consumo da família,
dava uma saca e meia. Então disse pro papai que podia ficar ali sempre, que ele
nunca ia nos tirar. Mas o papai ficou com medo de os filhos do patrão serem ambicioneiros e acabarem por correr com família. Então disse: não sei se seus filhos
vão dar com os meus, por isso vou botar a minha velha com as crianças naquela
terrinha que é minha mesmo. (ADÃO DA ROSA, 75 anos).8
A “terrinha” aludida na fala acima, diz respeito à herança recebida de “Vô Eduardo”
(Eduardo Lousada), na qual o Sr. Adão vive até o presente. Outro fenômeno encontrado na
região é a figura dos “filhos de criação” ou “criação”. Nesse contexto, Vô Eduardo seria um dos
muitos negros adotados por famílias de fazendeiros brancos. Comumente, os filhos de criação
trabalhavam como empregados suportando maus-tratos, discriminações em troca de moradia e
comida, como exceção, alguns recebiam herança de terras menos valorizadas. Por ser criação de
três mulheres solteiras, Vô Eduardo foi recompensado com meia quadra de campo transmitida
aos seus seis filhos.
Denúncias de grilagem de terras s�����������������������������������������������������
���������������������������������������������������
o muito comuns, conta-se de uma senhora chamada Bin8
BORBA, Carolina. Diário de Campo, 2011.
46
QUESTÃO FUNDIÁRIA: POSSE TRADICIONAL E PROPRIEDADE
PRIVADA DA TERRA, ENTRE BRASIL E CABO VERDE.
ga que teria recebido como herança uma quadra de campo de sua mãe (possivelmente escrava).
Entretanto, em razão das dificuldades enfrentadas na sobrevivência, seus filhos venderam partes
das terras em troca de comida e, por fim, uma família de fazendeiros tomou o terreno por inteiro:
Seu Adão – A Binga? Olha ela era dona daquele serro ali. Uma quadra de campo. E
aí foi herança dela. E depois os Prestes foram se metendo e foram tomando conta
e a herança foi ficando pros filhos, já foram entregando aí por milho, por feijão,
faziam um pouco de mercadoria e aí eles foram passando a mão.
Carolina – Então as terras da Dona Binga se perderam por que se trocava a terra
por comida mesmo?
Seu Adão – É. E aí não se lembravam de ir lá, pra pagar um imposto da terra.
Muitos nem sabiam como é que se regulamentava aquilo ali.
Aquele que sabia mais um pouquinho, às vezes iam lá e pegavam os papéis e passava pro nome dele.9
A baixa escolaridade facilitava verdadeiros crimes cometidos por meio de negociatas,
além disso, não era costume dos antigos camponeses se preocupar em documentar a propriedade, sobretudo, por terem obtido esses espaços como recompensa do trabalho ou por doações
de “pais de criação”. As gerações seguintes adquiriram pequenos terrenos com documentação,
ainda assim, era comum no interior, perfazerem-se vendas de lotes com a simples entrega dos
papéis referentes aos campos e, em momento posterior, requerer a mesma terra por não haver
modificado a titularidade:
Carolina – Naquela época não precisa assinar Seu Adão?
Seu Adão – Não. E a maior parte de tudo era analfabeta, não sabiam nada. Colégio
era muito pouco. Lá de longe, de longe, às vezes contratavam um que sabia
mais um pouquinho pra ensinar um pouquinho assim.
Carolina – Então o senhor acha que muito se perdeu assim?
Seu Adão – Foi. Não tinha, agora, por exemplo, nos só assinava, mas naquela época não tinha nada disso. Mas é o negócio é assim... Por exemplo, alguém tem um
campo, eu vou lá e cadastro no meu nome, um pedaço pra mim e depois eu vou
lá e pago aquela taxa e tá no meu nome. Mas não é meu. Quem tem a escritura da
terra vai lá e rouba a hora que quer.10
Soma-se o fato que, a Lei de Terras (1850), responsável pela organização fundiária no
Brasil, era desenhada para conservar os privilégios da elite brasileira e reafirmar o poder das
oligarquias regionais, sobretudo, por determinar como única forma de aquisição a compra e
venda. Sendo assim, os camponeses pobres do Brasil dificilmente teriam recursos financeiros
9
BORBA, Carolina. Diário de Campo, 2011.
BORBA, Carolina. Diário de campo, 2011.
10
47
Artigo 3
para compras e para o custeio da formalização do título de propriedade. (ZARTH, 2002).
O referido documento legal traçou, por assim dizer, um perfil sócio racial dos possíveis
proprietários legais, visto que apenas um determinado segmento social detinha os meios necessários para obter o status de proprietário e formalizar suas posses. Em razão das práticas de
estelionatos para aquisição de títulos, bem como o contexto social desfavorável, atualmente, a
comunidade Maçambique compõe-se de 55 famílias, dispostas em cinco núcleos fragmentados
em um território descontinuo, nominalmente: Serra dos Almeidas, Serra dos Ribeiros, Serra dos
Gomes, Serra dos Nunes e Rincão. Quase a totalidade dos agricultores trabalha na condição de
sócio e um número bastante reduzido possui terras próprias.
As populações tradicionais viram-se apartadas das possibilidades de inclusão no sistema
legal: seja pela falta de recursos para a aquisição do título dominial, seja pela impossibilidade
de formalizar suas ocupações. Em diferente situação, os imigrantes europeus que colonizaram o
Rio Grande do Sul ao longo do século XIX, obtiveram inúmeras benesses do poder central para
sua consolidação - fator que incentivou a expulsão de diversas populações tradicionais como
índios, negros e caboclos de seus territórios. Nesse cenário, o fenômeno da etnicidade emergiu
pela consciência de diferenciação que só surge em um contexto social comum de interações.
Nesse aspecto, a etnicidade não se define como uma qualidade ligada de maneira inerente a um
determinado tipo de indivíduos ou de grupos, mas, como um princípio de divisão do mundo
social. (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998).
Somente a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o conceito institucional
de propriedade privada sofreu uma série de modificações tendo por objetivo a “relativização”
do poder de senhorio do proprietário sobre a terra. A Carta Magna determina que a propriedade
deva atender sua função social e assegura ao Estado a possibilidade de desapropriação, ressalvado o direito de prévia indenização por parte do até então proprietário. Nesse processo, distintas
lideranças do movimento negro intensificaram sua mobilização para assegurar na Constituição
Brasileira o direito à propriedade das terras de quilombo, gerando o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado
emitir-lhes os títulos respectivos.”
A inserção na ordem jurídico-constitucional brasileira de um dispositivo que carrega um
comando dotado de imperatividade, no sentido de reconhecer aos grupos quilombolas a propriedade definitiva de suas terras e de, ao mesmo tempo, obrigar o Estado à emissão de títulos dominiais se impõe como resultado de inúmeras pressões sociais, contrapondo-se, inexoravelmente,
a interesses historicamente hegemônicos no quadro político brasileiro. Atualmente, o Decreto nº
4.887/2003 regulamenta aregularização desses territórios e assegura conquistas importantes para
os camponeses, trazendo como critério de definição da identidade quilombola a autodeterminação, fato que reacendeu intensos debates sobre identidade e conformação territorial.
Ocorre que, mesmo após o decurso de quase três décadas dessa disposição, tais grupos
continuam sem ter a formalização de suas posses. Inúmeros fatores são evocados nesse proces48
QUESTÃO FUNDIÁRIA: POSSE TRADICIONAL E PROPRIEDADE
PRIVADA DA TERRA, ENTRE BRASIL E CABO VERDE.
so: insuficiências legais, dificuldades burocráticas e outros. Contudo, os diversos mecanismos
formais de regularização fundiária parecem demonstrar que está ainda presente o ideário que
nega a efetivação de direitos às minorias.
4 Cabo Verde e Brasil: políticas fundiárias de exceção?
As gramáticas de apropriação da terra ora apresentadas corroboram as teses de Agamben
(2004) sobres Estado de Exceção, quando o autor analisa as relações de poder estabelecidas com
o ordenamento jurídico. Examinando as experiências constitucionais de diversos países europeus, ele elabora o conceito de que as democracias modernas, embora anunciem seus alicerces
na legalidade e na constitucionalidade, possuem uma estrutura de poder ligada às Exceções:
O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por
meio do Estado de Exceção. , de uma guerra civil legal que permite a eliminação
física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde
então, a criação voluntaria de um estado de emergência permanente (ainda que,
eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das praticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos.11
O Estado de Exceção, não trata, portanto, de uma forma de direito especial, mas, por ser
capaz de suspender a própria ordem jurídica, aparece como um paradigma constitutivo, ou
seja, uma lógica de poder.
Como característica essencial do Governo de Exceção tem-se a supressão provisória da
tripartição das funções públicas de Estado, (Legislativo, Executivo, Judiciário), onde as leis de
plenos poderes são imputadas aos sujeitos rompendo o delicado sistema constitucional. Assim,
é de se �����������������������������������������������������������������������������������
esperar que essas pr���������������������������������������������������������������
�������������������������������������������������������������
ticas convertam-se em tend������������������������������������
����������������������������������
ncias duradouras de governo. A fragilidade dos parlamentos modernos é percebida em muitos países, em especial no Brasil, onde
o Congresso Nacional quase que rotineiramente limita-se a ratificar disposições exaradas pelo
Executivo em forma de medidas provisórias, decretos autônomos e outros atos administrativos
compostos.
No período da Constituinte (1987), o Brasil não contou com uma Assembleia Nacional
exclusiva, ou seja, o Congresso Nacional possuía poderes constituintes e, concomitantemente,
encarregava-se da feitura das leis ordinárias. À época, os diversos movimentos sociais puderam
apresentar propostas aos congressistas, tornando-se ineg��������������������������������������
������������������������������������
vel que as pressões populares acabassem por influenciar a ampliação dos direitos sociais e culturais hoje em vigor. Nesse contexto, foi
possível garantir no texto normativo a regularização das terras quilombolas. Se, por um lado,
em 1988, o Brasil teve a oportunidade de pensar como uma nação multiétnica, multicultural
(BRUSTOLIN, 2009 ), por outro, a sequência da efetivação desse direito frustrou tais expectativas.
Nos anos subsequentes, os direitos fundi���������������������������������������������������
�������������������������������������������������
rios dessas comunidades foram regulamentados timi11
AGAMBEN, G. Estado de Exceção. São Paulo: Bomtempo Editorial, 2004, p.13.
49
Artigo 3
damente por Decretos e Instruções Normativas, que frequentemente restringem sua efetivação.
De outra feita, se o período de Independ�����������������������������������������������
���������������������������������������������
ncia Nacional em Cabo Verde inaugurou a inversão das relações de propriedade da terra no meio rural, a troca nos poderes políticos na década de
1990 promoveu um golpe na ordem legal que lançou a população em condição vulnerável. As
teorias do Estado de Exceção leem esses fenômenos de oscilação pol��������������������������
������������������������
tica como uma forma peculiar de resguardar a segurança pública sob um paradigma arbitrário de governo. Os critérios de
necessidade e temporariedade, apontados pelas constituições modernas como requisitos à exceção, são progressivamente substituídos pela generalização desse modelo de segurança, atuando
como fonte originária de enunciação.
Por tais razões, as teorias de Agamben (2004) parecem explicativas dos casos analisados,
visto que um fato particular (tentativa de descendentes de escravos regularizarem suas terras)
escapa à obrigação da observância da Lei nos dois Países, tendo por fundamento a segurança da
própria ordem legal:
Isso significa que, para aplicar uma norma, é necessário, em última analise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção. Em todos os casos, o Estado de Exceção.
marca um patamar onde lógica e praxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real.12
Utilizando esse referencial, seria possível pensar a regularização das terras quilombolas
como exceção ao contexto de segurança nacional. O Direito brasileiro, até 1988, sequer previa
formas de titularização coletiva, sendo complexo operar a nova figura jurídica no sistema consolidado. Por��������������������������������������������������������������������������������
������������������������������������������������������������������������������
m, no esforço de criar uma exceção para que a ordem jurídica n�����������������
���������������
o “corresse riscos” e ao mesmo tempo, regulamentar os territórios étnicos, remete-se o caso quilombola para
uma esfera de ação extrajurídica: “[...] o Estado de Exceção é um espaço anômico onde o que
está em jogo é uma força-de-lei sem lei”. (AGAMBEN, 2004, p. 61). Isso é, para garantir um
ordenamento jurídico seguro, os territórios quilombolas são transportados para uma esfera de
insegurança e, nesse espaço de lei sem lei, o que está presente é o exercício direto do poder.
5 Considerações finais
Conforme se procurou elucidar, os diversos processos históricos analisados nos locais de
pesquisa, seja em Cabo Verde ou no Brasil, tornaram antigos rendeiros e quilombolas distantes
da figura de proprietários. A adesão ao sistema legal que elenca a necessidade do título formal da terra, desloca tais populações, tradicionalmente encarnadas em modelos sociais de forte
adesão ao costume de apropriação pela posse, em vulnerável contingência diante de experts no
manejo documental. Sobretudo, pela tênue condição democrática de ambas as realidades que
em momentos críticos de embates políticos por conquistas sociais veem o ordenamento jurídico
postularmente dado ser suspendido em atenção de interesses secularmente privilegiados.
12
AGAMBEN, 2004, p. 63.
50
QUESTÃO FUNDIÁRIA: POSSE TRADICIONAL E PROPRIEDADE
PRIVADA DA TERRA, ENTRE BRASIL E CABO VERDE.
Todavia, mais interessante que mapear as realizações do período de Independência e reforma Agrária em Cabo Verde, posteriormente abandonadas pelo Estado, ou vislumbrar as possíveis modificações implementadas pelas leis que protegem ocupações quilombolas noBrasil,
parece se analisar o que as populações produzem a título desses eventos. Sendo assim, mesmo
os esforços de “liberalizar” os espaços cabo-verdianos após 1990, de certa forma, rendem-se à
imposição dos Territórios de Resistência. O empoderamento camponês depois de julho de 1975
impede que se revertam as relações ao ponto que antes estavam, em que pese formalmente os
terrenos, em sua maioria, encontrem-se ainda em nome de Antônio de Barros e Mario Monteiro.
De outra feita, o movimento quilombola brasileiro assume certa consolidação política que promove a eclosão de posturas cidadãs onde a tomada de direitos se torna uma crescente. Sendo
assim, as afirmações persistentes “a terra é do povo”; “isso é terra de quilombo” e o modo de
vislumbrar os lugares de pertencimento tornam a sobrecodificação legal frágil mediante a experiência territorial.
Referências
AGAMBEN, G. Estado de Exceção. São Paulo: Bomtempo editorial, 2004.
BRUSTOLIN, C. Reconhecimento e desconsideração: a regularização fundiária dos territórios
quilombolas sob suspeita. Tese de Doutorado (Sociologia, UFRGS), 2009
BERND, Z. e BAKOS, M. M. O negro: consciência e trabalho. 2ª.ed. Porto Alegre: Ed. Universidade/
UFRGS, 1998.
BOLETIM Oficial da República de Cabo Verde. 23 de jul. 1975. Decreto-Lei nº 6/75, Artigo 1º.
BOLETIM Oficial da República de Cabo Verde. 19 de jul.de 2007. Decreto-Lei nº
2/2007.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.
v. 4, Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.
DETIENNE, M. Comparar o incomparável. Aparecida (SP): Ideias & Letras, 2004.
MAESTRI Fº, M. J. O escravo no Rio Grande do Sul. A charqueada e a gênese do escravo gaúcho.
Caxias do Sul: EDUCS, 1984.
POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas
fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: UNESP, 1998.
ZARTH, P. A. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed.
UNIJUÍ, 2002.
51
Artigo 4
CONTRATAÇÕES NA SOCIEDADE DE
CONSUMO E TECNOLOGIA:
FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E BOAFÉ OBJETIVA
Carolina Fátima de Souza Alves1
Antonio Carlos Efing2
Resumo
Os contratos, pactos ou convenções têm diversas raízes etimológicas. No Direito Romano
havia o “pacto” e o “contractus”. Através dos “pacta”, o vínculo criava apenas obrigações
naturais. As obrigações jurídicas decorriam do “contractus”. Assim também o é no sistema
jurídico atual: há convenções e pactos que não geram obrigações jurídicas. Estas decorrem
dos contratos, que são vínculos que merecem proteção jurídica, por sua importância social
e por estarem atendidos os requisitos legais que lhe conferem validade. Na acepção clássica
vigente até o século XIX, a relação contratual se amparava no tripé autonomia da vontade,
obrigatoriedade e relativização dos efeitos contratuais. Entretanto, as transformações sociais
advindas no pós Revolução Francesa, especialmente a industrialização, demonstraram
que o contrato, desta forma compreendido, servia como instrumento de afirmação da classe
mais abastada, fomentando a desigualdade entre os contratantes, não mais se adaptando a
realidade socioeconômica do século XX. Foi diante desse quadro que se deu a travessia do
Estado Liberal para o Estado Social, deixando o Estado sua posição absenteísta para atuar
positivamente sobre os contratos celebrados, visando assegurar o predomínio dos interesses
sociais sobre os individuais, fomentando a criação de novos princípios contratuais, dentre
eles o da boa-fé objetiva e da função social do contrato, hoje, indispensáveis na leitura e
compreensão de toda relação contratual. O objetivo do presente artigo, mediante utilização
do método positivista dedutivo, será demonstrar as alterações sofridas na acepção jurídica do
contrato, mormente a criação dos princípios da boa-fé objetiva e função social, fulcrando-se ao
final, no estudo de seu emprego nas relações consumeristas.
Palavras-chave: Contrato; Alterações; Boa-fé Objetiva; Função Social
Abstract
The contracts, pacts or conventions have several etymological roots. In the Roman Right
there were the “pact” and the “contractus.” Through the “pacta”, the bond just created
natural obligations. The juridical obligations elapsed of the “contratus.” Likewise it is it
in the current juridical system: there are conventions and pacts not to generate juridical
obligations. These elapse of the contracts, that are bonds that deserve juridical protection,
for his social importance and for they be assisted the legal requirements that check him/her
validity. In the effective classic meaning until the century XIX, the contractual relationship
if it aided in the tripod autonomy of the will, compulsory nature of the contractual effects.
However, the transformations social comes from the powders French Revolution, especially
(Autora) Professora do curso de Direito da Faculdade Dom Bosco de Curitiba/PR.
(Co-autor) Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Professor Titular de Direito do Consumidor e Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR.
1
2
52
CONTRATAÇÕES NA SOCIEDADE DE CONSUMO E TECNOLOGIA:
FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E BOA- FÉ OBJETIVA
the industrialization, they demonstrated that the contract, this way understood, it served as
instrument of statement of the wealthiest class, fomenting the inequality among the contracting
parties, no more adapting the socioeconomic reality of the century XX. It was before of that
picture that felt the crossing of the Liberal State for the Social State, leaving his State position
absentee to act positively on the celebrated contracts, seeking to assure the prevalence of the
social interests on the individual ones, fomenting the creation of new contractual beginnings,
among them the one of the good-faith aims at and of the social function of the contract, today,
indispensable in the reading and understanding of all contractual relationship.The objective
of the present article, by use of the method deductive positivist, will be to demonstrate
the suffered alterations in the juridical meaning of the contract, especially the creation of
the beginnings of the good-faith aims at and social function in the study of his job in the
relationships.
Keywords: Agreements; Alterations; Good-faith Aims; Social function
1Introdução
Reflexo da passagem do Estado Liberal para o Estado Social, o contrato ganha nova dimensão social, o que requer seja analisado de acordo com os novos princípios que lhe dão conteúdo.
Como se sabe, como outros institutos jurídicos, o contrato também foi utilizado, até o século XIX, como instrumento de afirmação econômica da classe burguesa. Na época, com esteio
no tripé que amparava a base contratual – autonomia da vontade, obrigatoriedade e relativização dos efeitos contratuais – a classe burguesa utilizava-se do contrato para se auto-favorecer.
Enzo Roppo3 anota que “esta ideologia novecentista da liberdade de contratar corresponde, sem dúvida, as orientações e valores positivos, de progresso, afirmados na evolução das
sociedades ocidentais, tornando-se, inclusive, sua promotora direta. Contudo, de outro lado,
configura de facto, um instrumento funcionalizado para operar do modo de produção capitalista, e neste sentido, realiza institucionalmente o interesse da classe capitalista (que é justamente
interesse particular de uma classe, e não interesse geral de toda a sociedade, ainda que as ideologias do capitalismo tentem, interessadamente, fazer crer a sua coincidência”.
Na concepção clássica do contrato, a tutela jurídica limitava-se a proteger a vontade criadora e a assegurar a realização dos efeitos desejados pelos contraentes, desconsiderando-se por
completo a situação econômica e social dos contraentes.
Contudo, esse modelo contratual não tardou a revelar a desigualdade real que escondia.
Comaindustrializaçãoeamassificaçãodasrelaçõescontratuais, especialmente através da
conclusão de contratos de adesão, ficou evidenciado que o conceito clássico de contrato não
mais se adaptava à realidade socioeconômica do século XX.
Em muitos casos, o acordo de vontades era mais aparente do que real; os contratos pré-redigidos tornaram-se a regra e deixavam clara a desigualdade entre os contratantes – um,
autor efetivo de clásulas, outro, simples aderente –, desmentindo a idéia de que, assegurando-se a liberdade contratual, estaria assegurada a justiça contratual. No dizer de Claudia Lima
31
ROPPO, Enzo. O Contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes, Coimbra: Almedina, 1988. p. 36.
53
Artigo 4
Marques4, ”a crise na teoria conceitual do direito contratual5 era inconteste”.
2 A nova concepção social do contrato – massificação das relações contratuais
Foi diante desse quadro que se deu a travessia do Estado Liberal para o Estado Social,
deixando o Estado a sua posição absenteísta de lado para atuar positivamente sobre os pactos
celebrados, visando assegurar o predomínio dos interesses sociais sobre os individuais.
Paulo Nalin6 leciona que o “caos” do conceito de contrato surge na pós- modernidade,
momento no qual “a desconstrução dos dogmas se apresenta como inevitável” e o repensar “do
modelo contratual, ou o reconhecimento de sua crise institucional, surgem em razão do desajuste entre o modelo contratual e as relações de massa” eis que “as relações plúrimas, coletivas,
difusas ou mesmo massificadas não se encaixam nos moldes das codificações modernas”.
De acordo com a nova concepção de contrato – na sua vertente social – não só o momento
da manifestação da vontade (consenso) importa mas, outrossim, e principalmente, os efeitos do
contrato na sociedade deverão ser considerados.
Conceitos tradicionais como autonomia da vontade7 e obrigatoriedade do pacto serão
relativizados ante a intervenção, cada vez maior, do Estado, nas relações contratuais, no intuito
de mitigar o antigo dogma da autonomia da vontade privada face às novas preocupações de
ordem social.
“É o contrato, como instrumento à disposição dos indivíduos na sociedade de consumo,
mas, agora, limitado e eficazmente regulado para que alcance sua função social”8.
Darcy Bessone9 comenta que “se passou a exigir do Estado um diverso papel no campo
jurídico – que fosse não apenas de proteção do direito, inclusive por meio da repressão a sua
violação (Estado garantidor), mas sim e também contemplativo de uma função positiva, de promoção de objetivos determinados (Estado dirigista) –, novos valores ganharam relevo na esfera
dos contratos particularmente mercê do fenômeno do dirigismo contratual, em que o Estado
intervém, por meio do legislador e do juiz, para assegurar o predomínio dos interesses sociais
sobre os individuais”.
Assim, nas palavras de Antonio Junqueira10 “impõe ao Estado e ao jurista, a proibição de ver
o contrato como um átomo, algo que somente interessa às partes, desvinculado de tudo o mais”.
Pelo contrário, a nova concepção do contrato é uma concepção social deste instrumento
jurídico, para a qual não só o momento da manifestação da vontade (consenso) importa, como
4
ROPPO, Enzo. O Contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes, Coimbra: Almedina, 1988. p. 36.
5
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. o novo regime das relações contratuais. 5.ª ed., São Paulo: RT, 2006, p.163.
Que para muitos estudiosos, ficou conhecida como Crise do Dogma da Autonomia da Vontade.
3
6
NALIN, Paulo. Do Contrato: conceito pós-moderno. Em busca de sua formulação na perspectiva civilconstitucional. 1.ª ed., Curitiba: Juruá, 2001, p.113/115.
7
Ou “autonomia privada”
8
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 5.ª ed., São Paulo: RT, 2006, p.
211.
9
BESSONE, Darcy. Do Contrato: teoria geral. 3.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 44
10
8
JUNQUEIRA, Antonio de Azevedo. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação domercado – Direito de exclusividade nas relações
contratuais de fornecimento – Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual. Revista
dos Tribunais, São Paulo, v. 750, p.116, abr. 1998.
54
CONTRATAÇÕES NA SOCIEDADE DE CONSUMO E TECNOLOGIA:
FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E BOA- FÉ OBJETIVA
também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão considerados e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha importância.
Segundo Cláudia Lima Marques11 “hoje o contrato é o instrumento das riquezas da sociedade, é também um instrumento de proteção dos direitos fundamentais, realização dos paradigmas de qualidade, de segurança, de adequação dos serviços e produtos no mercado”.
Assim, o contrato deixa de ser somente a auto-regulamentação dos interesses privados das partes para, também, preencher função social, bem como ser regido pela boa-fé
objetiva, destinando-se o presente trabalho a analisar, mais enfaticamente, os novos princípios norteadores do contrato.
3 Os novos princípios contratuais
Segundo a visão clássica, três eram os pilares fundantes da doutrina contratual: a) princípio da autonomia da vontade de contratar; b) princípio da força obrigatória do contrato (pacta
sunt servanda) e c) princípio da relatividade dos efeitos contratuais.
De acordo com a teoria contratual clássica e, segundo Humberto Theodoro Junior “a idéia
tradicional de contrato vê na vontade dos contratantes a força criadora da relação jurídica obrigacional, de sorte que nesse terreno prevalece como sistema geral a liberdade de contratar, como
expressão daquilo que se convencionou chamar de ‘autonomia da vontade’”.
Diante da evolução histórica e legal já comentada, apercebeu-se que a autonomia da vontade ou liberdade de contratar não mais poderia ser o elemento central do pacto, tampouco
compreendida de modo absoluto e ilimitado.
Isto porque vezes há em que o contratante não tem a opção de contratar ou com quem
contratar, casos dos serviços prestados em caráter de monopólio, como o fornecimento de água
e energia elétrica.
De outro verte, por um longo tempo entendeu-se que os pactos deveriam ser religiosamente respeitados, pois refletiam um ato de liberdade individual, o que se convencionou chamar de princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda).
Contudo, já no século XX, com a expansão do capitalismo e diante da adoção de conceitos como “ordem pública” e “fim social”, ou seja, com o fortalecimento do princípio da Justiça
Social, o pacta sunt servanda também foi relativizado, inclusive com a criação das Teorias da
Onerosidade Excessiva12 e da Imprevisão13, visando superar eventual desigualdade ou fatos imprevisíveis que tornassem o pacto celebrado extremamente oneroso a uma parte contratante.
Urge notar que a mitigação da força obrigatória dos pactos também deveu- se a maciça inMARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 5.ª
ed., São Paulo: RT, 2006, p. 180.
12
A Teoria da Onerosidade Excessiva defende que a excessiva onerosidade imposta a uma das partes contraentes não pode
sobrepor aos objetivos almejados no momento da contratação. Na maioria das vezes, as partes contratantes tem como fator
decisivo para a formação do vínculo contratual, a equivalência e equilíbrio das obrigações ou prestações assumidas.
13
Teoria invocada quando a onerosidade excessiva decorrente de fatos extraordinários, cuja consequência náo se poderia prever na celebração do contrato, repercute em efeitos supervenientes, imprevistos e não correspondentes aos interesses iniciais
das partes.
11
55
Artigo 4
tervenção do Estado, de forma política e econômica, nos contratos celebrados entre particulares,
no intuito de acautelar objetivos sociais eventualmente atingidos por referidos pactos.
De idêntica forma, não mais vinga a noção de que o contrato celebrado produz efeitos
somente entre as partes contratantes – conceito apregoado pelo princípio da relativização dos
efeitos contratuais – mas, outrossim, por vezes, produz efeitos difusos e coletivos, mormente
diante da adoção do princípio da função social do contrato.
Embora relativizados tais princípios ainda subsistem; porém, consoante lição de Antonio
Junqueira de Azevedo14, há que se acrescentar a estes novos princípios norteadores do contrato:
1) função social do contrato; 2) boa-fé objetiva e 3) equilíbrio econômico do contrato.
Inserções cuja análise compreende o estudo do tema ora em comento.
3.1 Da função social do contrato
3.1.1 Noções introdutórias
Além de figurar como novo pilar do novel direito contratual, a função social do contrato figura também como princípio estruturante da ordem econômica previsto no artigo 170 da
Constituição da República, traduzindo-se o contrato em verdadeiro instrumento de promoção
da dignidade da pessoa humana constante no artigo 1.º, inciso III, da Carta Magna.
Antes de adentrar na análise da função social do contrato, urge salientar que, hodiernamente, a função social do contrato tem sido vista muito além de simplescláusula geral normativa (normal legal impositiva) mas, outrossim, como verdadeiro princípio jurídico que embasa
não somente a ordem econômica da República como, também, os objetivos constitucionais, dentre eles, o respeito e a valorização da pessoa humana, objetos da moderna relação contratual.
Celso Antonio Bandeira de Mello15 conceitua princípio como sendo “por definição, mandamento nuclear do sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia
sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no
que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. Conclui renomado jurista que “violar um
princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer”.
Portanto, a violação de referido princípio contratual é muito mais gravosa do que o desrespeito à norma legal posta.
3.1.2 Conceituação de função social do contrato
Mas o que é função social do contrato?
Sem olvidar a respeito da flexibilização do conceito de “contrato”, urge salientar que emJUNQUEIRA, Antonio de Azevedo. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado – Direito de
exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro
que contribui para o inadimplemento contratual. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 750, p.115, abr. 1998.
15
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 12.ª ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 747-48.
14
56
CONTRATAÇÕES NA SOCIEDADE DE CONSUMO E TECNOLOGIA:
FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E BOA- FÉ OBJETIVA
bora o Código de Defesa do Consumidor não preveja, expressamente, a função social do contrato em seu texto, é ponto pacífico que tal princípio também aplicar-se-á às relações de consumo.
Aliás, segundo entendimento de Antonio Carlos Efing16, em verdade, o Código de Defesa
do Consumidor foi criado com o intuito de efetivar a função social do contrato, conferindo maior
proteção jurídica à parte mais débil da relação contratual.
De acordo com os ensinamentos de Antonio Carlos Efing, qualquer ato que ofenda o preceito contido no artigo 3.º da Constituição Federal da República17 fere frontalmente a função
social que todo contrato deve possuir.
De outro verte, atendendo a anseios sociais previstos em seara constitucional, o artigo 421
Código Civil de 2002, prevê expressamente a função social do contrato nas relações civis, inclusive como limitador da autonomia privada, verbis:
Art. 421 – A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social
do contrato
Feita tal ressalva, importa salientar que, considerando a vagueza da expressão legal “função social do contrato”, a conceituação desta não é matéria das mais simples.
Consoante assevera Claudio Luiz Bueno de Godoy18, indicando a lição de Fábio KonderComparato19, “em rigor, quando se fala em função tem-se, em geral, a noção de um poder de
dar destino determinado a um objeto ou a uma relação jurídica, de vinculá-los a certos objetivos;
o que, acrescido do adjetivo “social”, significa dizer que esse objetivo ultrapassa o interesse do
titular do direito – que, assim, passa a ter um poder-dever – para revelar-se como de interesse
coletivo”.
Neste sentido, a função social do contrato significa a funcionalização dos direitos subjetivos detidos pelos particulares que, de acordo com a nova hermenêutica e formação contratual,
devem ceder ou harmonizar-se com os interesses sociais constitucionais embasadores da República Federativa do Brasil.
Noutras palavras, da redação do texto legal supratranscrito, dessume-se que qualquer
direito ou prerrogativa detido pela parte deve harmonizar-se a um fim social. Donde se pode
constatar que o princípio da função social do contrato esta intimamente ligado ao princípio da
autonomia privada, sendo aquele limitador deste.
Isto porque o contrato deve atender ou, ao menos, harmonizar-se com as exigências sociais, e não somente servir como instrumento de entabulação de negócios egoísticos visando o
atendimento exclusivo da vontade das partes contratantes.
Expresso em sala de aula por ocasião do Seminário e Debates sobre o artigo ora apresentado.
“Art. 3.º – Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e
solidária;
–
garantir o desenvolvimento nacional;
–
erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
–
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
18
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato. Os novos princípios contratuais. 1.ª ed., São Paulo: Saraiva,
2004 – (Coleção Prof. Agostinho Alvim, Coordenação Renan Lotufo), p. 111.
19
COMPARATO, Fabio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. v. 63, p. 71-9, jul/set. 1986.
16
17
57
Artigo 4
Neste sentido, o princípio da liberdade contratual e autonomia da vontade passa a ser
limitado pela crescente intervenção estatal na economia, visando assegurar a função social de
todo e qualquer pacto celebrado.
Portanto, no afã de conferir maior igualdade material inter pars, o Estado poderá (deverá)
intervir para equilibrar o poder das partes contratantes, por meio de normas imperativas; limitando a autonomia privada, protegendo o lado mais fraco da relação jurídica patrimonial. É o
que se verifica, por exemplo, nos contratos de consumo e locação, dentre outros.
Há que se concluir, portanto, que a função social do contrato importa na relativização dos direitos subjetivos visando sua integração ao sistema social; ou, na lição de Ruben
Stigliz20“significa conceber e proteger direitos subjetivos contratuais somente enquanto instrumentos úteis a serviço do desenvolvimento social”.
Assim, no hodierno direito contratual brasileiro, a função social do contrato significa que
sua composição clássica – com origens individualistas e voluntaristas – deverácederlugaraumnovomodelodeajuste, voltadoapreservarosvaloreseprincípios constitucionais de dignidade,
solidarismo e livre desenvolvimento da pessoa humana, nos exatos termos do artigo 1.º, da
Constituição da República Federativa do Brasil. Aliás, convém dizer que foi neste sentido a promulgação do novo Código Civil Brasileiro (Lei n.º 10 406, de 10/01/2002) que, segundo Miguel
Reale21, fulcrado no princípio da socialidade ou socialização, buscou através de diversas previsões legais, mormente a contida no seu artigo 421, exterminar o modelo individualista de
contrato apregoado pelo Código Civil de 1916, modificando seu eixo interpretativo, de modo a
garantir que o contrato celebrado seja recebido pelo ordenamento desde que cumpra nova função atinente à proteção do interesse comum.
Através de referida legislação, previu-se, então, a mitigação do princípio da relatividade dos efeitos do contrato frente aos valores constitucionais básicos. Ou seja, hodiernamente,
face a sua função social, o contrato encontra-se voltado ao prestígio e respeito de valores primários eleitos pela Constituição, redundando na constitucionalização do direito civil.
Segundo Maria Helena Diniz22, a consequência da criação do artigo 421 do novo Código
Civil redunda no fato de que “a liberdade de contratar não é absoluta, pois está limitada não
só pela supremacia da ordem pública, que veda convenção que lhe seja contrária e aos bons
costumes, de forma que a vontade dos contratantes está subordinada ao interesse coletivo, mas
também pela função social do contrato, que o condiciona ao atendimento do bem comum e dos
fins sociais. A função social do contrato prevista no art. 421 do Código Civil constitui cláusula
geral que impõe a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros; reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas e não
elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance deste princípio,
STIGLITZ, Ruben. Autonomia de la coluntad y revision del contrato. Contractos: teoria general. Buenos Aires:
epalma, 1993. v. 2, p. 275.
21
REALE, Miguel. Visão geral do projeto de Código Civil. Cidadania e Justiça. Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros. v. 5, n.º10, p. 61-73, 1.º semestre/ 2001.
22
DINIZ, Maria Helena. Jornada de direito civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, setembro/ 2002.
20
D
58
CONTRATAÇÕES NA SOCIEDADE DE CONSUMO E TECNOLOGIA:
FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E BOA- FÉ OBJETIVA
quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da
pessoa humana”.
Portanto, a função social do contrato – vista como cláusula geral ou princípio – é decorrência lógica do princípio constitucional dos valores da solidariedade e da construção de uma
sociedade mais justa (CF, art. 3.º, I) e significa que não mais se pode conceber o contrato apenas
do ponto de vista econômico: é imprescindível verificar se o contrato celebrado cumpre sua função social para, somente então, ser eficaz.
3.2 Boa-fé objetiva
3.2.1 Noções introdutórias
Inserida no conceito de função social do contrato23 e como novo paradigma, encontra-se a
boa-fé, componente indispensável de todo e qualquer pacto celebrado.
Como novo paradigma nas relações contratuais, a moderna teoria do direito contratual
propõe o renascimento de um princípio geral de direito: o princípio da boa- fé objetiva, aplicável
obrigatoriamente a todos os contratos.
Previamente à explanação sobre o conceito de referido princípio, urge salientar a flagrante distinção existente entre boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva, esta última positivada no Código
de Defesa do Consumidor e na legislação civil vigente.
Nas palavras de Claudio Luiz de Bueno Godoy24 “diferente da boa-fé subjetiva, que é um
estado psicológico, um estado anímico de ignorância da antijuridicidade ou do potencial ofensivo de determinada situação jurídica, a boa-fé objetiva é uma regra de conduta, uma regra de
comportamento leal que se espera dos indívíduos, portanto, que com aquela não se confunde”.
Assim, enquanto a boa-fé subjetiva implica em estado de espírito ou ânimo interno da
pessoa, a boa-fé objetiva, no campo contratual, significa um padrão de conduta leal que deve ser
respeitado pelos contratantes, eis que legitimado pelo Direito.
A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de
forma alguma da verificação da má-fé subjetiva do fornecedor ou do consumidor.
Feita tal distinção, mister salientar que o novo paradigma da teoria contratual é o respeito
ao princípio da boa-fé objetiva que, inclusive, contra-se positivada no artigo 422 do Código Civil vigente, bem como no Código de Defesa do Consumidor, no seu artigo 51, inciso IV – como
cláusula geral impositiva de deveres contratuais às partes contratantes –, e no artigo 4.º, inciso
III – como regra de hermenêutica contratual.
Nas palavras de Waldírio Bulgarelli “a função social do contrato e a boa-fé objetiva são como salvaguardas das injunções do
jogo do poder negocial”.
24
GODOY, Claudio Luiz Bueno De. Função Social do Contrato. Os novos princípios contratuais. 1.ª ed., São Paulo: Saraiva,
2004 – (Coleção Prof. Agostinho Alvim, Coordenação Renan Lotufo), p. 89.
23
59
Artigo 4
3.2.2 Boa-fé objetiva vista como dever de conduta (Cláusula geral)
O artigo 422 do Código Civil vigente determina expressamente que:
Art. 422 – Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,
como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Previsão similar contida nos artigos 4.º, inciso III e 51, inciso IV do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 4.° – A Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua dignidade, saúde e
segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade
de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos
os seguintes princípios:
– harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento
econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a
ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e
equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas
ao fornecimento de produtos e serviços que:
– estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.
Como boa-fé objetiva, prevista no Código Civil bem como no Código de Defesa do Consumidor, compreende-se a cooperação e respeito, a conduta esperada e leal das partes contratantes,
tutelada em todas as relações contratuais. É a exigência de comportamento leal dos contratantes.
Cláudia Lima Marques25 conceitua boa-fé objetiva como sendo “uma atuação refletida,
uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando
seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem
abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o
bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das
partes”.
Segundo o doutrinador italiano Betti26 boa-fé objetiva “é o compromisso expresso ou implícito de fidelidade e cooperação nas relações contratuais, é uma visão mais ampla, menos textual do vínculo, é a concepção leal do vínculo, das expectativas que desperta (confiança)”.
A imposição, pela hodierna teoria contratual, do princípio de boa-fé objetiva na formação
e execução dos contratos obteve como resultado imediato a modificação do modo de visualizar
a relação contratual.
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 5.ª
ed., Revista dos Tribunais, São Paulo, 2006, p. 216.
26
BETTI. Teoria general de las obligaciones. T. I, p. 84.
25
60
CONTRATAÇÕES NA SOCIEDADE DE CONSUMO E TECNOLOGIA:
FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E BOA- FÉ OBJETIVA
Antes vista como uma relação estática, o contrato passa a ser visto como uma relação dinâmica que “nasce, vive e morre”, vinculando por tempo pré-determinado as partes contratantes.
Por intermédio desta visão dinâmica do contrato passou-se a enxergar que o contrato não
envolve somente a obrigação de prestar nos termos pactuados mas, envolve também, uma obrigação de conduta das partes contratantes!
Assim, a relação contratual nada mais é do que um contrato social, que vincula pessoas
que, necessariamente, deverão respeitar deveres gerais de conduta apregoados pela boa-fé e
pelo direito.
Desta forma, a relação contratual impõe aos contratantes deveres de agir conforme boa-fé e os constumes, servindo o contrato para reforçar tais deveres e tal vínculo!
Isto porque liberar os contratantes do cumprimento de seus deveres de conduta implicaria em legitimar a má-fé na celebração e execução do contrato, com o que não se coaduna a atual
teoria contratual, tampouco o ordenamento jurídico vigente.
Como exemplo, no particular, destaca-se o dever de informar previsto no artigo 30 e 31 do
Código de Defesa do Consumidor, por intermédio do qual incumbe ao fornecedor, já nas tratativas contratuais27, informar ao potencial consumidor sobre os riscos do serviço a ser executado
ou sobre a forma de utilização do produto, pena de inadimplemento contratual.
De fato, o vínculo contratual não vige somente da celebração ao cumprimento do contrato
mas, outrossim, como observa Carlyle Popp28 a boa-fé objetiva como novo princípio contratual
importa “no surgimento de deveres de conduta, desde antes da celebração do contrato, em que
se desenvolvem as negociações contratuais, mas regidas pelos princípios do contrato, mesmo
em termos de responsabilidade, de resto como sucede, na lembrança do autor, com a oferta e
publicidade, e o que se estende à fase posterior ao ajuste”.
Assim, consoante leciona Claudia Lima Marques29“a relação contratual obriga
não somente ao cumprimento da obrigação principal (prestação), mas também ao cumprimento de várias obrigações acessórias ou dos deveres anexos ao contrato, como a boa-fé objetiva”.
Portanto, expandiu-se a boa-fé objetiva como uma exigência de “eticização das relações
jurídicas”30, a ponto de elastecer sua abrangência a outras áreas do direito privado – que não
somente a contratual – bem como ao direito público.
Mas não somente nesta fase, como também na fase pós-contratual, incumbe ao fornecedor informar ao consumidor sobre
riscos do serviço ou produto (bem) adquirido, no que se convencionou chamar recall. Segundo Antonio Junqueira de Azevedo, em Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 775, p. 13,
maio de 2000: “Obrigação há, como imperativo da boa-fé contratual, da lealdade dos contratantes, mesmo já findo o ajuste”.
28
POPP, Carlyle. Responsabilidade civil pré-negocial: rompimento das tratativas. Curitiba: Ed. Juruá, 2001, p. 149.
29
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 5.ª
ed., São Paulo: RT, 2006, p. 220.
30
Transcrevendo frase de Adolfo di Majo. Obbligazioni in genere. Bologna: Zanichelli, 1985, p. 312.
27
61
Artigo 4
3.2.3 Boa-fé objetiva e suas funções: principiológica e interpretadora
Das funções outorgadas ao princípio da boa-fé objetiva, a mais utilizada é a função interpretadora prevista expressamente no artigo 47 do CDC, que prevê:
Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.
Rizzato Nunes3129 salienta que a função da boa-fé objetiva não se limita exclusivamente a
proteger a parte mais fraca da relação contratual: também possui como basilar função “orientar
a interpretação garantidora da ordem econômica, em harmonia com os princípios constitucionais do art. 170, sua razão de ser”.
Assim, ao contrário do Código Civil de 1916, que no seu artigo 85 previa que nas declarações de vontade devia-se atentar mais à intenção do declarante do que ao sentido literal das
palavras, o Código Civil vigente (2002), no seu artigo 113, a exemplo do que prevê o Código Civil
Alemão, determinou que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os
usos do lugar de sua celebração”.
Isto significa dizer que o contrato, de acordo com a boa-fé objetiva, deve ser interpretado de forma a preservar a confiança e a justa expectativa dos contratantes ou, nas palavras de
Claudio Luiz de Bueno Godoy32 “as cláusulas contratuais devem ser entendidas de acordo com
seu sentido objetivo e aparente, interpretando-se-as sempre em função de um significado que
o standard de conduta leal aponte ser o mais razoável, ou seja, as declarações de vontade, no
contrato, devem ser interpretadas de acordo com o que seria o razoavelmente esperado de um
contratante leal”.
Portanto, a boa-fé objetiva utilizada como regra hermenêutica possibilita ao julgador interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir vícios da relação contratual.
Assim, além do princípio da boa-fé objetiva impôr deveres de conduta às partes contratantes, tanto na fase de tratativas, quanto na fase pós-contratual, exigindo-lhes atuação
leal e recíproca, referido princípio também pode ser utilizado pelo julgador como regra
de hermenêutica, visando suprir ou alcançar o real alcance do pacto.
Vale notar que a inserção do Princípio da Boa-fé Objetiva e da Função Social do Contrato
como novos paradigmas contratuais, ao lado de outros clássicos princípios contratuais mencionados no início deste trabalho, possui ambiciosa finalidade: o equilíbrio contratual que, para ser
alcançado, outorga ao Estado poderes para intervir maciçamente na relação contratual privada,
limitando a autonomia da vontade e relativizando os efeitos contratuais.
NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Curso de Direito do Consumidor. 2.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 128.
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato. Os novos princípios contratuais. 1.ª ed., São Paulo: Saraiva,
2004 – (Coleção Professor Agostinho Alvim, Coordenação Renan Lotufo), p. 77.
31
32
62
CONTRATAÇÕES NA SOCIEDADE DE CONSUMO E TECNOLOGIA:
FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E BOA- FÉ OBJETIVA
4 Equilíbrio contratual
Como conseqüência do respeito à função social do contrato e à boa-fé objetiva, somados
aos clássicos princípios contratuais – devidamente relativizados frente aos novos paradigmas
da teoria contratual, consoante já exposto durante todo este trabalho – ter-se-á o equilíbrio ou
equidade contratual.
Efetivamente, com o advento do Código de Defesa do Consumidor o contrato passa a ter
seu conteúdo e equilíbrio mais controlado, valorizando-se o seu sinalagma, este compreendido
como bilateralidade na qual prevalece a vontade da lei sobre a vontade externada pelas partes,
evitando-se assim o desequilíbrio contratual.
Nesse diapasão, o Estado passou a interessar-se pelo sinalagma das relações privadas,
revisando os excessos contratuais, justamente porque, convencido da desigualdade entre os contratantes, deseja proteger o equilíbrio mínimo das relações sociais e a confiança do contratante
mais débil.
Portanto, o que se busca através da justiça contratual é uma equilibrada repartição, entre
os contratantes, de benefícios e encargos contratuais.
Segundo Paulo Nalin3331, o Princípio da Justiça ou Equidade Contratual “deverá imperar
no contrato, seja ele de longa duração ou não, uma vez que as parcelas reciprocamente devidas
nunca poderão estar desajustadas ou sofrer perdas ou ganhos, ao longo a execução avençada”,
sendo meio legítimo para se “alcançar a justiça contratual34”.
Urge notar que tanto no Código Civil, quanto no Código de Defesa do Consumidor, fartas são as normas positivadas que apregoam o Equilíbrio Contratual.
Em especial no que tange a legislação consumerista, insta salientar que o Código de Defesa do Consumidor, no seu artigo 51, parágrafo 1.º, inciso II, consagrou explicitamente o princípio do equilíbrio contratual, verbis:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas
ao fornecimento de produtos e serviços que:
§ 1.º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do
contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual.
Assim, considerando que, consoante palavras do doutrinador francês Jacques Ghestin35
“só o contrato justo obriga” a inobservância do Princípio do Equilíbrio ou Justiça Contratual
poderá redundar na declaração de nulidade da cláusula abusiva, na revisão da cláusula ou contrato que imponha obrigações desproporcionais entre as partes, no reajustamento de parcelas
NALIN, Paulo. Do Contrato: conceito pós-moderno. Em busca de sua formulação na perspectiva civil- constitucional. 1.ª
ed., Curitiba: Juruá, 2001, p. 142.
34
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 5.ª ed.,
São Paulo: RT, 2006, p. 391.
35
GHESTIN, Jacques. Traité de droit civil: la formation du contrat. 3.ª ed., Paris: LGDJ, 1993, p. 225.
33
63
Artigo 4
ou do contrato ou, quiçá, no reconhecimento de que referida avença ou cláusula contratual não
obriga aos contratantes.
5 Consequência legal (sanção) pelo desrespeito aos princípios da função social do contrato e boa-fé objetiva
Vistos os novos princípios norteadores da Teoria Contratual moderna, incumbe indagar:
considerando que as disposições legais mencionadas neste trabalho, à primeira leitura, figuram
como cláusulas gerais normativas e principiológicas, haveria alguma penalidade legal a ser imposta aos seus violadores?
Efetivamente, sob a égide do Código Civil de 1916, não havia previsão expressa de preceito sancionatório ou punitivo ao violador dos princípios da teoria contratual – embora não se
olvide que, na época, tais preceitos não eram tão fortificados como nos dias atuais.
Tampouco se falava sobre a nulidade/anulabilidade dos contratos, haja vista que, considerando ausência de expressa previsão legal, bem como o fato de que o Código Civil de 1916, no
seu artigo 145, previa que a nulidade do ato jurídico somente poderia ser reconhecida “quando a
lei taxativamente o declarar nulo ou lhe negar efeito36”, a ineficácia (nulidade ou anulabilidade)
do contrato não poderia ser reconhecido pelo Judiciário.
Sobre tal prisma, Paulo Nalin menciona que surgiu, assim, “a necessidade de se buscar no
seio da doutrina mais especializada, uma solução que se mostre adequada e possibilite que se
conclua pela nulidade do negócio contratual que escapa de sua função social. A resposta que se
afigurava mais adequada é o reconhecimento da nulidade virtual como uma hipótese aceitável
no contexto da teoria das nulidades37”.
Ao contrapor a nulidade virtual com a textual, Orlando Gomes deduzia ser aquela implícita, decorrente da função da norma jurídica e não de texto sancionatório expresso, reconhecendo a dificuldade de sua determinação, na ausência de texto legal que a sustente.
Contudo, a entrada em vigor do Código Civil de 2002, em especial o parágrafo único de
seu artigo 2035, pôs fim à celeuma ao determinar:
Art. 2035 – (...)
Parágrafo único – Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função
social da propriedade e dos contratos.
Por sua vez, o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 46, prescreve que “os
contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes
for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo,ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e
alcance”.
“Pas de nulittés sans texte” – Não há nulidade sem previsão legal.
NALIN, Paulo. Do Contrato: conceito pós-moderno. Em busca de sua formulação na perspectiva civil- constitucional. 1.ª
ed., Curitiba: Juruá, 2001, p. 238.
36
37
64
CONTRATAÇÕES NA SOCIEDADE DE CONSUMO E TECNOLOGIA:
FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E BOA- FÉ OBJETIVA
Assim, havendo afronta a quaisquer dos preceitos contratuais, o contrato celebrado poderá ser considerado ineficaz.
Resta saber que tipo de ineficácia ser-lhe-á imposta: nulidade ou anulabilidade do pacto.
Nulidade parece ser a sanção mais adequada ao quadro em questão pois, consoante lição
de Pietro Perlingieri38, o regime de nulidade parte de um prisma de intensidades sancionatórias
variadas, sendo a nulidade a mais grave e, a anulabilidade, a menos grave. Segundo Perlingieri,
a nulidade se dirige à salvaguarda de valores superiores tutelando interesses gerais, ao passo
que a anulabilidade se dirige à proteção de interesses individuais das partes.
Neste mesmo sentido, Luiz Antonio Rizzato Nunes39 leciona que:
Diferentemente do Código Civil que dispõe sobre dois tipos de nulidade: a absoluta e a relativa, a Lei 8078 apenas reconhece as nulidades absolutas de pleno direito,
fundadas no seu art. 1.º, que estabelece que as normas que regulam as relações de
consumo são de ordem pública e interesse social. Por isso, não há que se falar em
cláusula abusiva que se possa validar: ela sempre nasce nula, ou, melhor dizendo,
foi escrita e posta no contrato, mas é nula desde sempre.
Neste diapasão, considerando os interesses sociais tutelados pela boa-fé objetiva e pela
função social do contrato, havendo ofensa a tais princípios, o contrato celebrado ou cláusula em
específico poderão ser reputados como nulos, haja vista a gravidade da ofensa que representam.
A jurisprudência tem se manifestado nesta linha:
Banco. Contrato de mutuo e abertura de crédito rotativo. (...) Juros que constituem
o preço pago pelo consumidor. Cláusula prevendo alteração unilateral do percentual previa e expressamente ajustado pelos figurantes do negócio. Nulidade pleno iure. Possibilidade de conhecimento e decretação de ofício (Ap.193.051.216, 7.ª
Câm. Do TJRS, rel. Dês. Antonio Janyr Dall´Agnol Junior, JTJRS 697/173) – (Grifo
nosso).
Note-se que, considerando que as cláusulas contratuais abusivas importam em violação
à matéria de ordem pública e interesse social, tais além de serem nulas de pleno direito e possuírem efeito ex tunc4038, poderão ser reconhecidas ex-officio pelo Julgador.Conclusão
Diante do exposto, pode-se concluir que é o Princípio Protecionista – previsto já no artigo
1.º da Lei n. 8 078, que inaugura e prevalece sobre o sistema legal consumerista: todas as normas
instituídas pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) têm como princípio e meta a proteção
e defesa do consumidor.
PERLINGIERI, Pietro. Manuale di diritto civile. Nápoles: ESI, 1997, p. 409.
NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Curso de Direito do Consumidor. 2.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 622.
40
Vez que a nulidade é reputada existente desde o nascimento/prática do ato ou fechamento do negócio.
38
39
65
Artigo 4
E é exatamente por isso que, no que tange as relações contratuais de consumo, não se
pode olvidar o protecionismo da parte mais débil da relação (consumidor), que deve sempre ser
levado em consideração na ocasião do deslinde do feito.
Assim, a concepção clássica e histórica do contrato, fulcrada no tripé autonomia da vontade, obrigatoriedade e relativização dos efeitos contratuais é hodiernamente relativizada muito
além da seara do consumidor, como também na legislação civil geral, preocupando-se o legislador não somente com a vontade ou obrigatoriedade do pacto celebrado mas, sim, se este o foi
estando as partes imbuídas de boa-fé (objetiva e subjetiva) e se tal cumpre sua função social,
evitando-se assim o desequilíbrio contratual, tão maléfico à ordem social, mormente quando se
tem em consideração que o contrato é visto, hoje, como “instrumento de proteção dos direitos
fundamentais do consumidor, dentre eles garantindo-lhe a segurança, qualidade, adequação de
serviços”41.
Referências
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de
Código Civil. RT, v. 775, p. 13, maio de 2000.
BESSONE, Darcy. Do Contrato: teoria geral. 3.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 44.
BETTI. Teoria general de las obligaciones. T. I, p. 84.
COMPARATO, Fabio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Revista de
Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. v. 63, p. 71-79, jul/set. 1986.
DINIZ, Maria Helena. Jornada de direito civil. Promovida pelo centro de estudos judiciários do
conselho da justiça federal, setembro/2002).
GHESTIN, Jacques. Traité de droit civil: la formation du contrat. 3.ª ed., Paris: LGDJ, 1993, p.
225.
GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato. Os novos princípios contratuais. 1.ª
ed. São Paulo: Saraiva, 2004. (Coleção Professor Agostinho Alvim, Coordenação Renan Lotufo).
JUNQUEIRA, Antonio de Azevedo. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação
do mercado – Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – Função social
do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento
contratual. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 750, p. 116, abr. 1998.
MAJO, Adolfo di. Obbligazioni in genere. Bologna: Zanichelli, 1985.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das
relações contratuais. 5.ª ed., São Paulo: RT, 2006, p. 163.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 12.ª ed., São Paulo:
Malheiros, 2000, p. 747-748.
NALIN, Paulo. Do Contrato: Conceito pós-moderno. Em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 1.ª ed., Curitiba: Juruá, 2001.
NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Curso de Direito do Consumidor. 2.ª ed., São Paulo: Saraiva,
2007, p. 128.
PERLINGIERI, Pietro. Manuale di diritto civile. Nápoles: ESI, 1997, p. 409.
POPP, Carlyle. Responsabilidade civil pré-negocial: rompimento das tratativas. Curitiba: Ed.
Juruá, 2001, p. 149.
41
39MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das
66
relações contratuais. 5.ª ed., São Paulo: RT, 2006. p. 258.
CONTRATAÇÕES NA SOCIEDADE DE CONSUMO E TECNOLOGIA:
FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E BOA- FÉ OBJETIVA
REALE, Miguel. Visão geral do projeto de Código Civil. Cidadania e Justiça. Revista da
Associação dos Magistrados Brasileiros. v. 5, n.º 10, p. 61-73, 1.º semestre 2001.
ROPPO, Enzo. O Contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes.
Coimbra: Almedina, 1988, p. 36.
STIGLITZ, Ruben. Autonomia de la coluntad y revision del contrato. Contractos: teoria general.
Buenos Aires: Depalma, 1993, v. 2, p. 275.
67
Artigo 5
DIREITO À EDUCAÇÃO COMO DIREITO
DA PERSONALIDADE
Cristiano Dionísio
Resumo
Os direitos da personalidade constituem-se numa categoria específica de direitos porque são
inerentes à própria condição humana. O respeito a tais direitos possibilita a preservação e a
promoção do desenvolvimento integral da pessoa em sociedade. Essa hipótese coaduna-se
com a cidadania e com o princípio da dignidade humana enquanto fundamentos do estado
democrático de direito no Brasil. Percebe-se, em outra perspectiva, que a capacidade cognitiva
é elemento intrínseco da citada condição humana. O desenvolvimento de tal capacidade,
levado a cabo por sucessivos processos de aprendizagem, deve ser garantido e promovido
pelo direito à educação. Os direitos da personalidade, no entanto, por força do seu próprio
objeto, não se restringem a uma visão dicotômica do Direito em público e privado. O direito
à educação apresenta­se como exemplo das limitações que essa análise pode trazer. O direito à
educação, na perspectiva dos direitos da personalidade, portanto, obtém relevância axiológica
ainda maior; pois sua não-observação lesa, a um só tempo , elemento constitutivo da condição
humana e, ainda, valores e direitos que fundamentam e legitimam a existência do esta do
brasileiro. Como consequência dessa hipótese, o direito à educação vê ampliadas, também,
as possibilidades jurídicas e judiciais de sua efetivação.
Palavras-chave: Educação; Dignidade humana; Direitos da personalidade.
Abstract
T1c rights of personality belong to a specific right’s category, because they are inherent to
the human nature. Respecting these rights enables the preservation and promotion of the
person full development in society. This hypothesis is consistent with the citizenship and the
principle of human dignity as democratic foundations of the state of l aw in Brazil. In another
way, that cognitive ability is an intrinsic part of that human nature. The development of
such ability i s consequence of successive processes of learning; witch must be guaranteed
and promoted by the right to education. The rights of personality, however, by virtue of their
object, can not be restricted to a dichotomist view of law in a public or private way. The right
to education is presented as an example of the limitations that this kind of analysis can bring.
The right to education, in view of the right s of personality, get even more importance; because
it’s violation leads to a serious damage for the person’s human nature and, at the same time,
turns downs the values and rights that legitimize the existence of the Brazilian state. As a
consequence of this hypothesis, the right to education has larger possibilities to its legal and
judicial execution.
Keywords: Education; Human dignity; Rights of personality.
68
DIREITO À EDUCAÇÃO COMO DIREITO DA PERSONALIDADE
1 Considerações iniciais
A Constituição Federal de 1988, dentre outros mérito s, cumpriu o escopo de cri ar um
novo momento institucional na história do país. Embora se tenha presenciado sucessivos escândalos administrativos e políticos em face dos três poderes constitucionalmente estabelecidos, é forçoso reconhecer que não se fazem mais presentes, mesmo no discurso político mais
exaltado, pretensas soluções que não respeitem a estrutura institucional do Estado Democrático de Direito.
É possível reconhecer os reflexos dessa perspectiva, bem como dos valores plasmados na
Constituição Federal de 1 988, nos diversos níveis de competência normativa do ordenamento
jurídico pátrio. Numa perspectiva hermenêutica, por exemplo, sagraram-se os valores e os direitos constitucionalmente estabelecidos como fundamentos dos métodos interpretativos das
normas infraconstitucionais.
É, pois, por tal motivo que se faz necessária a correta compreensão do significado dos direitos da personalidade, os quais, embora tenham sido explicitados no Código Civil de 2002 (o
que representa inovação se comparado com o Código Civil de 1 9 16), já podiam ser identificados em outros diplomas legais anteriores e, com certeza, também no citado texto constitucional. Exemplo irretocável dessa aproximação entre o disposto no Código Civil e na Constituição
Federal v i gentes se dá por meio da dignidade humana. na condição de valor jurídico comum
a ambas as normas. Pode-se entender, assim, que os direitos da personalidade, tanto numa perspectiva constitucionalista, quanto numa perspectiva civilista (se é que é possível fazer tal recorte
teórico), protegem o mesmo bem jurídico em favor da pessoa.
É nesse cenário que emerge a compreensão da educação como um dos direitos da personalidade, pois é inerente ao indivíduo e revela-se como sustentáculo fundamental de uma atuação socialmente qualificada e difusora, ela própria, da dignidade do seu titular.
O que se pretende, pois, com este artigo, é contribuir com uma perspectiva jurídica em
favor da concretização de um direito fragilmente respeitado na eleição de prioridades do estado
brasileiro: o direito à educação. Este, comumente, ainda não se mostra massificado, nas possibilidades de acesso e de qualidade, no mérito do seu processo de ensino-aprendizagem.
Deseja-se que, por meio desta leitura acadêmica, se esteja contribuindo para a construção
de um debate jurídico em favor do educacionismo1.
2 Educação e natureza humana
A construção de uma leitura honesta acerca dos direitos da personalidade passa por uma
reflexão que se apresenta primeiro como filosófica, para, num segundo momento, revelar-se jurídica: o que é próprio do ser hum ano?
Isso significa que o debate jurídico em face da classificação e especificação de quais direiCorrente política enunciada por Cristovam Buarque, ex-Reitor ela UNB, ex-Ministro ela Educação, atualmente Senador da
República pelo Distrito Federal. O educacionismo defende a educação como elemento central do processo de transformação
cultural e social do Brasil. Não se articula, de forma específica, a qualquer partido político.
1
69
Artigo 5
tos estão ou não vinculados a essa categoria normativa (direitos da personalidade) é fruto direto
do referencial teórico adotado por quem se propõe a debruçar-se sobre o tema.
Para se compreender, neste artigo, como o direito à educação é inerente ao ser humano, e,
portanto, fruto imediato da personalidade deste, adota-se como pressuposto filosófico o entendimento de que o ser humano humaniza-se em sociedade. O processo de aprendizagem, entende-se, é o fato determinante na humanização do indivíduo e das possibilidades de seu reconhecimento e atuação no entorno social. Essa perspectiva evidencia, portanto, que o ser humano não
possui tão somente uma dimensão fisiológica, mas também uma dimensão lógica.
O acima exposto pode ser compreendido como uma leitura clássica sobre o tema, na perspectiva em que importantes referenciais teóricos dessa linha são, de fato, do período clássico da
filosofia grega. Platão e Aristóteles são exemplos notórios.
Adotando A República como elemento de referência da obra de Platão, para o objeto deste
artigo, percebe-se como o autor entende que a formação humana está lastreada não somente
no exercício da razão, mas, sobretudo, no exercício virtuoso desta em busca da verdade, o que
somente será possível se orientada por um valor fundamental: o sumo bem. A metáfora desse
processo de descoberta-e-libertação, que somente o exercício virtuoso da razão pode propiciar,
encontra-se ilustrada naquela que é uma das passagens mais famosas do referido texto: o Mito
da Caverna.
Esse Mito não se vincula somente à formação de uma alma justa, ou, ainda, à formação de
um filósofo. O Mito da Caverna pode ser interpretado também como uma ilustração da libertação do homem por meio do processo educacional. Por óbvio. a educação não se restringe a um
processo de acúmulo e memorização de dados, mas se expande em direção ao exercício de um
processo de aprendizagem que tem por fundamento uma interpretação crítica da realidade22.
Na República isso se evidencia pelo próprio método utilizado. O ato filosófico retratado na
obra não representa um tratado, mas sim um debate entre Sócrates, Trasímaco, Glauco e Adimanto. Essa perspectiva tem importância singular n a medida em que revela que a educação e
seu processo de aprendizagem não são autônomos, mas decorrem de urna necessária interação
social. A construção do pensar filosófico de Platão, influenciado diretamente pelo método socrático, possui na interação social sua ferramenta de construção filosófica.
É importante destacar, para que se tenha a correta interpretação do apresentado, que a
obra de Platão, sem dúvida, aborda uma série de outros temas caros e importantes à Filosofia e
aos seus objetos de análise; porém não há como negar que o fundamento do ato filosófico apresentado por ele se inicia com a contemplação, mas somente se perfectibiliza (na medida humanamente possível) por meio da educação enquanto elemento social.
Aristóteles ao seu tempo, e ao seu modo, é mais incisivo na caracterização do ser humano
como ente essencialmente social. O estagirita, na sua obra Política, é contundente ao indicar que
o locus do homem é a sociedade, a qual permite que o sujeito acesse, reconheça e se aproprie da
2
PLATÃO. A República. Tradução de: Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 229-232.
70
DIREITO À EDUCAÇÃO COMO DIREITO DA PERSONALIDADE
linguagem, dos seus sistemas de valores e das possibilidades de pensar filosoficamente. Não
houvesse interação social, o indivíduo, portanto, não desenvolveria a dimensão de sua existência que o torna único diante dos demais entes da realidade, o exercício virtuoso de sua razão3.
Não se pode, por certo, desejar a simples transposição de ideias elaboradas no século IV
a.C. para o século XXI d.C. Este texto não se apresenta para tanto. É válido destacar, porém, que
ao lado das tradicionais questões filosóficas sobre a natureza humana, suas características, sua
origem, seu destino e sua interação com o todo que o cerca, a reflexão sobre o processo de aprendizagem e a forma educacional que leva a tanto também se fizeram presentes.
É possível, com isso, evidenciar que não se caracteriza o ser humano sem mencionar ao
seu processo de aprendizagem sobre a realidade na qual está inserido; bem como não se pode
compreender o processo de aprendizagem fora de uma perspectiva educacional.
A capacidade cognitiva4 pode ser interpretada, pois, como decorrente da pessoa, porém
seu desenvolvimento não é autônomo; faz-se por meio de estímulos provenientes de um processo educacional que é fruto de um entorno social. Carlos Rodrigues Brandão5, com singular poder de síntese, assevera: “Ninguém escapa da educação’’. O conteúdo do processo educacional
mudará de acordo com o momento histórico, a estrutura social e, inclusive, em face da estrutura
e organização política da sociedade. Ainda assim, o processo educacional é uma constante da
sociedade. Nas palavras do autor6:
A educação é. como outras, uma fração d o modo de vida dos grupos sociais que
a criam e recriam. Entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade.
Formas de educação que produzem e praticam, para que elas reproduzam, entre
todos os que ensinam-e-aprendem, o saber que atravessa as palavras da tribo, os
códigos sociais de conduta. as regras do trabalho, os segredos da arte ou da religião, do artesanato ou da tecnologia que qualquer povo precisa para reinventar,
todos os dias, a vida do grupo e a d e cada um de seus sujeitos, através de trocas
sem fim com a natureza e entre os homens, trocas que existem dentro do mundo
social onde a própria educação habita ; e desde onde ajuda a explicar - às vezes a
ocultar, às vezes a inculcar - de geração em geração, a necessidade da existência de
sua ordem.
Tendo como premissa, portanto, que os direitos da personalidade provêm de atributos
inerentes à pessoa, é forçoso reconhecer que a capacidade cognitiva insere-se no rol de tais elementos intrínsecos ao indivíduo. Se o direito ao corpo decorre da vida enquanto atributo inerente à pessoa, por exemplo, entende-se que é correto pontuar que o direito à educação decorre
da capacidade cognitiva, pois esta, tanto quanto a vida, também é atributo inerente ao sujeito.
ARISTÓTELES. Política. Tradução de: Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 13-15.
Capacidade de atribuir significados aos lementos presentes na sua realidade. BOCK, Ana M.Bahia: FURTADO. Odair:
TEIXEIRA, Maria de Lourdes Trassi. Psicologias - Uma introdução ao estudo da Psicologia. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
p.117.
5
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação? 18. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 7.
6
Ibid p. 10-11
3
4
71
Artigo 5
Filosofia, Psicologia e Pedagogia figuram corno exemplos de campos do conhecimento
humano que aprofundam o estudo sobre os processos e mecanismos presentes no processo de
aprendizagem e na edificação de estruturas cognitivas, bem como dos métodos mais adequados
de desenvolvê-las7. Se por um lado tal dimensão não é própria da ciência jurídica, por outro,
cabe ao direito reconhecer a essencialidade da capacidade cognitiva, dentre os demais atributos
inerentes à pessoa, e tutelá-lo coma relevância jurídica que o tema merece.
3 Educação e direitos da personalidade
Examinando-se o conteúdo jurídico dos direitos da personalidade, é pacífico o reconhecimento de que o valor jurídico a ser considerado como eixo interpretativo é a dignidade humana.
É possível afirmar que, embora existam divergências em face das possibilidades de classificação
e especificação dos direitos da personalidade, que serão trabalhados logo adiante, a dignidade
humana é o ponto de convergência entreos autores pátrios.
A razão normativa para tanto se encontra no próprio texto constitucional de 1988 que,
ao incluir a dignidade humana como fundamento do estado brasileiro (art. I?, III), descortinou
novas possibilidades de atuação social e judicial em face do ordenamento jurídico pátrio. Diante
desse cenário, resgatou-se a pessoa e a cidadania como elementos centrais e principais destinatárias da ação de todo e qualquer tipo de poder a ser exercido (art. 1.º,§ único).
Fica positivado na Constituição Federal, assim, que a garantia da vida humana, por si,
não é suficiente ao estado brasileiro. O critério não é mais simplesmente objetivo, mas também
qualitativo. A vida torna-se, em face da Constituição Federal, mais que a mera sobrevivência. É
dever do estado brasileiro, portanto, permitir, garantir e promover as condições para urna vivência digna de todos os seus cidadãos e cidadãs.
Nessa perspectiva, ao se vislumbrar que a vida e sua preservação são os fundamentos de
todos os demais direitos inerentes à pessoa, o princípio da dignidade humana projeta-se como
elemento condicional para a realização do sujeito em sociedade, e, por extensão, dos direitos da
personalidade.
É a partir desse entendimento que Elirnar Szaniawski8 realiza análise sistemática do texto
constitucional e pontua que o exercício pleno da cidadania (art. 1º, II) e a promoção da dignidade
humana (art. 1º, III) revelam-se, em conjunto. Como cláusula geral de proteção da personalidade
do indivíduo.
Prova da relevância, bem como da logicidade do entendimento anteriormente indicado,
dá-se ao se caracterizar a violação dos direitos da personalidade como hipótese de dano moral
direto, na perspectiva em que tal violação atenta contra a própria personalidade do sujeito e a
dignidade inerente a ela.
Esse autor, mesmo já tendo realizado a interpretação constitucional que demonstra a
BOCK, Ana M. Bahia; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes Trassi. Psicologias – Uma introdução ao estudo da
Psicologia . 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 117-131.
8
SZANIAWSK1, Elimar. Direitos da personalidade e sua tutela. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005. p. 240.
7
72
DIREITO À EDUCAÇÃO COMO DIREITO DA PERSONALIDADE
complementaridade existente entre a personalidade, os direitos da personalidade, o exercício da
cidadania e, ainda, o princípio da dignidade humana, resgata a perspectiva filosófica que é inseparável do tema: “os direitos da personalidade se enquadram dentro do conceito de’9-direito
natural, justamente por se apoiarem na natureza das coisas”.9
Com essa assertiva propõe-se que não cabe ao conteúdo das diversas espécies normativas,
quer sejam de perfil constitucional, quer infraconstitucional, descrever ou inscrever o que corresponde à vida digna e seus consequentes direitos da personalidade - uma vez que é da própria
natureza da pessoa que tais conteúdos decorrem.
Reconhecendo-se que a essência do homem ou, ainda, aquilo que lhe é inerente determinam o significado da dignidade humana e dos direitos da personalidade, não é possível limitá-los a uma visão tão restritiva como a hipótese de classificá-los como de ordem pública ou privada. Segundo Elimar Szaniawski10:
Nesse sentido, os direitos de personalidade não são divisíveis em direitos da personalidade públicos e privados. Os direitos de personalidade, por serem da personalidade humana, transcendem não só uma disciplina jurídica, mas todo um ramo,
não cabendo estes direitos na divisão dicotômica do direito em público e privado.
Essas perspectivas constitucionalistas bem como o resgate de um referencial jusfilosófico
para iluminar o conteúdo apresentado fazem reforçar o entendimento de que o direito à educação corresponde ao campo dos direitos da personalidade.
Ao se reconhecer que a capacidade cognitiva, base do processo de aprendizagem, é fundamentalmente ligada à pessoa, ao indivíduo, e, ainda, que o processo educacional, que promoverá tal aprendizagem, é social e não autônomo, percebe-se que classificar o direito à educação
como sendo pertinente somente ao direito público ou ao direito privado é trabalhar pelo empobrecimento do tema ora em comento.
Tem-se, de tal arte, que o direito à educação está ligado à realização de uma dimensão
fundamental da natureza humana e que, portanto, lhe é inerente: sua capacidade cognitiva, ou
seja, a efetivação do direito à educação é, ao mesmo tempo, legítimo interesse do indivíduo e
também da sociedade. Em outras palavras: a educação é um dos elementos de operacionalização
do Bem Comum.
É curioso notar que situação similar havia sido trabalhada por Tomás de Aquino na Idade
Média. Esse filósofo, ao seu tempo, propugnou pela superação de uma pretensa dicotomia que
emergia no debate filosófico do século XIII11: a oposição entre corpo e alma.
Ao caracterizar o ser humano como a união substancial de corpo e alma, torna-se possível
superar a citada divisão e compreender que há uma relação de complementaridade entre ambos
SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da personalidade e sua tutela. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 241.
Ibid. p. 243
11
AQUINO, Santo Tomás. Verdade e Conhecimento – Questões disputadas “Sobra a verdade” e “Sobre o verbo” e “Sobre a
Diferença entre a palavra divina e a humana”. Tradução, estudos introdutórios e notas de: Luiz Jean Lauand e Mario Bruno
Sproviero. São Paulo: Martins Fontes. 2002.
9
10
73
Artigo 5
os elementos. Nessa relação, na perspectiva da aquisição de conhecimento, por exemplo, a alma
intelege aquilo que o corpo, por meio dos sentidos, seria capaz de apreender. Se numa perspectiva epistemológica tal entendimento hoje se mostra questionável, é importante citar que ele
possibilitou uma nova leitura do exercício da função pública, que deve levar em consideração
essas dimensões.
Desse referencial tomista tem-se que a realização do Bem Comum na sociedade estará
diretamente vinculada à garantia e promoção dos elementos que aproveitam a todos e, ainda
assim, permitem a realização da natureza de cada indivíduo.
A educação, regressando à perspectiva jurídica, permite ao indivíduo um exercício mais
efetivo e pleno de sua cidadania, o que é um dos fundamentos do estado brasileiro de acordo
com a Constituição Federal vigente: não obstante, ao mesmo tempo, permite a realização de
urna dimensão imprescindível da personalidade do sujeito e, portanto, da própria natureza humana: o desenvolvimento da sua capacidade cognitiva por meio da promoção da aprendizagem
no citado processo educacional.
A corroborar tal raciocínio é possível, por exemplo, estabelecer uma relação com o conteúdo jurídico dos direitos da personalidade na perspectiva de Orlando Gomes12. Para superar
uma série de objeções históricas em face da caracterização dos direitos da personalidade, o autor
propõe que a definição de tais direitos tenha estrita ligação com o objeto sobre o qual ele incide.
Quanto mais tais direitos forem diretamente vinculados ao seu objeto, mais próximo se estará
de uma precisão jurídica do seu conteúdo.
Ocorre, porém, que o objeto do direito é o bem jurídico e, desde um primeiro momento,
percebe-se que pessoas são sujeitos de direito, e não objetos dele. A solução apresentada pelo
autor é o entendimento de que “nos direitos de personalidade, sujeito e objeto se confundem”1313
Significa dizer que a personalidade é um atributo inerente ao ser humano ; o direito não a cria,
mas a reconhece. Ela se apresenta como condição mínima e necessária para que o sujeito possa
contrair direitos e obrigações.
O referido atributo não pode ser interpretado como sinônimo das ferramentas jurídicas
que visam a tutelá-lo ou promovê-lo. Os direitos da personalidade não se confundem com a
personalidade em si, mas esta última é o que determina a possibilidade de existência e correição
dos enunciados normativos que caracterizam os primeiros. O autor, da forma exposta, assevera:
A teoria dos direitos da ‘Personalidade somente se liberta de incertezas e imprecisões se sua construção se apoia no Direito Positivo, e reconhece o pluralismo desses
direitos ante a diversidade dos bens jurídicos em que recaem, tanto m ais quanto
são reconhecidamente heterogêneos.14
Compreende-se, assim, que a personalidade e os direitos da personalidade são elementos
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 151.
Ibid. p. 151.
14
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 152.
12
13
74
DIREITO À EDUCAÇÃO COMO DIREITO DA PERSONALIDADE
distintos. A personalidade é inerente à pessoa, sendo reconhecida pelo direito. Já os direitos da
personalidade, de outra sorte, não são decorrentes da pessoa em si, mas do ordenamento jurídico. É preciso lembrar, no entanto, que a personalidade possui caracteres específicos a serem
observados, sob pena de se colocar em risco a sua própria atualização pelo indivíduo. Os direitos
d a personalidade, em face do exposto pelo autor, para gozarem de efetividade, deverão estar
ligados diretamente aos caracteres evidentemente presentes na personalidade do ser humano.
Permite- se presenciar, novamente, a influência da filosofia tomista na concreção dos direitos da personalidade. Para Tomás de Aquino, a união substancial de corpo e alma é a raiz
da natureza humana15. Esta raiz faz germinar o ser humano como uma constante sucessão de
transformações de potência em ato. A potência, na leitura do aquinate , está presente na alma.
A concretização de tal possibilidade, no entanto, realiza-se, torna-se ato, por meio do corpo. O
homem, com isso, atualiza em sua vida o que em sua natureza é pura potência. Ao se projetar
esse cenário para o campo jurídico dos direitos da personalidade, vislumbra-se que a personalidade (potência), enquanto capacidade de direito ou aptidão genérica para contrair direitos
e obrigações16, somente pode ser exercida (atualizada), se seus caracteres fundamentais forem
devidamente respeitados e protegidos.
Se os diversos eventos cotidianos atualizam a potência da natureza de cada ser humano,
é o respeito aos caracteres fundamentais da personalidade que possibilitará a realização social e
jurídica do indivíduo em sociedade.
Neste momento, mais uma vez, torna-se forçoso reconhecer que a capacidade cognitiva é
dimensão essencial da personalidade humana e a educação é o direito que lhe corresponde; na
medida em que tal capacidade cognitiva (atributo específico da personalidade/potência) somente se desenvolve por meio da garantia, da promoção e do acesso ao processo educacional que,
em última análise, é natural da própria sociedade.
Viu-se, até o momento, que os estudos dos direitos da personalidade são diretamente
influenciados pelos referenciais teóricos adotados por seus pesquisadores. Constatou-se ainda
que, ao assumir como válida a proposição de que o ser humana possui em sua natureza (numa
visão filosófica) elementos materiais e imateriais, a personalidade terá atributos de ambas as
perspectivas, sendo que na imaterial reconheceu-se que a capacidade cognitiva é inerente ao ser
humano. Tal capacidade, no entanto, desenvolve-se por meio de um processo de aprendizagem
que somente se faz presente por interrompido de práticas educacionais. Estas são obstantes, somente se concretizam em face da interação social. A educação emerge, portanto, como elemento
operacionalizador do Bem Comum, na medida em que aproveita todos, e, ao mesmo tempo, é de
legítima necessidade individual. Isso permitiu, em síntese aferir que o direito à educação deve
ser interpretado como direito da personalidade na medida em que viabiliza a efetivação de uma
característica intrínseca ao ser humana: o ato reflexivo em face da realidade que o cerca.
BITTAR, Educardo C, B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de Almeida. Curso de filosofia de direito. 4. ed. São Paulo: Atlas. p.
198.
16
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 26. ed. v. I. São Paulo: Saraiva. p. 152.
15
75
Artigo 5
4 Enquadramento do direito à educação como direito da personalidade
Existem autores que entendem adequada uma separação normativa e teórica entre o que
caracteriza os direitos da personalidade e o que caracteriza as liberdades públicas individuais.
Citam-se, a guisa de exemplo, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho17, bem como Inácio de Carvalho Melo18 e Roberto Sinese Lisboa19.
Os autores indicados interpretam que os direitos da personalidade, como inerentes ao
próprio homem, devem ser reconhecidos e protegidos pelo Estado; ou, ainda, que caberia à coletividade o cumprimento do dever jurídico de não prejudicar, impedir ou embaraçar o exercício
de tais direitos.
Já as liberdades públicas apresentariam como característica o deliberado comportamento
de um indivíduo em face do qual o Estado tem o dever jurídico de garantir o exercício de tal
direito (faculdade).
Inácio de Carvalho Neto20 propõe a seguinte síntese:
Em outras palavras, enquanto os direitos da personalidade afirmam a proteção
avançada da pessoa humana, estabelecendo condutas negativas da coletividade
(obrigação de não fazer, isto é, não violar a personalidade de outrem), as liberdades
públicas funcionam a partir de garantias constitucionais, impondo condutas positivas ao Estado para que estejam assegurados os direitos da personalidade.
Roberto Senise Lisboa21 realiza leitura igual:
Os direitos da personalidade são estudados á luz do direito privado, no qual
é estabelecida a regra da obrigação de não fazer imposta à coletividade em
gera l, cuja finalidade é proporcionar que o titular dos direitos essenciais possa
usufruí-los da melhor maneira.
As liberdades públicas se fundam na necessidade de uma obrigação de
fazer do Estado, a fim de que tais direitos sejam efetivamente consagrados,
garantidos e protegidos.
Vale destacar, no entanto, que o reconhecimento da cidadania e da dignidade humana
como fundamentos do estado brasileiro, conforme determinado na Constituição Federal, não
permite uma visão privatista ou pública dos direitos da personalidade, pois, pela própria dinâmica de tais direitos e principalmente pela natureza específica de seu objeto (personalidade), tais
visões se encontrariam superadas.
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil – Parte Geral. 8. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2006.
18
NETO, Inácio de Carvalho, Curso de direito civil. v. 1. Curitiba: Juruá, 2006.
19
LISBOA, Roberto Senise
20
NETO. Inácio de Carvalho. Curso de direito civil. v I. Curitiba: Juruá. 2006. P.126.
21
LISBOA. Roberto Senise. Manual de Direito Civil. v. I. São Paulo: Saraiva. 2008. p. 166.
17
76
DIREITO À EDUCAÇÃO COMO DIREITO DA PERSONALIDADE
A razão de tal superação possui ao menos três fundamentos merecedores de destaque.
Primeiro, a impossibilidade de o Estado determinar qual o conteúdo da personalidade. Segundo, o Estado tem nos sujeitos os destinatários e o critério de legitimação de sua existência e
estrutura de poder, conforme art. 1º, § único, da Constituição Federal. Terceiro, o sujeito, de
acordo com o referencial teórico ora adotado, não se realiza de forma isolada, mas somente em
sociedade. Uma eventual perspectiva privatista dos direitos da personalidade, com isso, somente
possui lógica em face de um terceiro, pois é da interação com o próximo que o homem humaniza-se e atualiza (realiza) sua personalidade (potencialidade).
O reconhecimento do direito à educação como direito da personalidade contribui, inclusive, para ratificar a interpretação de Elimar Szaniawski, conforme anteriormente indicado. Não
é possível falar de direito da personalidade como relacionado às liberdades públicas porque seu
fundamento axiológico e teleológico não se reduz à norma; ao contrário, distancia-se do conteúdo estrito delas ao espraiar-se por sobre a natureza humana e sua correspondente dignidade,
elementos que, embora juridicamente tutelados, não possuem seus conteúdos vinculados normativamente.
Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira22:
A concepção dos “direitos ela personalidade” sustenta que, a par dos direitos economicamente apreciáveis, outros há, não menos valiosos, merecedores de amparo
e proteção da ordem jurídica. Admite a existência de um ideal de justiça, sobreposto à expressão caprichosa de um legislador eventual. Atinentes à própria natureza
humana, ocupam eles posição supraestatal, já tendo encontrado nos sistemas jurídicos a objetividade que os ordena, como poder de ação judicialmente exigíveis.
O direito à educação, como direito da personalidade, revela-se, assim. não só no viés de
uma necessidade jurídica em face de um atributo específico da personalidade humana (capacidade cognitiva), mas também como relevante indício da concretização de práticas promotoras
do Bem Comum .
Percebe-se, indo além, que as hipóteses de classificação dos direitos da personalidade
adotam como ponto de partida aquilo que é inerente ao ser humano. Acolhe-se, pois, o posicionamento mais comum na doutrina pátria, o qual considera como direitos da personalidade
inatos aqueles que se adquirem ao nascer com vida e se mantêm enquanto ela existir.
Os direitos da personalidade inatos projetam-se em eixos de organização que podem variar de acordo com os autores. Os eixos mais citados pela doutrina, ainda que com pequenas
variações terminológicas, foram apresentados por Limongi França e Carl os Alberto Bittar23: o
direito à integridade física , direito à integridade intelectual/ psíquica e direito à integridade
moral.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições do direito civil – Introdução ao direito civil. Teoria geral de direito civil. v. 1. 21.
Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 237-238.
23
LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. v. I. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 170.
22
77
Artigo 5
Orlando Gomes24 e Washington de Barros Monteiro25 adotaram a classificação dos direitos
da personalidade em duas categorias, quais sejam, direito à integridade física (vida e corpo) e à
integridade moral (honra, liberdade, recato , imagem, nome e autoria). Outros autores consultados, como Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho, Roberto Senise Lisboa, Maria Helena
Diniz e Inácio de Carvalho Neto, filiaram-se à classificação na forma dos três eixos conforme
citado anteriormente.
A defesa do reconhecimento do direito à educação como direito da personalidade, conforme exposto, decorre do entendimento já consolidado de que a personalidade do sujeito apresenta-se por meio de situações materiais e imateriais. Reconhecendo que a capacidade cognitiva
está ligada à atividade psíquica íntima do indivíduo, vislumbra-se que é neste eixo, o d a integridade psíquica, que se faz presente o direito à educação.
Muito se tem discutido sobre a necessidade de se resgatar a pessoa e suas demandas e
necessidades concretas como elementos centrais de uma nova prática para o Direito Civil. Uma
prática que se demonstre de vanguarda na construção de soluções para uma sociedade que se
depara com o que parece ser o esgotamento de uma forma de se exercer o Direito. Tal perspectiva doutrinária prima pela dignidade humana, pela função social dos contratos, da posse e da
propriedade, e, ainda, pela aquisição e manutenção de um patrimônio mínimo que permita a
satisfação das necessidades fundamentais dos indivíduos e suas famílias.
Não há justificativa, nesse contexto, para que se reconheça o direito autoral como decorrente dos direitos da personalidade, no eixo da integridade psíquica (liberdade de criação), e
não se adote o mesmo critério para o processo educacional que, ao viabilizar a aprendizagem,
contribui com o ato criativo em si.
Merece destaque o entendimento de Roberto Senise Lisboa26, que explicitamente discorre
sobre o tema:
A integridade psíquica também é protegida desde a infância, buscando-se o desenvolvimento da criança e do adolescente e sua inserção na convivência social. Da
educação que se recebe nos primeiros sele a nos de existência edifica-se o caráter da
pessoa e demonstram-se as alternativas de vida que ela pode escolher.
O Direito Civil, que valoriza conceitos importantes como boa -fé, autonomia da vontade e
liberdade de estipulação negocial (principalmente se devidamente sopesado s em face de outros
princípios constitucionais c civis), não pode admitir que exatamente o direito ao processo educacional , que possibilita ao sujeito atuação jurídica e social mais qualificada, não seja considerado
um dos direitos da personalidade.
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 153-154.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil – Parte geral. 39. Ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 96.
26
LISBOA. Roberto Senise. Manual de direito civil. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 171.
24
25
78
DIREITO À EDUCAÇÃO COMO DIREITO DA PERSONALIDADE
As características27 dos direitos da personalidade também são identificáveis no direito à
educação, adquirido de forma não onerosa e original, na medida em que este faculta singularmente ao seu titular o processo de aprendizagem que somente é possível em face da capacidade
cognitiva inerente ao homem. O direito à educação é extrapatrimonial, pois não há como alienar, ou, de outra forma, fazer circular economicamente a necessidade e a capacidade de aprendizado que a pessoa possui . O direito à educação é indisponível ao não se vislumbrar hipótese
de renúncia ao direito de aprender; afinal, o não-exercício de tal direito não acarretará na impossibilidade futura de efetivá-lo. O direito à educação é perpétuo na medida em que adere ao seu
titular até que se tenha caracterizado o fim da existência legal daquele28. “O direito à educação
é oponível erga omnes na medida em que, da sua realização, depende o pleno desenvolvimento
da capacidade do indivíduo e, de tal arte, cabe aos d em ais indivíduos em sociedade não intervirem nesse processo e ao poder público garanti-lo. Embora o ato educacional seja social, o
processo íntimo da aprendizagem é personalíssimo o que, a um só tempo, torna evidente a intransmissibilidade, a incomunicabilidade e a impenhorabilidade do direito à educação. Da mesma forma, no exercício do direito à educação não se vislumbra a possibilidade de caracterização
da prescrição de tal direito.
5 Considerações finais
Os direitos da personalidade, explicitados no texto do Código Civil de 2002, são a cristalização de um critério de tipificação para a determinação d e tai s direitos. d e acordo com locução
de Elimar Szaniawski. Isso, por certo, não significa que o referido rol de direitos seja exaustivo,
mas tão e simplesmente exemplificativo. Tem-se, assim, que não há impedimentos normativos
para a caracterização do direito à educação como um dos direitos da personalidade.
Fábio Ulhoa Coelho29 insurge-se contra o que pode parecer não o exercício de uma pesquisa jurídica, mas, sim, uma demonstração de vaidade de alguns autores:
Na verdade, os direitos da personalidade são um catálogo de faculdades
jurídicas cuja extensão varia de acordo com o tecnólogo e suas preferências
(parece, por vezes, que alguns competem na busca de novo itens para o
cardápio).
Felizmente este não é o caso. O direito à educação, como direito da personalidade, incide
de forma direta sobre elemento intrínseco da própria personalidade, qual seja, a capacidade cognitiva que é inerente aos seres humanos. É a educação, portanto, que viabilizará um processo de
aprendizagem que não somente contribuirá para a realização da personalidade do sujeito, mas
também para o processo de construção da dignidade humana, fundamento do estado brasileiro.
Ibid. p. 168-169
Tal hipótese pode ser verificada em face de um contrato junto a uma instituição educacional ou, ainda, por meio de determinação legal nos casos de jubilamento, mas isso não acarretará na perda do direito à educação em si. Nada impedirá o educando de realizar o competente processo de avaliação acadêmica ou reiniciar sua iniciativa
29
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. I. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva. 2003. p. 183.
27
28
79
Artigo 5
É fato que não faltam normas a tutelar o direito à educação. A Constituição Federal, por
exemplo, identifica no caput do seu artigo 6º a educação como um direito social e aprofunda normativamente as disposições sobre o tema por meio do art. 205 e seguintes. No Código Penal
tem-se a tipificação da conduta daquele que não promove a educação de pessoa por quem é responsável. Trata-se do crime de abandono intelectual previsto no artigo 246 do referido diploma
legal. O Estatuto da Criança e do Adolescente possui diversos artigos referentes ao tema, todos
estabelecendo uma responsabilidade concorrente entre a família, os responsáveis e o poder público na promoção e garantia da educação”- são exemplos os artigos 4º, 22, 53,62 e 136 . Não se
pode deixar de lado, por óbvio, as normas de caráter específico como a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional - LDB, lei n? 9 394 de 20 de dezembro de 1996.
Ao natural emerge, pois, a questão: já não seriam suficientes as disposições normativas
existentes acerca do tema? Humildemente entende-se que não. A perspectiva apresentada para
o direito à educação, como direito da personalidade, agrega-lhe nova projeção axiológica no
ordenamento jurídico. Se por força do texto constitucional de 1988 o princípio da dignidade humana transformou o direito à vida num elemento mais vinculante como o direito à vida digna, é
forçoso reconhecer que não existe tal dignidade sem o íntegro respeito e a garantia ao desenvolvimento da personalidade de cada sujeito. Sendo a capacidade cognitiva dimensão fundamental
da personalidade humana, percebe-se que, caracterizada a falta do seu desenvolvimento, por
meio de um processo de aprendizagem devidamente articulado em face do direito à educação,
a própria personalidade fragiliza-se.
Afirma-se, assim, que ao se adotar o direito à educação como um direito da personalidade, evidencia-se que a educação está para a v id a digna assim como o corpo está para a vida. O
corpo sustenta a vida enquanto fenômeno natural, mas é o direito à educação que singulariza a
vida humana em face de todos os demais sistemas vivos existentes na realidade.
O direito à educação, como direito da personalidade, insere-se no rol de direitos que promovem e protegem à integridade psíquica do ser humano, o que descortina outras possibilidades de interpretação doutrinária ‘, bem como de proteção judicial.
6Referências
AQUINO , Santo Tomás. Verdade e conhecimento - Questões disputadas “sobre a verdade”
e “sobre o verbo” e “sobre a diferença entre a palavra divina e a humana “. Tradução, estudos
introdutórios e notas de: Luiz Jean Lauand e Mario Bruno Sproviero. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
ARISTÓTELES. Política. Tradução de: Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2002.
BITTAR , Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de Almeida . Curso de filosofia do direito.
4. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
BOCK, Ana M. Bahia ; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes Trassi. PsicologiasUma introdução ao estudo da psicologia . 13. ed. São Paulo: Saraiva , 1999.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação? 18. ed. São Paulo: Brasiliense. 1986.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil. 1. ed. v. l. São Paulo : Saraiva. 2003.
DINIZ, Maria Helena . Curso de direito civil brasileiro. 26. ed . v. 1. São Paul o : Saraiva .2009.
80
DIREITO À EDUCAÇÃO COMO DIREITO DA PERSONALIDADE
GAGLJANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FlLf-lO, Rodolfo. Novo curso de direito civil­ Parte
geral. 8. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2006.
GOMES. Orlando. Introdução ao direito civil 12. ed. Rio de Janei ro: Forense, 1996.
LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2008 .
MONTEIRO, Washington de Barros Monteiro. Curso de direito civil- Parte geral. 39.
ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil - Introdução ao direito civil.
Teoria Geral de Direito Civil. 21. ed. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
PLATÃO. A república. Tradução de: Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004 .
SZANIAWSKI , Elimar. Direitos da per sonalidade e sua tutela. 2. ed . São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005.
81
Artigo 6
PRINCÍPIOS PROCESSUAIS: UMA VISÃO
REMODELADA A PARTIR DAS NOVAS
TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO
Elton Baiocco1
Resumo
Ao mesmo tempo em que a Constituição Federal de 1988 garante ao Estado o monopólio
da jurisdição, impõe-lhe o dever de oferecer um processo justo e em tempo razoável. A
realidade, porém, demonstra que a morosidade do Poder Judiciário alcança níveis inaceitáveis.
O desenvolvimento das Tecnologias da Informação acarretou transformações sociais que
agravaram ainda mais as exigências de redução do tempo de resposta jurisdicional. O uso
dessas novas tecnologias permite extrair importantes contribuições da informática e tornar
realidade a garantia à razoável duração do processo, sem abrir mão das demais garantias
constitucionais aplicáveis ao processo judicial.
Palavras-chave: Razoável duração. Tecnologias da Informação. Processo eletrônico. Princípios
processuais.
Abstract
The 1988 Federal Constitution ensures the state jurisdiction monopoly, but at the same
time it determines the state ought to offer due processes in a reasonable period of time.
However, in practice the department of justice slowness reaches inacceptable levels. In
addition, development of new information technologies brought about social changes which
demand increased time-reduction concerning jurisdictional solutions. The optimization of
new information technologies can bring important contributions regarding informatics and
ensure due processes have reasonable time-duration without putting aside other applicable
constitutional guarantees.
Keywords: Reasonable time-duration. Information Technologies. Electronic process.
Procedural principles.
1Introdução
Inicialmente, a ideia de colocar a informática a serviço da justiça parecia que não encontraria adeptos. Como relatam Garcia MARQUES e Lourenço MARTINS, “o computador era
considerado como um instrumento de cálculo incapaz de desempenhar uma qualquer função
judiciária”2.
O direito, enquanto fenômeno cultural, não poderia, contudo, escapar infenso à realidade
que lhe circunda. Na década de 1990, o processamento eletrônico de dados jurídicos despertou
o interesse para a automatização dos tribunais.
Egresso do Curso de Direito da Faculdade Dom Bosco, conclusão em 2009. Mestre em Direito das Relações Sociais pela
UFPR. Professor do Curso de Direito da Faculdade Dom Bosco. Advogado. Membro do Instituto Paranaense de Direito Processual (IPDP).
2
MARQUES, Garcia. MARTINS, Lourenço. Direito da Informática. p. 75.
1
82
PRINCÍPIOS PROCESSUAIS: UMA VISÃO REMODELADA A PARTIR
DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO
A necessidade de fazer uso ótimo destas novas tecnologias no processo civil tornou indispensável a regulação legal da matéria, que, no caso brasileiro, se deu por meio da Lei nº.
11.419/2006. Sucede, porém, que o aludido diploma não cuidou suficientemente da passagem
da tramitação processual dos autos físicos para o meio virtual, sendo, pois, pertinente, discorrer
acerca dos impactos que a informatização impôs ao processo civil.
2 A Nova roupagem da jurisdição no processo eletrônico
Por processo eletrônico não deve ser compreendido a mera transferência, armazenamento,
processamento e manipulação de dados. A proposta mais atual vai além e tem a ver com a verdadeira mudança de paradigma. A inovação é mais profunda, mais técnica, mais científico-processual e voltada a um processo de resultado substancial, desburocratizado, acessível, célere e eficaz.
Em termos objetivos, a prevalecer a ideia de mera digitalização dos autos processuais e
de prática de alguns atos processuais com o uso de recursos de informática e de Tecnologia da
Informação, estar-se-ia repetindo na nova acepção de processo (eletrônico), os mesmos vícios
aos quais incorre o processo atual.3
Para alcançar os propósitos de celeridade, segurança e eficácia, o processo eletrônico precisa ser visto a partir de todas as suas potencialidades. Necessário, outrossim, abandonar o conservadorismo que tradicionalmente acompanha os operadores do Direito. Sendo a acepção de
jurisdição moldada a partir do conjunto de valores e de ideias de uma determinada época, inexorável se faz a releitura de seu papel diante da sociedade da informação e do processo eletrônico.
2.1 A jurisdição na sociedade da informação
Nem a tecnologia determina a sociedade, nem tampouco esta estabelece os rumos da primeira. Para Manuel Castells, há uma interação dialética entre ambas, de modo que “a tecnologia
não determina a sociedade: incorpora-a. Mas a sociedade também não determina a inovação tecnológica: utiliza-a”4.
Devido à sua capacidade de penetração nas mais diversas esferas da atividade humana, a
Tecnologia da Informação é tida como verdadeiramente revolucionária. Com efeito, os principais processos de geração de conhecimentos, produtividade econômica, poder político ou militar, bem como a comunicação, foram todos transformados pelo paradigma informacional.
Há, ademais, verdadeiro ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e o seu uso,
sendo essa lógica responsável não apenas pela conexão do mundo por meio da Tecnologia da
Informação, como também pela velocidade com a qual ela ocorre.5
GARCIA, Sérgio Renato Tejada. Processo eletrônico na Justiça Federal. In: Encontro Íbero Latino Americano de Governo
Eletrônico. 8. 2009, Florianópolis, p. 12-13. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/23840613/Processo-eletronico-na-Justica-Federal>. Acesso em: 15 nov. 2014.
4
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura. Tradução de Roneide Venancio Majer. 6.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. v.1, p. 43.
5
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura. Tradução de Roneide Venancio Majer. 6.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999, v.1, p. 69-70.
3
83
Artigo 6
A expressão “sociedade da informação” data de 1975 e teve origem na OCDE. O mesmo
termo, porém, referindo-se às infraestruturas da informação, foi também utilizado por Jacques
Delors, em 1993, na Comunidade Europeia.
Esse novo paradigma de sociedade, pautado pelo exlente uso das novas tecnologias, permite tratar, armazenar, recuperar e transmitir informações sob as formas escrita, sonora ou visual,
sem restrições de distância, tempo ou volume. O modo de desenvolvimento econômico e social
que emerge nesse contexto constitui o traço marcante dessa sociedade, na qual a informação foi
alçada à importante fonte de poder.6
Evidente, pois, que o modelo contemporâneo de Estado e de jurisdição encontra-se já permeado por tais característicos, perante os quais certamente não permanecerá indene de transformações. Sob o aspecto temporal, o clamor por uma prestação jurisdicional célere alçou a razoável
duração do processo ao rol de garantias fundamentais.7 No que concerne ao desaparecimento dos
limites territoriais, é premente a necessidade de uma reformulação da teoria do ato processual a
partir da ideia de ubiquidade que aflora no processo eletrônico.
Ao tratar da forma como as novas tecnologias impactam o direito e os tribunais, Boaventura
de Souza Santos8 aborda a “operacionalidade organizacional interna dos tribunais”, bem como
a nova relação estabelecida “entre os tribunais e a sociedade [...] informatizada e mediatizada”.
Para o autor, ambas as questões são técnicas e ao mesmo tempo políticas, e fazem parte de um
debate mais amplo, o qual envolve a significação social, econômica, política e cultural do que
denomina a “revolução das tecnologias de informação”.
Para o jurista português, não obstante, foram as concepções de espaço e de tempo que sofreram transformações mais profundas. A ideia de morosidade remonta à modernidade, quando surgiu a ideia de espaço-tempo nacional e dentro dela, a temporalidade judicial, que fixou
patamar da duração dos processos. Nas precisas palavras de Boaventura de Souza Santos9:
Este espaço-tempo está hoje a ser desestruturado sob a pressão de um espaço-tempo emergente, global e instantâneo, o espaço-tempo electrónico, o ciberespaço. Este
espaço-tempo cria ritmos e temporalidades incompatíveis com a temporalidade
estatal nacional.
Assim, a adoção de novas tecnologias constitui ao mesmo tempo oportunidade e risco. As
oportunidades, em termos de gestão, dizem respeito à celeridade e eficácia, mediante automação de tarefas rotineiras (v.g., pautas, distribuição, gestão documental); em termos de democratização de acesso, bases de dados jurídicas até então de difícil ingresso são compartilhadas;
quanto aos recursos humanos, espera-se redução de custos – como sucedeu na Noruega, em 10%
(dez por cento).10
MARQUES, Garcia; MARTINS, Lourenço. Direito da informática. 2.ed. refundida e actualizada. Coimbra: Almedina, 2006, p.
38 - 41.
7
Por meio da Emenda Constitucional n.o 45/2004.
8
SANTOS, Boaventura de Souza. Os tribunais e as novas tecnologias de comunicação e de informação, p.85 - 86.
9
Ibid., p.88.
10
Ibid., p.92.
6
84
PRINCÍPIOS PROCESSUAIS: UMA VISÃO REMODELADA A PARTIR
DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO
Os riscos, por seu turno, se manifestam à medida que os mesmos vícios presentes no processo tradicional são incorporados ao processo eletrônico. Como já sinalizado, os anseios sociais
vão além da mera digitalização de documentos em papel e a possibilidade de praticar atos processuais com o uso de tecnologias da informação. O momento deve ser visto como de ruptura, rumo
a um processo eletrônico célere, econômico e eficaz.
Há receio, outrossim, de que o processo eletrônico seja considerado verdadeira panaceia
para a morosidade do Judiciário. Ou seja, como se num passe de mágica fossem neutralizados
problemas culturais e de ordem estrutural, que demandam investimentos específicos para serem sanados.11
Não obstante, fato é que a adoção de novas tecnologias da informação implica a reformulação dos chamados princípios processuais e até mesmo, na inserção de novos, como se analisará.
3 Princípios processuais: uma visão remodelada a partir das novas tecnologias da informação
Já se assinalou que a ideia de processo eletrônico não se limita à mera digitalização de
peças processuais. A inovação vai além disso e abrange necessária inter-relação entre as Ciências
do Direito (notadamente Processual), da Computação e da Informação. Vale dizer, é imprescindível uma visão interdisciplinar para a exata compreensão dos impactos decorrentes da utilização
das novas tecnologias no âmbito processual.
A ineficiência do Poder Judiciário é tema caro aos cidadãos. Logo, a Administração da
Justiça não pode omitir a perspectiva de otimização que surge no horizonte da utilização das
tecnologias computacionais e informacionais. Trata-se, afinal, de proposta que caminha rumo a
uma prestação jurisdicional efetiva e em tempo razoável.
O tema não é objeto de debate apenas no Brasil. A Associação Internacional de Direito Processual (IAPL) realizou em 2010, na cidade de Pécs – Hungria, o Congresso Eletronic Justice, Present and Future, dedicado ao tema das mudanças no quadro tradicional do Direito Processual
Civil decorrentes do uso de tecnologias digitais e da Internet. Naquela oportunidade, juristas de
três continentes debateram aspectos nos quais o processo civil pode (e precisa) ser aprimorado.12
Na ocasião, o conferencista brasileiro José Eduardo de Resende Chaves Júnior13, sob o título “O Processo em Rede”, discorreu sobre como doutrina e jurisprudência poderão canalizar a
emancipação proporcionada pelas novas tecnologias. Propôs ainda novas linhas para o Direito
Processual Civil, com a formulação de novos princípios.
ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo. Processo eletrônico e teoria geral do processo eletrônico..., p.3.
Sítio da University of Pécs – Faculty of Law. Disponível em: <http://www.law.pte.hu/hirek/461>. Acesso em: 08 out. 2014.
13
O texto respectivo foi publicado em CHAVES, José Eduardo de Resende Júnior (coord.). Comentários à lei do processo
eletrônico, p.15-38.
11
12
85
Artigo 6
3.1 Instrumentalidade e imaterialidade
Desde a consolidação da ciência processual, resultante dos esforços de renomados processualistas como Bülow, Goldschmidt, Chiovenda e outros, é assente na doutrina que o processo não
é um fim em si próprio. Ou seja, está voltado à pacificação dos conflitos, bem como a realizar seus
escopos sociais, políticos e jurídicos. Trata-se, pois, do instrumento por meio do qual tais objetivos
podem ser alcançados.
Cândido Rangel Dinamarco14, ao desenvolver a ideia de instrumentalidade, afirma que
ela está voltada não ao aprimoramento de conceitos e institutos da dogmática processual, mas
sim, a tornar a prestação jurisdicional mais sensível ao mundo no qual está inserida. A preocupação com a operatividade e com os resultados é desenvolvida sob quatro aspectos fundamentais:
(i) a admissão em juízo; (ii) o modo de ser do processo; (iii) a justiça das decisões; e (iv) sua efetividade.
A proposta passa pelo desapego aos formalismos estéreis, ou seja, aqueles cuja observância não traz qualquer finalidade prática, olhos postos na preocupação maior de Chiovenda, para
quem “il processo deve dare per quanto è possibile praticamente a chi ha um diritto tutto quello
e proprio quello ch’egli ha diritto di conseguire” 15.
Com a introdução do Princípio da Imaterialidade, José Eduardo de Resende Chaves Júnior corrobora essa repressão aos formalismos inócuos, salientando que o processo eletrônico
permite maior proatividade, no sentido de estimular que doutrina e jurisprudência encontrem o
meio mais pragmático e justo para solucionar o caso concreto.
16
Em outras palavras, o princípio revela como o meio eletrônico potencializa e viabiliza a
ideia de que a inexistência de técnica processual adequada não deve ser óbice à efetivação de
direitos, vez que é dado ao juiz, por imposição constitucional, suprir tais vícios e assegurar a
tutela dos direitos materiais.17
Com a imaterialidade não se pretende suprimir regras formais essenciais, como intimações e prazos, por exemplo. Prega-se uma flexibilidade processual, mas condicionada ao workflow do sistema processual eletrônico, de sorte a possibilitar que a reiteração de situações venha
a moldar uma concepção mais construtivista e mais democrática de processo.
A imaterialidade aproxima noções como processo, procedimento e autos, permitindo que
aquilo que hoje muitos denominam de automação procedimental venha, num futuro próximo, a
tornar-se processo eletrônico, com todos os recursos e as facilidades inerentes.
Com isso será possível evitar (ou ao menos reduzir consideravelmente) discussões puramente formais, que em nada contribuem para um resultado célere e eficaz do processo. Os
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12.ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p.334.
CHIOVENDA, Giuseppe. Dell’azione nascente dal contratto preliminare. Rivista di diritto commerciale, 1911. s.p. Tradução
livre: “O processo deve entregar, tanto quanto possível, a quem possui um direito tudo aquilo, e exatamente aquilo, que tem
direito de obter”.
16
CHAVES, José Eduardo de Resende Júnior (coord.). Comentários à lei do processo eletrônico, p. 25-27.
17
Vide MARINONI, Luiz Guilherme. O direito de ação na constituição brasileira, p.14. Disponível em: <http://marinoni.adv.
br/wp-content/uploads/2010/04/20090909022054Direito_de_acao-1.pdf>. Acesso em: 09 out. 2014.
14
15
86
PRINCÍPIOS PROCESSUAIS: UMA VISÃO REMODELADA A PARTIR
DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO
sujeitos processuais estarão ligados entre si por meio da linguagem, o que permite enfatizar as
questões que realmente interessam à pacificação do conflito de interesses.
Nessa ordem de ideias, tem-se que a interação dialética no meio eletrônico, ao enfatizar
a linguagem, permite às partes o pleno exercício do direito de participar da construção da decisão, que tende a ser mais justa e mais consentânea com a realidade social, o que contribui para
a efetividade e a celeridade.
3.2 O Contraditório a partir da conexão e da interação
Essa nova perspectiva de debate e de participação diz, também, com as novas feições assumidas atualmente pelo princípio do contraditório.
Derivado da garantia de igualdade, o contraditório, em sua acepção tradicional, assegura
ao demandado o direito de ser formalmente comunicado da existência da demanda para, dentro
de prazo razoável, exercer o direito de comparecer e apresentar defesa. Também denominado
“bilateralidade da audiência”, exige, sob pena de nulidade, que a parte adversa tenha oportunidade de conhecer as petições e pretensões manifestadas e, querendo, apresentar refutação.18
Para José Rogério Cruz e Tucci, o contraditório é traço distintivo que conota o processo
judicial, sendo pressuposto básico para seu desenvolvimento que se desenrole dentro de condições de absoluta paridade entre as partes, isto é, no sentido de que as oportunidades sejam
conferidas indistintamente ao autor e ao réu, de forma preordenada e simétrica.19
No Brasil, o contraditório ganhou assento constitucional com a Carta de 1937 (Art. 122,
alínea 11), mas restrito ao processo penal, sendo que somente a partir de 1988 foi estendido também para os processos civil e administrativo.
Em sua acepção contemporânea, não significa mais apenas a oportunidade de reação ou
de evitar posições jurídicas desfavoráveis, para importar em deveres de colaboração dos litigantes e de participação do juiz, ao qual incumbe instalar integral debate judicial acerca das questões
versadas no processo.20 Com isso, procura-se impedir que temas não discutidos suficientemente
constituam fundamentos da decisão – vale dizer, as denominadas sentenças de terceira via.21
No processo eletrônico, o contraditório sofre influência do que José Eduardo de Resende
Chaves Júnior22 denomina “princípio da conexão”, o qual no processo em rede manifesta-se
tanto do ponto de vista tecnológico quanto do social, uma vez que conecta sistemas, máquinas e
pessoas. A abordagem do princípio se dará sob duas diferentes perspectivas: “reticular e inquisitiva”.
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil. 2.ed. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1951, p.79-81.
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Garantia constitucional do contraditório no projeto do CPC (análise e proposta), p.3. Disponível em: <http://www.iabnacional.org.br/IMG/pdf/doc-3545.pdf>. Acesso em: 26 dez. 2014.
20
CABRAL, Antônio do Passo. O contraditório como dever e a boa-fé processual objetiva. Revista de Processo, São Paulo,
n.126, p.59-64, ago. 2005.
21
Sobre o tema, ver GRADI, Marco. Il Principio del Contradittorio e La Nulittà della Sentenza della “terza via”. Rivista di Diritto
Processual, Padova, anno LXV, n.4, p.826-848, lug.ago. 2010.
22
CHAVES, José Eduardo de Resende Júnior (coord.). Comentários à lei do processo eletrônico, p.27-30.
18
19
87
Artigo 6
A conexão reticular é uma espécie de conexão qualificada, que difere daquela simplesmente linear por pressupor uma ampliação de escala. No processo eletrônico, esse caráter reticular somado à desmaterialização dos autos possibilita em tempo real a transmissão do conteúdo
de atos processuais, bem como a sua prática.
A figura da “vista dos autos fora de cartório” encontra-se superada. A publicidade, que
nos autos de papel por vezes consistia em singela presunção, transforma-se em uma realidade
efetiva no meio eletrônico. Os diferentes formatos de mídias eletrônicas, que armazenam não
apenas texto, mas também som e imagem, permitem romper com a rígida separação entre o
mundo processual e aquele das relações sociais.
O princípio da escritura é mitigado e cede, pois, espaço para a oralidade, que é incentivada tanto pela viabilidade de realizar audiências, julgamentos e outros atos processuais por
videoconferência quanto pela facilidade de gravação, armazenamento e reprodução do aludido
ato.23 Como é cediço, a oralidade contribui com a celeridade e com a formação da convicção do
julgador – e assim com a justeza das decisões, ainda que por via reflexa.
Esse novo contexto implica outra racionalização e organização da produção de provas,
visto que a conexão redunda em um processo com característicos inquisitivos (conexão inquisitiva). Como as fronteiras entre os autos e o mundo são cada vez menos evidentes, a busca da
verdade se perfaz segundo uma lógica probatória remodelada, o que não afasta a necessidade
de regulação dos limites para formação de convicção a partir de fatos públicos e notórios, ou,
melhor dizendo, fatos comuns e conectáveis.
Os novos contornos da ideia de contraditório visam, também, evitar abusos e procrastinações ardilosamente realizados em seu nome. Isso porque é recorrente que sob tal fundamento as
partes formulem requerimentos absolutamente infundados, prejudicando assim, a efetividade
do direito daquele que está com a razão.24 Embora constitua garantia fundamental, o direito ao
contraditório não é absoluto e precisa de temperamentos.
Esse contraditório clássico, linear e fragmentado, ganha em intensidade, autenticidade
e verossimilhança quando acrescido da instantaneidade que é marca das novas tecnologias. O
meio eletrônico permite não apenas a contradição, mas verdadeira interação, isto é, participação
efetiva e em paridade de condições. “O princípio da interação” incrementa, pois, um aspecto
substancial de compromisso com a verdade, evitando assim dilações indevidas.
Ao mesmo tempo em que a participação das partes é aumentada, com o que o processo ganha em traços democráticos, incrementa-se também a responsabilidade desses partícipes.
Não basta narrar os fatos e aguardar a resposta jurisdicional. Nesse novo contexto de interação,
o contraditório (possibilidade efetiva de influir na construção da decisão) e a ampla defesa (defesa técnica) serão efetivamente respeitados, uma vez que os contraditores poderão extrair do
O Código de Processo Civil admite desde o advento da Lei n.o 11.419/2006, que os atos processuais praticados na presença
do juiz sejam armazenados integralmente em meio eletrônico (Art. 169).
24
Vide a seguinte advertência: “Um processo capenga, interminável em sua exasperante morosidade, deve ser reconhecido
como ‘devido processo legal’, ao autor que somente depois de vários anos logre uma sentença favorável, enquanto se assegura
ao réu, sem direito nem mesmo verossímil, que demanda em procedimento ordinário, o ‘devido processo legal’ com ‘plenitude de defesa’?”. (SILVA, Ovídio A. Baptista. A “plenitude de defesa” no processo civil. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. As
garantias do cidadão na justiça. São Paulo: Saraiva, 1993, p.154).
23
88
PRINCÍPIOS PROCESSUAIS: UMA VISÃO REMODELADA A PARTIR
DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO
meio eletrônico todas as possibilidades de influir na formação do juízo de fato (indicação e produção de provas, além de fatos públicos e notórios) e no juízo de direito, nesse caso, não apenas
indicando a norma aplicável, mas, sobretudo, estabelecendo seu conteúdo e alcance. As responsabilidades são maiores também em termos éticos. A partir dessa potencialização da busca da
verdade, será reduzida a margem de alegação ou de negação de fatos facilmente verificáveis.25
3.3 Verdade material e intermidialidade
A busca pela verdade no Processo Civil enseja o confronto entre dois preceitos fundamentais: de um lado, o aspecto qualitativo (ou a justiça) das decisões e, de outro, a razoável duração
do processo e a efetividade da prestação jurisdicional.
Contentar-se com a verdade formal, assim compreendida aquela resultante unicamente
dos esforços probatórios das partes e da aplicação de regras processuais que envolvem ônus e
presunções, é característica de um modelo arcaico de justiça e de magistrado, no qual a doutrina
comparava com um mero espectador.
A busca pela verdade material (ou real), por seu turno, com a ampliação dos poderes
instrutórios conferidos ao juiz acaba por redundar na ordinarização do processo e no desapego
às técnicas de sumarização, o que por certo prejudica os ideais de uma justiça célere e efetiva.26
Já se afirmou que o processo eletrônico importa na remodelação da lógica probatória vigente, e que diminui substancialmente a distância entre o processo e o meio no qual ele está
inserido. José Eduardo de Resende Chaves Júnior27 acentua que o processo eletrônico é mais do
que a simples passagem de um meio de comunicação físico (papel) para outro, agora eletrônico.
Afinal, aquilo que denomina “milagre científico da informática” possibilita que a dialeticidade
processual se instale a partir de meios que transcendem a linguagem escrita, agregando movimento por meio de sons e de imagens.
A essa interação entre diferentes tipos de mídias é que se dá o nome de intermidialidade,
muito embora se reconheça que tal conceito ainda se encontra em fase de construção. Partindo-se do pressuposto de que o meio não é neutro, essa nova forma de entrelaçamento que os recursos informáticos permitem entre escrita, imagem e som faz com que o diálogo processual ganhe
novos contornos.
Acerca dos ganhos que essa nova concepção traz para a sistemática processual, José Eduardo de Resende Chaves Júnior28 destaca que:
Essa maior liberdade em relação à escritura enseja, por outro lado, a potencialização do processo como meio, como instrumento de efetivação dos direitos materiais,
pois além de aumentar a possibilidade de se aferir a verdade real, sua intermedialidade, isto é, a maior interação entre várias mídias, acaba por deformalizar o
CHAVES, José Eduardo de Resende Júnior (Coord.). Comentários à lei do processo eletrônico, p.30.
Sobre o tema, numa acepção crítica, ver: SILVA, Ovídio A. Baptista. A “plenitude de defesa” no processo civil.
27
CHAVES, José Eduardo de Resende Júnior (coord.). Op. cit., p.30-31.
28
CHAVES, José Eduardo de Resende Júnior (coord.). Comentários à lei do processo eletrônico, p. 30-31.
25
26
89
Artigo 6
processo, torná-lo inclusive mais pragmático e menos sujeito a regras rígidas de
um único meio. Essa deformalização possibilita de uma maneira mais ressaltada
a canalização dos meios e das mídias a benefício dos escopos sociais do processo.
Vale dizer, dentro do atual sistema da persuasão racional29, mitigado pela gradativa redução de fronteiras entre os autos e o mundo virtual, o meio eletrônico oferece mecanismos mais
percucientes na reconstrução do substrato fático, contribuindo com o acerto dos julgamentos
e viabilizando o efetivo cumprimento do dever de motivação das decisões judiciais. Exemplo
disso é a facilidade oferecida pelo princípio “conexão inquisitiva”, no sentido de permitir ao
próprio magistrado a verificação de fatos acessíveis e conectáveis na rede.
Importante advertir, porém, que os aludidos benefícios não serão devidamente aproveitados
caso se confirme uma tendência da adoção do processo eletrônico, qual seja: a de que serventuários afetos a funções operacionais dos cartórios e secretarias, em razão da sua automatização,
sejam remanejados para atuação em gabinetes, assessorando (quando senão até mesmo substituindo) o magistrado em suas tarefas decisórias.
Não se está aqui a retirar a importância da assessoria, sobretudo, na forma apontada por
Owen Fiss: a contribuição deve ser canalizada para a assistência em pesquisas e discussões que
forcem o magistrado a reexaminar suas premissas. O que não se afigura viável é a delegação da
tarefa decisória, o que acarretaria distanciamento entre o responsável pela instrução e aquele que
efetivamente decide, não apenas violando o princípio da imediatidade, como também comprometendo a legitimidade da decisão, vez que o poder-dever jurisdicional não é passível de delegação.
Imprescindível, pois, que a adoção das novas tecnologias não redunde em fragmentação
da tarefa de julgar, mas, ao contrário, possibilite que a maior dialeticidade resulte em verdadeira
aproximação do julgador com o conjunto probatório, facilitando o cumprimento do dever de
proferir decisões motivadas.30
3.4 Celeridade e economia segundo hiper-realidade e instantaneidade
Não basta, porém, que a controvérsia seja resolvida com justiça e manifestada por meio de
uma decisão judicial adequadamente fundamentada. Sobretudo no Estado Constitucional, recai
sobre o ente estatal o dever de propiciar uma prestação jurisdicional efetiva e em tempo condizente.
Tratando especificamente do sistema da persuasão racional ou livre convencimento motivado, Flávia Moreira Guimarães
Pessoa o define como “aquele no qual o juiz, de conformidade com seus critérios de entendimento, calcado no raciocínio e na
lógica, tendo como base a legislação vigente, com apoio nos elementos existentes nos próprios autos, tendo que, na sentença,
explanar sua motivação, decide, com racional liberdade, a demanda proposta”. (PESSOA, Flávia Moreira Guimarães. O livre
convencimento motivado enquanto direito fundamental das partes, p.6. Disponível em: <http://direitoprocessual.org.br/
fileManager/Flvia_Pessoa___O_livre_ convencimento_motivado_enqunto_direito_fundamental_das_partes.doc>. Acesso em:
27 dez. 2014).
30
Sob o contexto da narrativa de Hannah Arendt acerca de Eichmann – burocrata da organização nazista responsável por
transportar judeus para a solução final –, o autor norte-americano sustenta que a fragmentação e a compartimentalização de
tarefas, típicas da burocracia, implicam isolamento dos agentes, que acabam por desconhecer a abrangência total das atividades da organização. Igualmente, tende a tornar a responsabilidade difusa, transferindo-a do indivíduo (juiz) para a organização (Poder Judiciário), que em regra mostra-se mais amena. A preocupação de Owen Fiss reside no fato de que “[...] a
mesma ausência de pensamento, que Arendt encontrou em Eichmann, pode surgir no âmbito judicial”. (FISS, Owen. Um novo
processo civil: estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade. Coordenação da tradução: Carlos Alberto
de Salles. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.183).
29
90
PRINCÍPIOS PROCESSUAIS: UMA VISÃO REMODELADA A PARTIR
DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO
O princípio da eficiência31 da Administração Pública, constante do Artigo 37 da Constituição da República, contempla não apenas a celeridade, como também a economia de recursos
estatais despendidos na prestação da jurisdição. Quanto a isso, o processo eletrônico contribui
com a redução de custos, por exemplo, com papel e outros insumos (impressoras, etiquetas, capas etc.). No âmbito do Tribunal Regional Federal da 4.a Região a contenção realizada com tais
rubricas já supera o valor investido no desenvolvimento do sistema informatizado, denominado
e-Proc.32
O tema da racionalização dos custos se reflete, e de forma positiva, na esfera jurídica dos
jurisdicionados. Além da substancial redução de tempo na remessa de feitos entre o primeiro
grau para os tribunais, ou mesmo, entre estes e os Tribunais Superiores, a automação processual
suprimiu (ou ao menos reduziu) despesas com o porte de remessa e retorno dos autos. Atende-se, com isso, ao princípio da economia, que, segundo a lição de Eduardo Juan Couture33 faz com
que, como meio, o processo não exija dispêndios desproporcionais aos bens nele debatidos.
Ainda segundo o mesmo princípio, prossegue o processualista uruguaio, é expressão de
economia e celeridade a simplificação das formas de debate, com ênfase na oralidade e com documentação concisa.34
Em que pese a relevância conferida por processualistas do gabarito de Chiovenda e Cappelletti à oralidade, a tradição processual deu prevalência à escrituração. O processo eletrônico
constitui, pois, oportunidade de restabelecer a importância que a oralidade merece – tanto em
termos de aproximação da verdade real quanto de celeridade –, uma vez que a tecnologia permite suprimir distâncias e realizar audiências e julgamentos por meio de videoconferência, sem
prejuízo do armazenamento integral em áudio e vídeo dos referidos atos processuais.
A esse fenômeno José Eduardo de Resende Chaves Júnior35 dá o nome de hiper-realidade,
já que traz dinamicidade ao que até então se encontrava cristalizado no meio físico, ou seja, em
papel. A inovação vai além do que a dogmática atual já permite (por exemplo, a juntada de mídias eletrônicas aos autos físicos), pois caracteriza plena integração entre atos postulatórios da
parte, conjunto probatório, atos decisórios, dentre outros.
Ademais, cabe lembrar que essa hiper-realidade está disponível em tempo integral para
todos os participantes do processo, seja autor, réu, juiz, representante do Ministério Público
ou auxiliares. Muitos atos de secretaria, que até então demandavam equipe capacitada, são realizados pelo próprio partícipe, de forma instantânea, e sem a necessidade de qualquer outra
“O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do
agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em
relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os
melhores resultados na prestação do serviço público”. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 21.ed. São
Paulo: Atlas, 2008, p.78-80).
32
Ainda mais expressiva economia de recursos públicos haveria, evidentemente, se cada Tribunal não precisasse empregar
recursos no desenvolvimento de sistemas próprios. Sem prejuízo da iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em
implementar o Processo Judicial Eletrônico (PJe), cuja proposta é transformar-se em solução única para a automação do Poder
Judiciário em âmbito nacional, fato é que os recursos já foram despendidos no desenvolvimento de sistemas locais, cuja obsolescência já se afigura iminente.
33
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil, 2.ed. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1951, p. 84-85.
34
Id.
35
CHAVES, José Eduardo de Resende Júnior (coord.). Comentários à lei do processo eletrônico, p.31-33.
31
91
Artigo 6
intervenção. Questões estritamente burocráticas, como juntada de documentos e numeração de
folhas, ocorrem de forma instantânea no fluxo do processo eletrônico, o que evidencia seu potencial em corroborar com a razoável duração do processo.
3.5 Efetividade e desterritorialização
Quando se refere à razoável duração, inexiste limitação ao processo ou fase cognitiva. Ao
contrário, só há efetividade quando o Poder Judiciário faz cumprir com celeridade suas próprias
decisões.
Segundo Cândido Rangel Dinamarco36, o vocábulo “efetividade” representa a aptidão do
processo para pacificar conflitos observando critérios de justiça e propiciando a universalidade
da jurisdição com todas as garantias que lhe são inerentes. Ou seja, compreende a efetiva entrega
do bem da vida ao demandante que tem razão.
Questões geográficas que refletem em regras sobre competência territorial, não raras vezes constituíam empecilho à efetividade e à razoável duração do processo, ao passo que exigiam a
expedição de cartas precatórias para cumprimento em comarcas distintas, muitas vezes, longínquas neste Brasil de dimensões continentais. A automação do Poder Judiciário já trouxe significativas inovações a esse respeito, como sucede, por exemplo, com a citação eletrônica ou mesmo
com os tão conhecidos sistemas BACENJUD, RENAJUD, INFOJUD, entre outros.
A ideia de desterritorialização vai além da transposição de circunscrições jurisdicionais
para permitir a plena fluência da efetividade dos direitos materiais, por meio de verdadeira
extensão da longa manus estatal. Questão problemática, há de se reconhecer, é a prática de atos
processuais em diferentes países ou mesmo, a remessa de patrimônio à margem da contabilização oficial, o que já suscita movimento doutrinário rumo à internacionalização do Direito material virtual.37
A integração torna mais célere e eficaz a prestação jurisdicional. Havendo plena interoperabilidade, a declinação de competência ocorrerá de forma natural, com o simples envio do feito
ao Juízo competente, com ciência às partes e demais interessados, prescindindo de despesas com
logística e sem que haja perda do histórico de tramitação, ou seja, permitindo total aproveitamento dos atos processuais já realizados – que possam ser convalidados, nos termos do Código de
Processo Civil.
Em termos de comunicação entre Juízo de Origem e Tribunal, a tendência é de que haverá
obsolescência das informações prestadas ao Relator em Agravo de Instrumento. Como o Tribunal terá acesso à íntegra dos autos na origem, perde a razão de ser o pedido de informações. Sem
prejuízo de eliminar o tempo morto hoje observado nas trocas de ofícios em papel, a medida
liberará o tempo do magistrado para atuar em atividades verdadeiramente produtivas ao invés
dessas de natureza burocrática.
36
37
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12.ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 375.
CHAVES, José Eduardo de Resende Júnior (coord.). Comentários à lei do processo eletrônico, p.36-37.
92
PRINCÍPIOS PROCESSUAIS: UMA VISÃO REMODELADA A PARTIR
DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO
Haverá de ser repensada até mesmo a necessidade de manutenção da regra de delegação de
competência prevista no Artigo 109, parágrafo terceiro da Constituição Federal, segundo a qual
“serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que
a comarca não seja sede de vara do juízo federal”.
O intuito dessa disposição é facilitar o acesso à justiça, sobretudo, o comparecimento das
partes e testemunhas em juízo. Ao se considerar, porém, a tramitação em meio eletrônico e a possibilidade de realização de audiências por videoconferência38, parece mais acertada a preferência
pelo Juízo Federal natural, que, além de melhor aparelhado, possui maior contato e domínio da
matéria. Evidente que, com isso, os Juízos Estaduais poderiam concentrar esforços e recursos nos
feitos de sua competência.
Enfim, a plena interoperabilidade entre todas as unidades do Poder Judiciário prestigiará
os princípios da celeridade e da economia, que no meio eletrônico manifestam-se sob a ideia de
instantaneidade. Evidente que a integração propiciará trocas de informações mais confiáveis e
mais ágeis do que aquelas verificadas atualmente entre sistemas com características distintas e
sem possibilidade de interconexão, ou mesmo, com relação a feitos que ainda tramitam em meio
físico.
Manifesta, ademais, a redução de distâncias (desterritorialização) e de entraves ao pleno
acesso à Justiça, contribuindo assim, com a utilização ótima dos recursos disponíveis e com a
ampliação da efetividade da tutela jurisdicional.
Digno de destaque, também, é o acordo firmado entre as Cortes Judiciárias da União Sul-Americana de Nações (UNASUL), visando estabelecer canais de cooperação entre os países participantes para permitir o intercâmbio de informações, a uniformidade de procedimentos como
extradições, homologação e cumprimento de sentenças, cartas rogatórias, entre outros. Evidente
que o uso da Tecnologia da Informação é requisito essencial para tal integração.39
4 Considerações finais
A nova lógica processual deve permitir o máximo desenvolvimento dos princípios que
emergem no meio eletrônico, como é o caso dos princípios da imaterialidade, conexão, interação, intermidialidade, hiper-realidade, instantaneidade e desterritorialização.
Deve ser prestigiada a oralidade, inclusive com a realização de atos processuais por videoconferência, o que permite repensar a competência federal delegada à Justiça Estadual (CRFB,
art. 109, § 3.º).
A realização de audiências por videoconferência é incentivada na Europa, sobretudo para colheita transfronteiriça de provas. Nos Estados Unidos, é amplamente empregada nas Cortes Federais, desde que envolva número não excessivo de participantes. (LUPOI, Michele Angelo. Enforcement of a claim with the support of the new information technology: protection of the creditor
and the debtor. In: Eletronic Justice, Present and Future, 2010. Pécs – Hungria: [s.n.], 2010, p. 25. Disponível em: <http://unibo.
academia.edu/MicheleAngeloLupoi/Papers/ 381006/Enforcement_of_a_claim_with_the_support_of_the_new_information_technology>. Acesso em: 17 nov. 2014).
39
Entre as proposições constantes da Reunião de Cúpula, realizada em Cuenca-Equador, consta a criação de um Conselho
Consultivo de Justiça e de um Centro Internacional de Conciliação, SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Mediação e Arbitragem. VI cúpula de poderes judiciários da UNASUL. Disponível em: <www.stj.jus.br/unasul>. Acesso em: 13 out. 2014).
38
93
Artigo 6
A plena interoperabilidade torna obsoletas a formação de instrumento na interposição de
agravo e as informações prestadas pelo juízo originário ao tribunal. Solução já em funcionamento na 4.ª Região da Justiça Federal fornece ao Tribunal acesso ao inteiro teor dos autos originários, reduzindo o tempo gasto com comunicações desnecessárias.
Em suma, importante perceber que o processo eletrônico traz potencial muito maior do que
a mera automação do processo tradicional. Por meio dele é possível resgatar e maximizar a oralidade, com todos os consectários benéficos, sobretudo, aqueles respeitantes à reconstrução da
verdade real, da imediatidade e concentração de atos, que certamente redundará em qualidade
de decisões e em celeridade.
Os benefícios que a tecnologia propicia precisam ser canalizados de sorte a transformar
o processo eletrônico em terreno de dialeticidade fértil e leal, com ampla possibilidade de produção de provas e de participação na construção de decisões, sem olvidar da integração dos
mecanismos capazes de lhes imprimir efetividade.
Referências
ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo. Processo eletrônico e teoria geral do processo
eletrônico: a informatização judicial no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
CABRAL, Antônio do Passo. O contraditório como dever e a boa-fé processual objetiva. Revista
de Processo, São Paulo, n.126, p.59-81, ago. 2005.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura.
Tradução de Roneide Venancio Majer. 6.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999, v.1.
CHAVES, José Eduardo de Resende Júnior (coord.). Comentários à lei do processo eletrônico.
São Paulo: LTr, 2010.
CHIOVENDA, Giuseppe. Dell’azione nascente dal contratto preliminare. Rivista di diritto
commerciale, 1911.
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil. 2.ed. Buenos Aires: Roque
Depalma Editor, 1951.
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Garantia constitucional do contraditório no projeto do CPC
(análise e proposta). Disponível em: <http://www.iabnacional.org.br/IMG/ pdf/doc-3545.pdf>.
Acesso em: 26 dez. 2014.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 21.ed. São Paulo: Atlas, 2008.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12.ed. São Paulo: Malheiros,
2005.
FISS, Owen. Um novo processo civil: estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e
sociedade. Coordenação da tradução: Carlos Alberto de Salles. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004, p.163-203.
GARCIA, Sérgio Renato Tejada. Processo eletrônico na Justiça Federal. In: Encontro Íbero Latino
Americano de Governo Eletrônico. 8, 2009, Florianópolis. Disponível em: <http://pt.scribd.com/
doc/23840613/Processo-eletronico-na-Justica-Federal>. Acesso em: 15 nov. 2014.
GRADI, Marco. Il Principio del Contradittorio e La Nulittà della Sentenza della “terza via”. Rivista di
Diritto Processual, Padova, anno LXV, n.4, p. 826- 848, lug. ag. 2010.
LUPOI, Michele Angelo. Enforcement of a claim with the support of the new information technology:
protection of the creditor and the debtor. In: Eletronic Justice, Present and Future, 2010. Pécs – Hungria:
[s.n.], 2010. Disponível em: <http://unibo.academia.edu/MicheleAngeloLupoi/Papers/381006/
94
PRINCÍPIOS PROCESSUAIS: UMA VISÃO REMODELADA A PARTIR
DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO
Enforcement_of_a_claim_with_the_support_of_the_new_information_technology>. Acesso em:
17 nov. 2014.
MARINONI, Luiz Guilherme. O direito de ação na constituição brasileira. Disponível em:
<http://marinoni.adv.br/wp-content/uploads/2010/04/20090909022054Direito_ de_acao-1.pdf>.
Acesso em: 09 out. 2014.
MARQUES, Garcia; MARTINS, Lourenço. Direito da informática. 2.ed. refundida e actualizada.
Coimbra: Almedina, 2006.
PESSOA, Flávia Moreira Guimarães. O livre convencimento motivado enquanto direito
fundamental das partes. Disponível em: <http://direitoprocessual.org.br/ fileManager/Flvia_
Pessoa___O_livre_convencimento_motivado_enqunto_direito_fundamental_das_partes.doc>.
Acesso em: 27 dez. 2014.
SANTOS, Boaventura de Souza. Os tribunais e as novas tecnologias de comunicação e de
informação. Sociologias, Porto Alegre, ano 7, n.13, p.82-109, jan./jun. 2005. Disponível em:
<http://seer.ufrgs.br/sociologias/article/view/5505/3136>. Acesso em: 26 set. 2014.
SILVA, Ovídio A. Baptista. A “plenitude de defesa” no processo civil. In: TEIXEIRA, Sálvio de
Figueiredo. As garantias do cidadão na justiça. São Paulo: Saraiva, 1993, p.149-165.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). VI cúpula de poderes judiciários da Unasul.
Disponível em: <www.stj.jus.br/unasul>. Acesso em: 13 out. 2014.
95
Artigo 7
A PROTEÇÃO AO TRABALHO
ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL E
O PODER POTESTATIVO DE DISPENSA
DO EMPREGADOR
Kelly Pauline Baran1
Resumo:
Aborda-se o direito ao trabalho como direito fundamental com consequência de eficácia
indireta em relações concretas e não somente dependente de ações afirmativas e, desta forma,
propõe-se a possibilidade de flexibilizar o direito potestativo do empregador nas dispensas
sem justa causa, com a finalidade de evitar condutas abusivas.
Palavras-chave: direitos fundamentais; direito ao trabalho; direito potestativo de dispensa;
dispensas sem justa causa; eficácia dos direitos fundamentais.
Abstract:
The right to work is approached as a fundamental right with consequence of indirect efficacy
in concrete relations and not only dependent of affirmative action, and as such, the possibility
of flexibilizing the potestative right of the employer in just cause dismissals is proposed, with
the goal of avoiding abusive conduct.
Key words: fundamental rights; right to work; potestative right to exemption; dismissals
without just cause; effectiveness of fundamental rights.
O Poder potestativo do empregador nas dispensas arbitrárias no ordenamento jurídico brasileiro
O empregador tem poder de direção sobre seus empregados que, por sua vez, têm o dever
de obediência, podendo o empregador dirigir, fiscalizar e controlar a prestação de serviços e,
inclusive, punir os seus subordinados.
Diante desse poder de direção, o empregador pode comandar, escolher e controlar os
meios de produção em sua empresa. O poder de direção se desdobra em três modos: o poder
diretivo, que se “constitui na capacidade do empregador em dar conteúdo concreto à atividade
do trabalhador, visando os objetivos da empresa”; o poder disciplinar, que é o poder de impor
punições; e o poder hierárquico ou de organização, podendo o empregador determinar a estrutura econômica e técnica de sua empresa (CASSAR, 2008. p. 266).
Esses poderes decorrem da celebração do contrato de trabalho entre empregador e empregado, tendo em vista que o primeiro tem sob sua responsabilidade a organização e a disciplina do trabalho, características próprias do instituto da subordinação jurídica.
Assessora de Gabinete no Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região; Mestranda em Governança e Políticas Públicas pela
UTFPR; Especialista em Assessoramento na Jurisdição Trabalhista pela Escola Judicial do TRT 9ª Região; professora de Direito
do Trabalho e Processo do Trabalho.
1
96
A PROTEÇÃO AO TRABALHO ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL E O PODER POTESTATIVO DE DISPENSA DO EMPREGADOR
Ressalta-se que o poder disciplinar tem por finalidade a manutenção da ordem no ambiente
de trabalho e se traduz na capacidade do empregador de aplicar sanções, que podem ser: advertência, suspensão e dispensa por justa causa. Nesse sentido, não se olvida que, de acordo com o
direito brasileiro, o empregador detém o poder potestativo de dispensa do seu empregado.
Potestativo é aquele direito que não depende da anuência do destinatário. É uma espécie
de direito subjetivo. O direito de rescindir de forma unilateral o contrato de trabalho enquadra-se, pois, nesse conceito.(DALLEGRAVE NETO, 2000. p 165).
Diante desse esclarecimento de Dallegrave Neto (2000, p. 165), tem-se que o termo “pedido de demissão” é errado, na medida em que o empregado não pede a demissão ao empregador,
este simplesmente se sujeita a vontade do empregado de demitir-se, sem necessidade de anuência por parte do empregador, ou seja, ambas as partes possuem o direito potestativo de encerrar
o contrato de trabalho.
Há quem defenda que, mesmo sendo a rescisão unilateral um direito subjetivo do tipo
potestativo, o agente ao incorrer em abuso de direito torna o ato nulo e sujeito a reparação dos
prejuízos eventualmente causados à parte prejudicada. Dessa forma, leciona Dallegrave Neto
(2000, p. 165) que “(...) o empregador que despedir o empregado sem que esteja presente em seu
ato interesse legítimo subjacente, provocará abuso de direito de resilição unilateral”.
Esclarece ainda o autor que essa dispensa sem interesse legítimo não se confunde com a
dispensa sem justa causa. Dessa forma, o direito potestativo não é absoluto, estando sujeito a
limitações. Uma dessas limitações pode ser encontrada no sistema da Convenção nº 158 da OIT.
Ressalta Wandelli (2004, p. 333-337), que a proibição da despedida abusiva não é antagônica ao reconhecimento do direito de despedir como potestativo, eis que, como salientado, este
não é absoluto.
Além da abusividade inerente ao ato de dispensa arbitrária, há casos em que o direito
potestativo do empregador é ainda mais abusivo, quando não é exercido de forma legítima ou
quando exercido em desacordo com as leis. (WANDELLI, 2004. p. 340)
Dentro desses limites, o empregador tem o direito potestativo de dispensar seus empregados, no entanto, salientando que “em nome da liberdade e autonomia da vontade estimulamos o desemprego, a miséria e a fome”. (MANUS, 1996. p. 42)
Em relação ao direito potestativo do empregador, Manus (1996, p. 42) defende a ideia de
que o empregado teria direito ao trabalho, decorrente do dever, socialmente imposto a todos, de
trabalhar. O direito ao posto de trabalho é uma reivindicação dos trabalhadores, condizente com
suas necessidades, bem como uma reação ao entendimento de que é dada absoluta liberdade ao
empregador de terminar o contrato de trabalho quando assim o quiser, estimulado pela conduta
liberal do Estado, que acentua a ideia de autonomia da vontade.
A Constituição Federal de 1988 consagrou o valor do trabalho e da livre iniciativa como
fundamento da República, isso quer dizer que o Estado existe em função da pessoa humana,
sendo sua finalidade precípua, não podendo ser utilizado como mero objeto para alcançar o
97
Artigo 7
querer alheio. Nesse diapasão, a empresa não pode se desenvolver desvinculada de sua função
social de valorizar o trabalho e a dignidade humana. (RESENDE, 2010. p. 91)
Gomes (2008, p. 51) afirma que o acesso ao trabalho é um direito fundamental, são suas
as palavras:
Vive-se numa sociedade de trabalho e sem este não há possibilidade de ser satisfeito a maioria dos cidadãos o direito à vida com dignidade. Desse modo, o alcance dos apontados objetivos depende da atuação positiva, séria e transparente do
Estado, de promoção, incentivo e planejamento, implantação de sérias políticas
públicas, para se garantir e realizar o direito fundamental de acesso ao trabalho,
os direitos dos empregados, além de se resguardar a manutenção das relações de
emprego contra as despedidas arbitrárias, decorrendo daí a retaguarda de próprio
regime democrático.
Para promoção da dignidade humana, faz-se necessário facilitar o acesso ao trabalho e,
também, tornar efetiva a garantia à manutenção do emprego adquirido. No ordenamento vigente, assegura-se ao empregado somente o direito a receber uma indenização, o aviso prévio
e outras verbas rescisórias. O mais importante que é manter o emprego, continua no arbítrio do
empregador. Disso resulta insegurança ao empregado, refletindo na sua vida familiar e pessoal.
(GOMES, 2008. p. 59)
Defende ainda Gomes (2008, p. 60) que não é possível o exercício de direito potestativo
pelo empregador, diante do disposto nos artigos 1º, inciso III e 170 da Constituição da República, que estabelecem a dignidade da pessoa humana como fundamento da ordem constitucional
e objetivo da ordem econômica, para que se compatibilize valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa. O direito potestativo estaria, para a referida autora, incrustado na cultura brasileira,
“ainda submetida aos reflexos de um sistema escravagista que perdurou, institucionalmente, até
o ano de 1988”.
Wandelli (2004, p. 88) ensina que todos os sistemas produzem vítimas, mas que não proporciona critério para afirmar que a negatividade proporcionada pela vítima seja produto de
uma injustiça. Afirma o autor que isso é denominado “banalidade do mal”. Esclarece que o tema
da banalização da despedida injusta se baseia no pensamento de Hannah Arendt, no que tange à
banalização do mal no regime totalitarista nazista.
Pretende o autor explicar a simplicidade envolvida na proibição da dispensa arbitrária e,
também, “a brutalidade da injustiça e os riscos que sua não coibição encerra” e o quanto isso se
encontra institucionalizado e aceito plenamente pela sociedade. (WANDELLI, 2004. p. 90)
Questiona Wandelli (2004, p. 92) se o próprio sistema estabelece os critérios necessários
para a proibição da dispensa arbitrária, e, nesse sentido, constata-se um silêncio da doutrina e
jurisprudência a tal respeito. Afirma se tratar do “tema da descartabilidade das pessoas trabalhadoras pelo sistema, refletindo-se no interior do próprio sistema jurídico”. A banalização da
98
A PROTEÇÃO AO TRABALHO ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL E O PODER POTESTATIVO DE DISPENSA DO EMPREGADOR
dispensa injusta seria o processo de silenciamento das injustiças que se tornaram visíveis dentro
do sistema.
Também Suguimatsu (2008, p. 178) defende a existência da banalização da dispensa sem
justa causa, nos seguintes termos:
O contexto atual – de um modelo econômico precarizante, inspirado em ideias
neoliberais – denuncia verdadeira banalização da despedida injusta, oque permite
desencadear um processo de “vitimização do trabalhador” pelo abuso de direito
do empregador. O predominante silêncio da jurisprudência e da doutrina trabalhistas quanto à coibição dessa forma de despedida reforça essa banalização (...)
A banalização envolve a diminuição da indignação diante de injustiças e, também, acaba
por mobilizar pessoas a servirem na execução, tendo em vista que retira o lado trágico da injustiça. Dessa forma, um sistema que é extremamente injusto e desigual se passa por justo e serve
de modelo que as empresas seguem. (WANDELLI, 2004. p. 95)
Nessa mesma linha, os métodos pessoais de cada pessoa de tolerar o sofrimento no emprego, diante das pressões constantes por mais produtividade e diante das ameaças constantes
de desemprego ou inadequação, produzem uma negação do sofrimento próprio e, consequentemente, do sofrimento alheio, o que gera uma tolerância e insensibilidade diante das injustiças
que ocorrem no meio laboral. Essa insensibilidade acaba se tornando necessária para suportar
as injustiças institucionalizadas pelas empresas. (WANDELLI, 2004. p. 100).
A ameaça constante de demissão e de precarização das relações de emprego gera medo,
o que reforça o ciclo de aceitação e ausência de indignação ante as injustiças, como o aumento
do ritmo e a geração de condições insatisfatórias de trabalho, fazendo com que os empregados
neguem seu próprio sofrimento como forma de sobrevivência no emprego.
Assim, concluindo suas ilações sobre o assunto, Wandelli (2004, p. 125) destaca que, se o
trabalho, mesmo que seja alienado, é a principal fonte de suporte de uma cidadania efetiva, o ato
de rompimento da relação de emprego por ato do empregador é ainda mais relevante para um
universo jurídico em que se tem constitucionalmente assegurados direitos fundamentais, do que
a doutrina que concebe a dispensa apenas tendo em vista a existência ou não do poder patronal
de dispensar.
Deve-se atentar que a relação empregatícia não é efêmera, tem uma pretensão de perdurar no tempo. O contrato de trabalho é, portanto, um contrato de trato sucessivo, que pressupõe
uma vinculação que se prolonga.
Inicialmente essa questão era vista com ressalvas, diante da possibilidade de se entender
o contrato de trabalho como uma forma de escravidão. Mais tarde, no entanto, a questão se inverteu, o perigo real passou a ser a insegurança no emprego, a estabilidade e não mais o risco de
servidão, já que o desejo de segurança é um traço típico do homem contemporâneo expressado
segurança social no século XX. (RODRIGUEZ, 2000. p. 239)
99
Artigo 7
Rodriguez (2000, p. 240) alerta para o fato de que tudo aquilo que contribui para a conservação da fonte de trabalho é um benefício para o trabalhador, para empresa e para a sociedade
como um todo, pois aumenta o lucro e melhora o clima social das relações entre as partes.
O trabalhador tem uma preocupação muito grande com sua permanência no trabalho,
com relação à sua estabilidade, pois a privação do trabalho significa, para a maioria, a privação
de sua fonte de renda alimentar. Dessa forma, o trabalhador deseja que sua relação de trabalho
tenha continuidade indefinida, por ser meio de sobrevivência sua e de sua família, e por proporcionar filiação à Previdência social e gozar dos benefícios oferecidos e para efeitos de aposentadoria.
Martins (2000, p. 130) leciona que “a manutenção do contrato de trabalho é, até mesmo,
questão social do trabalhador, de subsistência”, de modo que:
Há necessidade da continuidade do contrato de trabalho para se interpretar sistematicamente os artigos 6º, 170 e 193 da Constituição. Não se trata apenas da garantia de emprego, do já conquistado, mas de que todos tenham a possibilidade de ter
um emprego, num sentido amplo. O inciso IV, do artigo 7º da Lei Magna, ao tratar
do salário mínimo, dispõe que este é destinado a atender às necessidades básicas
do trabalhador e de sua família. Daí por que é preciso a continuidade da relação
laboral como forma de subsistência do obreiro, de assegurar seu sustento próprio e
também o de sua família. Traz a continuidade do contrato de trabalho a segurança
econômica ao empregado, que pode contar com o pagamento de salário no curso
do tempo e assumir prestações para o sustento de sua família.
Com as lições do autor, conclui-se que é de suma importância a continuidade do contrato
de trabalho, tendo em vista ser necessária para que o empregado tenha uma segurança mínima,
em sua vida e em seus gastos, a segurança de estar empregado e assim se manter ao longo do
tempo, desde que cumpra suas funções e cumpra o contrato de trabalho.
Com a segurança do trabalhador em seu emprego, este passará a trabalhar mais tranquilo,
e o empregador, ao longo do tempo, passa a contar com empregados cada vez mais experientes,
conhecedores das técnicas da empresa e já treinados, não havendo necessidades de gastos pelo
empregador com testes e treinamento de novas pessoas.
Prosseguindo em sua incursão sobre o assunto, destaca Martins (2000, p. 138):
É desejável que o empregado permaneça no emprego até quando for possível,
enquanto a empresa existir, pelas questões sociais que encerra. O desempregado
também não paga contribuições à Previdência Social, tendo o Estado de despender
recursos adicionais para sustentá-lo com base no seguro-desemprego, criando uma
situação social, pois os ativos devem sustentar os inativos. Não compra o desempregado produtos, sendo que as empresas deixam de vendê-los e podem também
dispensar seus empregados por falta de pedidos.
100
A PROTEÇÃO AO TRABALHO ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL E O PODER POTESTATIVO DE DISPENSA DO EMPREGADOR
Assim, a manutenção do emprego, para o autor, é uma questão importante não só para o
empregado, mas também para toda a sociedade. Isso ocorre, pois o Estado deixa de ter gastos
com as pessoas desempregadas, que não contribuem para a Previdência Social, mas de seus
benefícios desfrutam, e mantém a saúde do mercado, tendo em vista que, quanto mais pessoas
empregadas houver, mais consumidores comprarão os produtos das empresas, e, consequentemente, haverá um maior consumo de seus produtos.
Desenvolvendo essa temática, Silva (1999, p. 146) aponta a posição doutrinária unânime
em relação à importância do princípio da continuidade da relação de emprego, que tutela a tendência de permanência do contrato de trabalho:
Toda a doutrina está de acordo quanto à grande importância da continuidade, seja
do ponto de vista jurídico ou do econômico-social. Ela é benéfica para ambos os sujeitos da relação empregatícia: para o trabalhador porque lhe proporciona segurança econômica, pois, como sabe que o contrato e, com ele, a consequente percepção
de salário, durará, pode gozar de alguma tranquilidade quanto ao sustento seu e
de sua família, assim como à permanência no ambiente de trabalho e no convívio
com os seus colegas; ao empregador porque lhe possibilita dispor d e mão de obra
experimentada, evitando-lhe trabalho e despesas com recrutamento de novos empregados, o ensino de ofícios a este, formação profissional, treinamento (...).
Observa-se que diante dos benefícios trazidos por um contrato duradouro, algumas empresas atribuem um prêmio por fidelidade ou antiguidade aos empregados que estão a um longo tempo no serviço.
A antiguidade é uma consequência importante do princípio da continuidade. É nela que
a continuidade se concretiza. É a antiguidade a duração do serviço prestado a determinada empresa, configura-se em uma circunstância de fato. (SILVA, 1999. p. 158)
Araújo (2003, p. 189) afirma tratar-se de um princípio universal do Direito do Trabalho,
em razão do qual a regra é a celebração entre as partes de um contrato por prazo indeterminado,
que trazem uma perspectiva de “continuidade, de inserção e de possibilidade de profissionalização do trabalhador”.
Importante ponderação a respeito do tema faz Araújo (2003, p. 190), nos seguintes termos:
Observe-se que o contrato de trabalho tem, como uma de suas características, o
trato sucessivo, ou seja, não se esgotar em prestação única. E a continuidade das
prestações das partes dá ensejo a uma situação de superioridade que um sujeito
detém em relação ao outro, caracterizadora do poder diretivo do empregador (...)
Ademais, a continuidade da relação jurídica atende aos postulados universais consagrados pelo Direito Internacional: o de direito ao emprego, o de dignidade do
trabalhador e o de segurança.
101
Artigo 7
Acrescente-se que o empregador também é beneficiado com a celebração de contrato sem determinação de prazo. O profissional mais antigo tende a produzir melhor e em maior quantidade. Por sua vez, a permanência no emprego conduz à formação de laços de ordem pessoal, capazes de atingir patamares mais amistosos nas
diversas interrelações que se estabelecem no interior da empresa, entre empregado
e empregador, entre os trabalhadores e entre esses e os representantes sindicais ou
de comitês.
Constata-se que o principal fundamento do princípio da continuidade da relação de emprego é a proteção do empregado, tendo em vista que este depende de seu emprego para viver
com dignidade e segurança, e tendo em vista que a indefinição de prazo traz benefícios para o
empregado, para o empregador e para a sociedade como um todo.
O Direito ao trabalho enquanto direito fundamental
Direitos humanos são “o conjunto de direitos que torna possível a existência da pessoa
humana e seu pleno desenvolvimento” Seu papel é preservar a dignidade humana e torná-la
valor supremo da vida social. (CORREA, 2010. p. 29)
Para Vecchi (2009, p 149), os direitos humanos são marcados pela historicidade, se configurando como:
(...) direitos históricos, fruto de lutas e conquistas da humanidade na busca pelo reconhecimento e proteção da pessoa humana em todas as situações em que possam
estar presentes seja a opressão, seja a exclusão, o medo ou a discriminação, enfim,
todas as formas e maneiras de vilipêndio ao ser humano.
Piovesan (2010, p. 04) leciona que os direitos humanos são reivindicações morais e, nessa
qualidade, “nascem quando devem e podem nascer”. Destaca a autora a historicidade dos referidos direitos e sua concepção contemporânea, fruto do movimento no sentido de internacionalizar os direitos humanos, surgido no pós guerra como resposta às atrocidades do nazismo,
que foi introduzida pela Declaração Universal de 1948 e confirmada pela Declaração de Direitos
Humanos de Viena de 1993.
No contexto de pós-guerra houve um esforço para reconstruir o valor da pessoa humana
enquanto fonte do direito e tornar os direitos humanos “como paradigma e referencial ético a
orientar a ordem internacional”. Tendo em vista ser questão de interesse internacional, fortalece-se a ideia de que a proteção dos direitos humanos não deveria ficar restringida ao domínio do
Estado. (PIOVESAN, 2010. p. 04)
Pode-se diferenciar o termo direitos humanos de direitos fundamentais, tendo em vista
estarem ou não em uma ordem constitucional. Assim, diz-se que os direitos humanos são inalienáveis, tendo sua origem na natureza humana, não estando adstritos a uma ordem constitucional.
102
A PROTEÇÃO AO TRABALHO ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL E O PODER POTESTATIVO DE DISPENSA DO EMPREGADOR
E, por sua vez, os direitos fundamentais seriam aqueles direitos humanos positivados, em consonância comum a determinada ordem constitucional. (VECCHI, 2009. p. 151)
Portanto, direitos humanos são aqueles direitos históricos, aquelas reivindicações morais,
que buscam a proteção da pessoa humana e a promoção de sua dignidade, fruto das lutas da
humanidade em busca de proteção da pessoa humana pelo simples fato de sua condição de
pessoa humana.
Concluindo suas ilações sobre a questão conceitual dos direitos humanos, afirma Vecchi
(2009, p. 156): “(...) os direitos humanos são históricos, são exigências éticas, estão abertos à historicidade e são pré-positivos, embora busquem positivação nos ordenamentos jurídicos, bem
como que são condição de legitimidade dos ordenamentos estatais (...)”.
A concepção contemporânea dos direitos humanos é marcada pela universalidade e indivisibilidade desses direitos. Os direitos humanos seriam universais, pois a condição de pessoa
humana é o único requisito para ser titular desses direitos e todas as pessoas possuem dignidade inerente, são dotadas de valor intrínseco. Seriam, ainda, indivisíveis, tendo em vista que são
interdependentes. Assim, quando um dos direitos econômicos, sociais e culturais é violado, os
direitos civis e políticos também o são e vice-versa.
No entanto, Aranha (2010, p. 14) questiona até que ponto é possível afirmar que os direitos humanos são universais sem implicar imposição unilateral da sociedade ocidental. O Direito,
ao longo da história, esteve ao lado do mais forte. Assim, o direito seria um instrumento para
disfarçar a relação entre o mais forte e o mais fraco, não sendo seu fundamento, portanto, a dignidade, mas sim a dominação.
Dessa forma, os direitos humanos buscam subverter a lógica acima descrita, para superar
os mecanismos de dominação. Busca-se defender de forma ostensiva os mais fracos. Enquanto a
dominação é fundamento do Direito, a dignidade é fundamento dos direitos humanos.
A afirmação dos direitos humanos fundamentais foi reforçada no plano internacional
com a aprovação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948. Seu artigo XXIII é
de especial relevância ao tema ora em estudo, tendo em vista estabelecer que: “todo homem tem
direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à
proteção contra o desemprego (...)”.(SUSSEKIND, 2010. p. 59-60)
Os direitos fundamentais se encontram em constante processo de transformação. A teoria
dimensional – de no mínimo três dimensões, até cinco dimensões - dos direitos humanos fundamentais aponta para sua cumulatividade e complementaridade, mas também para sua unidade
e indivisibilidade.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, consagrou a íntima vinculação entre Constituição, Estado de Direito e direitos fundamentais ao estabelecer, em seu artigo
16, que uma sociedade em que a garantia dos direitos não fosse assegurada e a separação dos
poderes não fosse determinada, seria uma sociedade sem Constituição. Assim, “os direitos fundamentais integram, portanto, ao lado da definição da forma de Estado, do sistema de governo
103
Artigo 7
e da organização do poder, a essência do Estado constitucional”. (SARLET, 2007. p. 70)
A questão dos direitos humanos no constitucionalismo do Brasil foi tratada pela primeira
vez com a devida relevância na Constituição de 1988, que trouxe algumas inovações quanto ao
tema.
Uma das inovações trazidas pela Constituição de 1988 foi a posição dos direitos fundamentais em seu texto, que estão expostos logo após o preâmbulo e os princípios fundamentais, o
que é mais lógico, tendo em vista que os direitos fundamentais se perfazem em parâmetro hermenêutico e são os valores superiores da ordem constitucional e jurídica. (SARLET, 2007. p. 79)
Outra inovação é a terminologia utilizada, substituindo o termo “direitos e garantias individuais” por “direitos e garantias fundamentais”, e, ainda, a reserva de capítulo próprio para
tratar desses direitos.
Sarlet (2007, p. 79) aduz que, possivelmente, a maior inovação é a disposição, no artigo 5º,
§ 1º da Constituição, de que os direitos e garantias fundamentais possuem aplicabilidade imediata, deixando de ser normas meramente programáticas. Além disso, a inclusão desses direitos
no rol de cláusulas pétreas, digna de nota.
Na divisão clássica dos direitos fundamentais, portanto, os direitos defesa, na acepção de
Robert Alexy, requerem uma abstenção do Estado frente à liberdade dos indivíduos, enquanto
que os direitos prestacionais, assim denominados os direitos sociais, requerem a prática de atos
concretos por parte do Poder Público.
Entretanto, Correia vislumbra um problema de eficácia das normas no que diz respeito à
essa tradicional divisão, enfatizando que:
A discussão acerca da efetividade dos direitos fundamentais sociais suscita duas ordens
de questões. A primeira se circunscreve ao vácuo produzido nesta seara em razão de omissões legislativas e à dificuldade de combatê-la por meio dos instrumentos jurídicos disponíveis
(mandado de injunção, ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão e arguição de
descumprimento de preceito fundamental). A segunda se refere à problemática encontrada na
imposição judicial, ao administrador público, de obrigações tendentes a efetivar direitos fundamentais sociais.(CORREIA, 2013. P. 04)
Assim, a concretização dos direitos ainda denominados tradicionalmente como prestacionais, além dos limites jurídicos impostos pelo princípio da separação dos poderes e pela
discricionariedade administrativa, envolve problemas de natureza econômica que não se fazem
presentes de maneira tão acentuada nos direitos de defesa.
Wandelli ensina, porém, que nem toda necessidade fundamental se reveste de natureza
de direito fundamental, ou seja, nem só de necessidades básicas vivem os direitos fundamentais,
em resumo.
Conclui-se, por tais razões, que a) nem todas as necessidades específicas podem ser imediatamente transladadas para o discurso jurídico na forma de direitos subjetivos, ao passo que
104
A PROTEÇÃO AO TRABALHO ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL E O PODER POTESTATIVO DE DISPENSA DO EMPREGADOR
b) nem todos os direitos fundamentais são expressões diretas de necessidades. Mas c) a normatividade jurídica se submete a um marco geral de satisfação ótima das necessidades. Bem assim,
como consequência da assertiva anterior, d) uma necessidade que corresponda aos critérios já
definidos atua como fundamento, prima facie, de sua exigibilidade jurídica, transferindo a carga
argumentativa para a sua não exigibilidade jurídica. A par disso, e) embora nem todos os direitos fundamentais se reportem diretamente a necessidades, quando este for o caso, como se dá
no direito do trabalho, a normatividade das necessidades preenche materialmente os direitos
fundamentais que lhe dizem respeito. (WANDELLI, 2012. p. 136-137)
Assim, Wandelli (2012, p. 235) defende que não se deve reduzir o papel fundamentador
das necessidades nos chamados direitos sociais. Aduz que os direitos econômicos, sociais, culturais são alvo de restrições promovidas por formulações teóricas, em contrapartida, cada vez
mais contestadas, que lhes negam a aptidão para a produção de efeitos jurídicos mediante incidência direta sobre as situações concretas,
O autor ainda destaca que o direito ao trabalho se constitui como um direito fundamental
como um todo, pois reflete um conjunto de posições jurídicas definitivas e adscriptas a um dispositivo de direito fundamental e relacionadas entre si.
Isso ocorre com o direito ao trabalho, que transcende uma noção de um feixe de conteúdos e posições jurídicas parcelas que justamente lhe conferem o elemento essencial para a sua
efetividade, ainda que, de acordo com o autor, não possa lograr de um significado totalmente
abstrato.
Considerações
Não obstante o direito potestativo de dispensa seja uma cruel necessidade, em decorrência da dinâmica da economia, bem como da rotatividade – necessária, inclusive, para evitar
potencializar o número de desempregos, tal direito não pode ser exercido de modo absoluto,
quando o que está em jogo é um direito fundamental.
Critica-se o exercício pleno de desmedido do poder de dispensa, ou seja, sem que seja
necessária qualquer justificativa ou anuência da outra parte – empregado, acarretando maiores
desigualdades sociais e diminuindo o acesso ao trabalho digno.
Destaca-se que inexiste, atualmente, qualquer restrição legal à dispensa de empregados
que dispensaram anos da sua vida em prol do desenvolvimento do empregador e que, às vésperas de sua aposentadoria, pode ser dispensado sem qualquer justificativa.
Chama-se a atenção de como isso está arraigado na sociedade e é menosprezado pela cadeia jurídica, seja pela doutrina como também pelos tribunais, a que se denomina “banalidade
do mal”, já que a continuidade da relação empregatícia é uma questão social, que interessa a
toda população e estruturas da sociedade.
Quando o olhar concentra-se ao trabalho como um direito fundamental do trabalhador,
indubitavelmente, há a necessidade de se flexibilizar o instituto de dispensa indiscriminada por
105
Artigo 7
parte do empregador, sem que haja a necessidade, especificamente, de alterações legislativas,
pois se trata de conferir eficácia à conteúdo material dos direitos fundamentais.
Deve-se evitar restrições promovidas por formulações teóricas, que negam a aptidão para
a produção de efeitos jurídicos dos direitos sociais mediante incidência direta sobre as situações
concretas, como a limitação pontual em situações de abuso nas dispensas sem justa causa.
Referências
ARANHA, Guilherme Arruda. Direitos Humanos e Dignidade IN PIOVESAN, Flávia; IKAWA,
Daniela. Direitos Humanos: Fundamento, proteção e implementação, vol. 2. Curitiba: Juruá,
2010.
ARAÚJO, Eneida Melo Correia de. As Relações de Trabalho :uma perspectiva democrática. São
Paulo: LTr, 2003.
CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. 2. ed. Niterói: Impetus, 2008.
CORRÊA, Marcos José Gomes. Direitos Humanos: Concepção e Fundamentos. In PIOVESAN,
Flávia; IKAWA, Daniela. Direitos Humanos: Fundamento, proteção e implementação, vol2
Curitiba: Juruá, 2010.
CORREIA, Daniel Rosa. A concretização judicial de direitos fundamentais sociais e a proteção do
mínimo existencial. Disponível em: https://www.esmec.com.br/upload/arquivos/8-1267643746.
pdf. Acesso em: 02.jul.2013.
DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Inovações na Legislação Trabalhista: aplicação e análise
crítica. São Paulo: LTr, 2000.
GOMES, Dinaura Godinho Pimentel. Dignidade da Pessoa Humana, no Mundo do Trabalho, à
Luz da Constituição Federal de 1988 IN VILLATORE, Marco Antônio César; HASSON, Roland
Direito Constitucional do Trabalho Vinte Anos Depois: Constituição Federal de 1988. Curitiba:
Juruá, 2008.
MANUS, Pedro Paulo Teixeira. Despedida Arbitrária ou Sem Justa Causa. Aspectos do Direito
Material e Processual do Trabalho. São Paulo: Malheiros Editores: 1996.
MARTINS, Sergio Pinto. A Continuidade do Contrato de Trabalho. São Paulo: Atlas, 2000..
PIOVESAN, Flávia. Direito ao Trabalho e Proteção dos Direitos Sociais nos Planos Internacional
e Constitucional IN PIOVESAN, Flávia; CARVALHO, Luciana Paula Vaz de. Direitos Humanos
e Direito do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2010.
RESENDE, Renato de Sousa. A Centralidade do Direito ao Trabalho e a Proteção Jurídica ao
Emprego IN PIOVESAN, Flávia; CARVALHO, Luciana Paula Vaz de. Direitos Humanos e
Direito do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2010.
RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios do Direito do Trabalho. 3 ed. atual. – São Paulo: LTr,
2000.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Humanos Fundamentais. 8. ed. rev. atual.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
SILVA, Luiz de Pinto Pedreira da. Principiologia do Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1999.
SUGUIMATSU, Marlente T. Fuverski. Relação de Emprego e (des) proteção Contra a Despedida
Arbitrária ou sem Justa Causa: o art. 7º, I, da Constituição IN VILLATORE, Marco Antônio
César; HASSON, Roland. Direito Constitucional do Trabalho Vinte anos Depois: Constituição
Federal de 1988. Curitiba: Juruá, 2008.
106
A PROTEÇÃO AO TRABALHO ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL E O PODER POTESTATIVO DE DISPENSA DO EMPREGADOR
SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Constitucional do Trabalho,4 ed. ampl. e atual. Rio de Janeiro:
Renovar, 2010.
VECCHI, Ipojucan Demétrius. Contrato de Trabalho & Eficácia dos Direitos Humanos
Fundamentais de Primeira Geração. Curitiba: Juruá, 2009.
WANDELLI, Leonardo Vieira. O Direito Humano e Fundamental ao Trabalho Fundamentação
e Exigibilidade. São Paulo: LTr, 2012.
WANDELLI, Leonardo Vieira. Despedida Abusiva: O Direito (do trabalho) em busca de uma
nova racionalidade. São Paulo: LTr, 2004.
107
Artigo 8
A RESPONSABILIDADE CIVIL DO
TRANSPORTADOR AÉREO: UMA
BREVE ANÁLISE SOB O ASPECTO DO
CONFLITO DE NORMAS.
Luiz Gustavo Thadeo Braga1
Resumo
A uniformização das regras de responsabilidade civil no transporte aéreo doméstico de
passageiros sofreu significativa contribuição do Código de Defesa do Consumidor que
consagrou o princípio da restitutio in integrum (reparação integral dos danos sofridos). Tendo
como regra a responsabilidade civil objetiva, o CDC corrigiu a configuração das relações
jurídicas entre empresas aéreas e usuários, eliminando as limitações impostas pelos tratados
internacionais que privilegiam as companhias, tornando ainda mais evidentes os direitos da
parte vulnerável da relação de consumo. Em que pese os inúmeros questionamentos acerca do
aparente conflito entre a legislação internacional e a legislação pátria, não se trata de se discutir
a hierarquia de uma norma sobre a outra, mas sim, de se aplicar aquela mais recente e que
respeita os direitos fundamentais.
Palavra Chave.
Responsabilidade civil – transporte aéreo doméstico de passageiros – aparente conflito de
normas – supremacia do CDC – respeito aos direitos fundamentais.
Abstract
The standardization of liability rules in the domestic air passengers suffered significant
contribution of the Consumer Protection Code which enshrined the principle of restitutio
in integrum (full compensation for damages). Having as a rule the objective liability, the
CDC corrected the configuration of legal relations between airlines and users, eliminating
the limitations imposed by international treaties that favor companies, making it even more
obvious rights of the vulnerable part of the consumer relationship. Despite the numerous
questions about the apparent conflict between international law and the Brazilian legislation,
it is not to discuss the hierarchy of a standard over another, but rather to apply this latest and
respecting fundamental rights
Keywords
Liability - domestic air transportation of passengers - apparent conflict of standards supremacy of the CDC - respect for fundamental rights
1Introdução
Nunca antes a responsabilidade civil no transporte aéreo foi tema de tanta preocupação
da doutrina e também dos tribunais. A história da aviação comercial do país apresenta um primeiro período, entre os anos de 1960 e começo dos anos de 1970, chamado de período de “ComMestre em Direito pela Unicuritiba. Professor dos cursos de direito da Faculdade Dom Bosco e Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
1
108
A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR AÉREO: UMA
BREVE ANÁLISE SOB O ASPECTO DO CONFLITO DE NORMAS.
petição regulada”, caracterizado por uma maior intervenção do Estado; o segundo, a partir de
1990 denominado de período das “Políticas de flexibilização da aviação comercial” que atingiu
o seu ápice em 2005, com a edição da Lei 11.182, de 27 de setembro, a qual deu origem à Agência
Nacional de Aviação Civil.
Companhias tradicionais como Vasp, Transbrasil e Varig foram consumidas pela ineficácia da nova agência em gerir medidas isonômicas de concessão, contudo, indubitavelmente, a
liberação econômica, embora tenha proporcionado uma perda de qualidade dos serviços prestados, facilitou o acesso da população a esse modal de transporte em virtude da redução de tarifas.
O crescimento do setor veio acompanhado de expressivos problemas que culminaram
em 2006, com a chamada “crise aérea”, uma espécie de “apagão” gerado por um colapso da infraestrutura aeroportuária e de controle de trafego aéreo.
Outros problemas ainda são observados, complicando ainda mais a eficiência e a pontualidade dos serviços. Questões como o crescimento da taxa de atendimento nos balcões de
check-in, a falta de recursos humanos em número suficiente para atendimento da demanda e
capacitados para solucionar os problemas de forma ágil e cordial. Ainda, problemas de dimensionamento dos espaços ocupados pelas companhias que dificultam ou impedem a circulação
de passageiros e a formação de filas organizadas. Também, a falta de serviços de apoio e atendimento ao usuário e até mesmo, a inobservância de questões básicas como a prioridade de
embarque de pessoas idosas, gestantes e deficientes físicos.
O Brasil ratificou diversos acordos internacionais com o objetivo de aderir a regras específicas de responsabilidade civil. E, com o advento do Código de Defesa do Consumidor que
consagrou o principio da reparação integral dos danos e a responsabilidade objetiva, criou-se
um aparente conflito entre normas.
Na verdade, esse conflito é apenas aparente, pois, as normas internacionais e a legislação
pátria vivem em perfeita harmonia. Não se trata de supremacia entre as normas, mas sim, de
aplicação do CDC nas hipóteses em que o tratado ferir o principio da Dignidade da Pessoa Humana ou o da Reparação Integral. Ademais, o CDC pode ser aplicado subsidiariamente até nos
casos de transporte aéreo internacional, quando a legislação internacional for vaga ou omissa.
2 A Responsabilidade civil do transportador aéreo.
A responsabilidade civil do transportador aéreo consiste no dever de indenizar a pessoa
ou usuário do serviço que em decorrência de sua responsabilidade, venha a sofrer dano. A responsabilidade que interessa a esse trabalho é aquela inerente ao transportador aéreo de passageiros doméstico. Entende-se como transporte aéreo doméstico, nos termos do Artigo 215, do
Código Brasileiro de Aeronáutico, aquele “em que os pontos de partida, intermediários e de destino estejam situados em território nacional”2. O transporte aéreo internacional, ou seja, aquele
cujos pontos de partida e de chegada situam-se em países diversos, segue regras específicas,
Parágrafo único – O transporte não perderá esse caráter se, por motivo de força maior, a aeronave fizer escala em território
estrangeiro, estando, porém, em território brasileiro os seus pontos de partida e destino.
2
109
Artigo 8
notadamente a Convenção de Montreal, de 29 de maio de 1999, debatida durante a Conferência
Internacional de Direito Aeronáutico, patrocinada pela Organização Internacional de Aviação
Civil (OACI). Essa Convenção atualiza as disposições da Convenção de Varsóvia, datada de
1929, bem como, se sobrepõe a todas as regras de transporte aéreo internacional. Ou seja, inaplicáveis ao transporte aéreo internacional as regras do Código Brasileiro de Aeronáutica.
Em relação às convenções internacionais que disciplinam o transporte aéreo, cumpre esclarecer acerca do conflito delas em relação às leis nacionais, notadamente, o Código de Defesa
do Consumidor, uma vez que, o Código Brasileiro de Aeronáutica traz em si regras de responsabilidade civil a serem observadas durante a execução de contrato de transporte aéreo doméstico.
No entanto, não se revela suficiente para disciplinar de forma clara e segura, o surgimento do
dever de indenizar, do transportador e as hipóteses de isenção de responsabilidade. Também,
sempre foi criticada pela doutrina a limitação dos danos imposta pelas convenções internacionais e a contraposição com o princípio da reparação integral.
O transportador pode ser responsabilizado em diversas hipóteses, sendo as principais:
casos de danos por morte do passageiro, lesão, atraso ou cancelamento de voo, overbooking, perda, destruição ou avaria de bagagens e mercadorias transportadas. Além destas, também por
atos do comandante ou da tripulação e de funcionários em terra, ressalvadas as hipóteses das
chamadas excludentes de responsabilidade.
A responsabilidade civil pode ser entendida por meio de duas correntes clássicas. A primeira trata da responsabilidade baseada na culpa, também denominada de “teoria subjetiva”,
em que se perquire além da existência do dano, a culpa do autor do ato danoso, bem como, a
relação de causalidade entre o fato gerador do dano e o próprio dano. Por outro lado, a corrente
da responsabilidade objetiva ou “teoria do risco”, não cogita da existência de culpa, bastando o
nexo causal entre ato e dano.
A reparação dos prejuízos sofridos pelos usuários do transporte aéreo subordina-se ao
princípio da responsabilidade contratual, tendo como norte, o Código Brasileiro de Aeronáutica. Esse diploma legal, além de cuidar da responsabilidade do transportador aéreo por atos
ocorridos no interior de aeronave, durante as operações de embarque, voo ou desembarque,
também se ocupa da responsabilidade extracontratual (Artigos 268, 269 e 270), sempre que o
transportador causar prejuízo a terceiros em solo ou em caso de abalroamento em voo. Para
tanto, consideram-se hipóteses de desprendimento de peças ou substâncias de aeronaves que
atinjam terceiros na superfície.
A responsabilidade contratual estará presente sempre que houver inexecução da obrigação assumida pelo transportador durante o implemento do contrato de transporte, tanto por
danos sofridos pelo passageiro, quanto às bagagens por ele trazidas a bordo. Destaca-se nos contratos de transporte aéreo a “cláusula de incolumidade”, a qual assegura que a atividade desempenhada pelo transportador é de fim, de resultado e não simplesmente de meio. Essa cláusula
obriga ao transportador a tomar as cautelas necessárias para o sucesso do contrato, garantindo
o êxito da pretensão do contratante, mediante condições de segurança, desde os primeiros pro110
A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR AÉREO: UMA
BREVE ANÁLISE SOB O ASPECTO DO CONFLITO DE NORMAS.
cedimentos de embarque até a conclusão do desembarque e chegada do passageiro ao saguão
do aeroporto.
Para exemplificar cita-se a possibilidade de inadimplemento contratual provocado pelo
denominado overbooking. Muitos passageiros deixam de se apresentar nos balcões de check-in
das companhias (no show) no horário previsto, razão pela qual as empresas aéreas realizam reservas acima da capacidade da aeronave, de forma a gerar uma compensação entre o número
de passageiros que não se apresentaram e o dos que fizeram reserva para aquele determinado
voo3. O overbooking modernamente, é denominado de oversale, cuja expressão tem uma nova
compreensão de que a venda exagerada de passagens não é mais uma medida para viabilizar
economicamente determinadas linhas aéreas. Na verdade, a expressão overbooking não se aplica
ao sistema de venda de passagens no Brasil. Ocorre que as companhias nacionais não operam
com o sistema de reserva de passagens, processo comum na América do Norte ou Europa e que
retrata o verdadeiro sentido da expressão overbooking.
No Brasil, se tem apenas a venda de passagens e quando esta ocorre em excesso, além da
capacidade de assentos da aeronave, configura-se o chamado oversale.
Assim, pensando no sistema adotado em outros países, aquele que portar bilhete com
reserva confirmada e que for impedido de embarcar em razão do excesso de passageiros já embarcados (overbooking), terá direito a “ser acomodado pela empresa em outro voo, próprio ou
de congênere”. No Brasil, verificado o oversale, o passageiro terá o mesmo direito, respeitado o
prazo máximo de quatro horas após o horário previsto para a partida da aeronave para a qual
tinha embarque previsto. Ainda, na impossibilidade de acomodação imediata, o passageiro poderá optar pelo embarque em horário diverso além das quatro horas ou ser reembolsado do
valor pago. Havendo espera para embarque por tempo superior a quatro horas, obriga-se, o
transportador, a providenciar hospedagem, alimentação e transporte. A revalidação do bilhete
de embarque, igualmente, deverá ocorrer independentemente de ônus ao passageiro.
Assim, as empresas praticam o overbooking com a finalidade de evitar riscos relativos às
perdas causadas pela decolagem de uma aeronave com ociosidade de assentos. “Entretanto, esta
prática pode resultar em uma situação de risco, em que um passageiro, com reserva confirmada
e presente ao embarque no momento do vôo, tenha seu embarque negado devido à falta de assentos disponíveis na aeronave – o chamado denied boarding”.4
Enquanto o overbooking é entendido como uma prática benéfica para empresa, na medida
em que diminui seus riscos de prejuízos causados pelo não comparecimento de passageiros
com reserva confirmada, por outro lado, tal prática pode não ser igualmente benéfica e tolerável
pelos passageiros que tenham seu ingresso na aeronave negado. Quando isso acontece, diz-se
que o overbooking foi mal sucedido, o que está se tornando uma prática rotineira das companhias
aéreas brasileiras, cujo ápice foi constatado, exatamente, na pior época da batizada crise aérea,
PACHECO, José da Silva. Comentários ao Código Brasileiro de Aeronáutica. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2006,
p. 337.
4
FERRAZ, Renée Baptista; OLIVEIRA, Alessandro Vinícius Marques de. A estratégia de overbooking e sua aplicação no mercado de transporte aéreo brasileiro. Disponível em: <http://www.nectar.ita.br>. Acesso em: 13 mar. 2009, p. 06.
3
111
Artigo 8
muito longe de ser totalmente afastada. Na verdade, além de vantajoso para a companhia aérea,
ainda assim, pode ser considerado apenas pelo passageiro beneficiado que consegue embarcar.
A questão ética a se observar aqui está na escassez de informações quanto às possibilidades de se praticar o overbooking ou ainda, quanto às formas de indenização e providências, de
responsabilidade das companhias em relação aos passageiros não embarcados. A conduta, muitas vezes, evasiva ou despreocupada das companhias aéreas causa transtornos desnecessários,
aumentando ainda mais, o descrédito das empresas aéreas já, há muito, bastante acentuado.
Geralmente, o passageiro não atingido pelo overbooking é aquele que deixou para adquirir
o bilhete de embarque nos dias próximos ao voo e que, por consequência, despendeu maiores
quantias. Ou seja, aquele passageiro que se aproveitou das promoções tarifárias e adquiriu o
bilhete com relativa antecedência, provavelmente, será o atingido pelo denied boarding. A imagem negativa que prevalece é a de desorganização da companhia mesmo que o overbooking seja
uma estratégia competitiva largamente utilizada no mundo da aviação comercial, mas que, no
Brasil, recebe das empresas pouca ou nenhuma atenção, notadamente, em relação ao trato com
o passageiro.
Usualmente, as companhias, após o encerramento das operações de embarque, questionam aos passageiros já embarcados se há, entre eles, alguém que queira ceder seu assento a um
passageiro que teve o embarque negado, ou seja, esse embarque dependerá da voluntariedade
de outros passageiros. Ao passageiro não embarcado deverá ser disponibilizado outro voo no
prazo máximo de quatro horas ou, na impossibilidade de se verificar essa opção, o reembolso
do valor despendido. Outras facilidades, igualmente, devem ser oferecidas como comunicação,
hospedagem, transporte e alimentação. Isto tudo se torna impactante para a estratégia das companhias especialmente, se os riscos foram mal calculados.
O Artigo 37, § 6º, da Constituição Federal assegura que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado, prestadoras de serviços públicos, respondam por danos que seus
agentes, nessa qualidade, causem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável no caso de dolo ou culpa. Assim, a Carta Magna acolhe a responsabilidade civil objetiva
baseada no risco administrativo. Um típico exemplo de responsabilização do Estado ocorre nos
casos de atrasos e cancelamento de voos, sendo que a partir desse modelo pode-se demonstrar
a hipótese mais comum de responsabilidade extracontratual.
Conforme o Código Brasileiro de Aeronáutica, os atrasos inferiores a 04 (quatro) horas estão dentro da tolerância técnica, tendo em vista que a prestação de serviços aéreos está condicionada a fatores incontroláveis, como condições climáticas adversas, congestionamento de tráfego
aéreo e manutenção não programada de aeronaves. A partir de 04 (quatro) horas, a empresa é
obrigada a oferecer alternativas aos passageiros com check-in efetuado tais como, alimentação,
hospedagem, traslado e até telefonemas. Também deve remarcar os voos para o mesmo destino
ou providenciar o embarque do passageiro em outra companhia aérea, além de reembolsar o
valor da passagem5. O mesmo ocorre na hipótese de cancelamento do voo.
5
Art. 229. O passageiro tem direito ao reembolso do valor já pago do bilhete se o transportador vier a cancelar a viagem.
rt. 230. Em caso de atraso da partida por mais de 4 (quatro) horas, o transportador providenciará o embarque do passageiro,
A
112
A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR AÉREO: UMA
BREVE ANÁLISE SOB O ASPECTO DO CONFLITO DE NORMAS.
É preciso destacar que nem sempre o transportador é considerado responsável pelo atraso
ou pelo cancelamento do voo. Como é cediça, a navegação aérea depende fundamentalmente
de condições que não correspondem exclusivamente à atividade desenvolvida pela empresa
aérea, a exemplo das condições meteorológicas. É por esta razão que se considera, no caso em
discussão, que a responsabilidade pode ser entendida como extracontratual ensejando o direito
de regresso do transportador.
Nesse aspecto, as condições operacionais dos aeroportos, em que se destacam as manobras de pousos e decolagens, além das condições dos equipamentos de auxílio à navegação e à
disponibilidade dos operadores de voo, são fundamentais para a garantia dos serviços prestados pelas companhias.
A paralisação de controladores de voo e defeitos técnicos ocorridos com equipamentos
pode tornar o sistema da navegação aérea inoperante. Quando os atrasos ou cancelamentos
decorrerem exclusivamente da inoperância do sistema de controle de tráfego aéreo, há que se
admitir a responsabilização da União.
Os controladores de tráfego aéreo, militares ou civis, assim como, os pilotos militares são
“prepostos” do Estado, ou seja, da União Federal6. Assim, considera-se que a obrigação de reparar os danos seja, quiçá, solidária, no entanto, o usuário do transporte poderá optar em obter a
indenização diretamente da União, inclusive, de ordem moral. Assim, desde que as companhias
aéreas arquem com todos os prejuízos decorrentes da atuação do controle de tráfego aéreo, lhes
assiste o direito de propor ação regressiva7, visando à atenuação dos danos sofridos, com fundamento no Artigo 37, § 6º, da Constituição Federal.
Portanto, a responsabilidade extracontratual está concentrada especificamente na total
isenção da companhia aérea quanto às causas do atraso superior a 4 horas ou do cancelamento
do voo, em que não tenha havido participação direta do transportador. A empresa se vinculará
objetivamente à obrigação de reparar o dano causado ao passageiro na medida em que deixar
de tomar as providências que amenizem os efeitos negativos proporcionados em razão da longa
espera pelo momento do embarque, prestando a assistência ao passageiro. Conquanto tenha
agido com solicitude e diligência, os danos a serem reparados serão exigidos diretamente do
poder concedente.
Comprovada a culpa do ente público, consoante os Artigos 186 e 934 do Código Civil, as
companhias aéreas igualmente encontram amparo para a pretensão regressiva.
em vôo que ofereça serviço equivalente para o mesmo destino, se houver, ou restituirá, de imediato, se o passageiro o preferir,
o valor do bilhete de passagem.
A
rt. 231. Quando o transporte sofrer interrupção ou atraso em aeroporto de escala por período superior a 4 (quatro) horas,
qualquer que seja o motivo, o passageiro poderá optar pelo endosso do bilhete de passagem ou pela imediata devolução do
preço.
P
arágrafo único. Todas as despesas decorrentes da interrupção ou atraso da viagem, inclusive transporte de qualquer espécie,
alimentação e hospedagem, correrão por conta do transportador contratual, sem prejuízo da responsabilidade civil.
6
BRAGA, Luiz Gustavo Thadeo. Caos aéreo: responsabilidade do Estado em face dos atrasos e cancelamentos de voos. Consulex, Revista Jurídica, ano 11, nº. 249, maio, p. 26-31, 2007.
7
Súmula 187, do STF: “A responsabilidade contratual do transportador, pelo acidente com passageiro, não é elidida por culpa
de terceiro, contra o qual tem ação regressiva”.
113
Artigo 8
Nesse contexto, são importantes as palavras de Rui Stoco8:
[...] Extrai-se, daí, a regra de que “todo prejuízo causado pela empresa administrativa, prejuízo que, em última analise, é um encargo público, porque esta empresa
não é mais o negócio de um soberano todo poderoso, mas deve, quando fere a
igualdade dos indivíduos perante os encargos públicos ser reparado. A responsabilidade do Poder Público visa, portanto, ao restabelecimento do equilíbrio econômico patrimonial exigido pela ideia de igualdade dos cidadãos em relação aos ônus
públicos, ideia consagrada na consciência jurídica moderna” (RF 104/229). Mas,
opondo-se à teoria do risco integral, a teoria do risco administrativo estabelece o
princípio da responsabilidade objetiva mitigada ou temperada, ou seja, que permite
discussão em torno de causas outras que excluam a responsabilidade objetiva do
Estado, nas hipóteses de inexistência do elemento causal ou nexo de causalidade.
Assim, essa responsabilidade objetiva do Estado pode ser reduzida ou excluída
conforme haja culpa concorrente do particular, ou tenha sido este o responsável exclusivo pelo evento e, ainda, nas hipóteses de caso fortuito ou força maior, em que
também ocorre o rompimento do liame causal”. [...]. Portanto, o principio da responsabilidade objetiva, escorada na teoria do risco administrativo mitigado (adotado em nosso ordenamento jurídico), não se reveste de caráter absoluto, ou seja, não
é sempre e em todo e qualquer caso que se impõe ao Estado indenizar, pelo só fato
do dano sofrido pelo particular, por ação ou omissão de seus prepostos.
Para incidência das regras do Código de Defesa do Consumidor exige-se que no caso
concreto haja caracterizada uma legítima relação de consumo. Assim, é imprescindível a verificação de três elementos básicos: o consumidor, o fornecedor e o produto ou serviço. Para efeitos
do serviço de transporte aéreo de passageiros, entende-se como consumidor o usuário desse
serviço, conquanto, perfeitamente adequado ao conceito contido no caput do Artigo 2º, da Lei
8.078/90, notadamente em razão da impossibilidade de se descaracterizar o passageiro como
“destinatário final”.
Por conseguinte, para que a empresa aérea seja entendida como prestadora de serviço, há
que se ter, preliminarmente, um contrato oneroso de transporte, porquanto, a pessoa física que
é transportada gratuitamente não pode invocar o Código de Defesa do Consumidor para reclamar por eventuais vícios da qualidade por inadequação do serviço (Artigos 19 e 20) ou da qualidade por insegurança ou acidente (Artigo 14). Isto porque é essencial da relação de consumo a
remuneração pelo serviço prestado. Indubitavelmente, o transportador aéreo presta serviço e se
enquadra perfeitamente no conceito do Artigo 3º, do CDC.
O Código de Defesa do Consumidor, a Convenção de Montreal9 e o Código Brasileiro de
8
STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 972.
A Convenção de Varsóvia, de 12 de outubro de 1929, foi recepcionada pelo ordenamento jurídico pátrio pelo Decreto nº.
20.704, de 24 de novembro de 1931. Foi emendada pelo Protocolo de Haia, de 28 de setembro de 1955 e, em 28 de maio de 1999,
foi substituída pela Convenção de Montreal para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional.
9
114
A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR AÉREO: UMA
BREVE ANÁLISE SOB O ASPECTO DO CONFLITO DE NORMAS.
Aeronáutica ingressam no campo do conflito apenas quando a matéria versa sobre responsabilidade civil do transportador.
O primeiro aspecto em que discordam as legislações é no tocante à limitação da indenização. Em que pese, a Constituição Federal expressamente recepciona os tratados internacionais,
o mesmo aconteceu com a Convenção de Varsóvia e todas as que sucederem esse pacto internacional do qual o Brasil participa. Todos eles limitam o valor das indenizações, o que confronta as
normas constitucionais, notadamente, o princípio da dignidade da pessoa humana. Essa limitação é fruto do entendimento da época de que o transportador não poderia suportar o pagamento
de indenizações na hipótese de morte de todos os passageiros, o que lhe causaria a ruína dos
negócios. Outro entendimento que vigorava na época da Convenção de Varsóvia, absolutamente insustentável nos dias atuais, era o de que o usuário do transporte aéreo gozava de privilégios
econômicos e, portanto, poderia arcar com parte dos prejuízos. Ademais, a Convenção de Varsóvia, que foi substituída pela Convenção de Montreal, não se sobrepõe aos preceitos constitucionais, mormente aqueles inseridos no título referente aos Direitos e Garantias Fundamentais.
No transporte internacional de pessoas, a responsabilidade civil do transportador
é limitada à importância de duzentos e cinqüenta mil francos, por passageiro (art.
22, alínea 1). Em se cuidando de transporte internacional de mercadorias, ou de
bagagem registrada, a responsabilidade do transportador ficará limitada à quantia de duzentos e cinquenta francos por quilograma, “salvo declaração especial de
“interesse na entrega”, feita pelo expedidor no momento de confiar os volumes
ao transportador, e mediante o pagamento de uma taxa suplementar eventual”
(art. 22, aliena 2). No que concerne aos objetos que o passageiro conservar sob sua
guarda, a Convenção de Varsóvia estabelece que a responsabilidade do transportador limita-se a cinco mil francos por passageiro (art. 22, aliena 3). A todos valores
acima mencionados poderão ser acrescidas as despesas do autor e outras custas
do processo (art. 22, alínea 4). A “Convenção de Varsóvia” adota como unidade
monetária para indenização o denominado “franco poincaré” (art. 22, alínea 5) que
tem o valor de sessenta e cinco miligramas e meia de ouro puro (barra ou lingote
de ouro com teor de ouro mínimo de 995 partes em 1.000 partes de metal total). As
somas estabelecidas a título de indenização, por sua vez, deverão ser convertidas,
em números redondos, na moeda nacional de cada país. A conversão destas somas
em moedas nacionais que não a moeda-ouro, por sua vez, será efetuada, em caso
de ação judicial, segundo o valor-ouro destas moedas na data do julgamento.10
A legislação de proteção aos direitos do consumidor não estabeleceu um limite mínimo
ou máximo para o pagamento das indenizações. Pelo contrário, invoca em seu Artigo 6º, inciso
GRASSI, Roberto Neto. Crise no setor de transporte aéreo e a responsabilidade por acidente de consumo. In: XVI Congresso
Nacional do CONPEDI. Anais Eletrônicos... Belo Horizonte, 2007. Disponível em: < http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/bh/roberto_grassi_neto.pdf >. Acesso em: 10 dez. 2008
10
115
Artigo 8
VI, o chamado “princípio da reparação integral”11, de forma que a reparação do dano seja a mais
ampla e efetiva possível. Dessa forma, o CDC afasta qualquer possibilidade de limitação da indenização a ser paga pela vítima de acidente de consumo.
O próprio Código de Defesa do Consumidor consagra que tratados e convenções internacionais, dos quais o Brasil seja signatário não serão excluídos. É preciso dizer, no entanto, que
tais pactos não anulam as disposições do CDC, reduzindo-as ou as ampliando. E, o mesmo se
diga em relação à Constituição Federal, na medida em que, também os tratados internacionais
firmados pelo país, nunca inviabilizem as garantias constitucionais. A Constituição Federal, inclusive, sustenta o nascimento do CDC, elevando-o ao nível de estatuto de proteção da ordem
econômica. Mas, a jurisprudência brasileira já assentou posicionamento no sentido de que em
caso de danos sofridos por usuários do transporte aéreo prevaleçam as regras do Código de
Defesa do Consumidor.
Segundo André Uchôa Cavalcanti:
A proteção ao consumidor, por seu turno, também é mandamento constitucional
dirigido ao Estado, incluso entre os direitos e garantias fundamentais (art. 5º, inciso XXXII) e nos princípios gestores da ordem econômica, tendentes a assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.
A responsabilidade regrada pelo CDC é baseada na teoria do risco da atividade do transportador ou risco do empreendimento.
Para Sergio Cavalieri Filho12:
[...] todo aquele que se disponha a exercer alguma atividade no mercado de consumo tem o dever de responder pelos eventuais vícios ou defeitos dos bens e serviços
fornecidos, independentemente de culpa. Esse dever é imanente ao dever de obediência às normas técnicas e de segurança, bem como aos critérios de lealdade, quer
perante os bens e serviços ofertados, quer perante os destinatários dessas ofertas. A
responsabilidade decorre do simples fato de dispor-se alguém a realizar atividade
de produzir, estocar, distribuir e comercializar produtos ou exercer determinados
serviços. O fornecedor passa a ser o garante dos produtos e serviços que oferece no
mercado, respondendo pela qualidade e segurança dos mesmos.
Os argumentos da corrente dominante propõem que o microssistema do CDC, pelo critério hierárquico, possui status constitucional (Artigo 5º, XXXII) prevalecendo sobre tratados
internacionais, os quais recebem status de lei ordinária.
Em se cuidando de relação de consumo, independentemente do que conste dos tratados internacionais, deve-se, pois, verificar, no diálogo das fontes, qual a norma mais favorável
11
12
Artigo 5º, V e X , da Constituição Federal.
CAVALIERI, Sérgio Filho Programa de responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo: Atlas,
116
2007, p. 162-163.
A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR AÉREO: UMA
BREVE ANÁLISE SOB O ASPECTO DO CONFLITO DE NORMAS.
ao consumidor, em cumprimento ao que consta na própria Constituição de 1988, que prevê a
proteção ao consumidor como princípio inscrito dentre os direitos e garantias individuais, bem
como princípio geral da atividade econômica. Haverá, em tais situações, responsabilidade civil
objetiva e ilimitada, por parte do transportador, desde que feita a prova idônea do nexo causal
e do prejuízo suportado. 13
Ademais, o Código de Defesa do Consumidor subordina a atuação das prestadoras de
serviço público (Artigo 22 e parágrafo único)14, tais como as companhias aéreas. A jurisprudência do STF já confirmou que, ao se tratar de transporte aéreo internacional e apenas nessa
hipótese, ainda se reconhece a aplicação da Convenção de Varsóvia, pois, do contrário, estar-se-ia negando-lhe vigência e desrespeitando um acordo do qual o Brasil é signatário e, portanto,
deve-lhe respeito. O Supremo Tribunal Federal decidiu no julgamento do Recurso Extraordinário nº. 297901 em que foi relatora a Ministra Ellen Gracie.
PRAZO PRESCRICIONAL. CONVENÇÃO DE VARSÓVIA E CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. 1. O art. 5º, § 2º, da Constituição Federal se refere a tratados internacionais relativos a direitos e garantias fundamentais, matéria não objeto da Convenção de Varsóvia, que trata da limitação da responsabilidade civil do
transportador aéreo internacional (RE 214.349, rel. Min. Moreira Alves, DJ 11.6.99).
2. Embora válida a norma do Código de Defesa do Consumidor quanto aos consumidores em geral, no caso específico de contrato de transporte internacional aéreo,
com base no art. 178 da Constituição Federal de 1988, prevalece a Convenção de
Varsóvia, que determina prazo prescricional de dois anos. 3. Recurso provido.15
Ao se tratar da questão sob o ponto de vista da hierarquia das normas, igualmente não se
encontra forma de defender a preponderância da Convenção de Varsóvia. Seguindo-se à regra
a muito sustentada pela doutrina, os tratados internacionais anteriores prevalecem sobre as leis
internas posteriores divergentes. Essa é a corrente internacionalista que se determina, tão somente, pela hierarquia superior dos tratados que regulam matéria em caráter especial, enquanto
que a norma nacional conflitante possui geralmente caráter geral. Todavia, os internacionalistas
não levam em consideração as peculiaridades da convenção quando em conflito com a Lei 8.078,
notadamente, que “a indenização por acidente de transporte aéreo é limitada, para atenuar os
efeitos da responsabilidade objetiva[...]”.16
Ocorre que a Convenção de Varsóvia responsabiliza o transportador “pelo dano ocasionado por morte, ferimento ou qualquer outra lesão corpórea sofrida pelo viajante, desde que
o acidente, que causou o dano, haja ocorrido a bordo da aeronave, ou no curso de quaisquer
operações de embarque ou desembarque” (Artigo 17). Ao mesmo tempo, exime o transportador
GRASSI, ibid., 4813.
“Os órgãos Públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos. Parágrafo único.
Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a
cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código”.
15
Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 03 de maio de 2015.
16
PACHECO, ibid., p. 370.
13
14
117
Artigo 8
de qualquer responsabilização se provar que “tomou, e tomaram os seus prepostos, todas as
medidas necessárias para que se não produzisse o dano, ou que lhes não foi possível tomá-las”
(Artigo 20). Essa disposição, portanto, é incompatível com a responsabilidade civil objetiva tratada pelo Código de Defesa do Consumidor, conquanto, demais abrangente para as excludentes
aceitas pelo CDC.
Doravante, caberá ao Poder Judiciário Brasileiro a apreciação desse tema sob o enfoque da
recente adesão da União à Convenção de Montreal, em vigência no Brasil desde 27 de setembro
de 2006, por força do Decreto nº. 5.910. Essa Convenção já se encontrava em vigor desde 04 de
novembro de 2003, porquanto, atingido o pré-requisito de depósito de instrumentos de ratificação de pelo menos 30 países (Estados Partes). Após a ratificação do último país, passou-se à
contagem do prazo de 60 (sessenta) dias para sua definitiva entrada em vigor.
A Convenção de Montreal possui prevalência sobre todos os demais tratados internacionais que orientam o transporte aéreo internacional17. Roberto Grassi Neto resume a Convenção
de Montreal da seguinte forma:
A Convenção de Montreal estabelece que a responsabilidade civil do transportador
por dano existirá apenas: a) em caso de morte ou de lesão corporal de passageiro,
se estas tiverem ocorrido a bordo da aeronave ou durante as operações de embarque ou desembarque (art. 17); b) em caso de destruição, perda ou avaria da bagagem despachada, se o evento causador se deu a bordo da aeronave ou enquanto a
bagagem despachada estiver sob a guarda do transportador (art. 17); c) em caso de
destruição, perda ou avaria da mercadoria, desde que seu evento causador ocorra
durante o transporte aéreo (art. 18); d) em havendo atraso no transporte aéreo de
passageiro, bagagem ou mercadorias (art. 19). Em restando provado, porém, que o
fato decorreu de negligência ou outro ato doloso ou omissão da pessoa que reclama
a indenização, ou da pessoa de quem emanam os direitos da primeira, que causou
ou contribuiu para o dano, a transportadora será total ou parcialmente exonerada
da sua responsabilidade perante o requerente (art. 20).18
O autor ainda explica que pela nova Convenção, o transportador, em caso de morte ou
lesão corporal “não poderá eximir-se de indenizar o consumidor, ficando a este assegurado, pelo
menos, o recebimento de quantia equivalente a 100.000 Direitos Especiais de Saque por passageiro
(Art. 21)” 19. No que tange às causas excludentes de responsabilidade, a Convenção de Montreal
tornou-se mais clara e adequada à teoria da responsabilidade objetiva. O transportador aéreo assume o ônus de demonstrar que os danos não foram causados por negligência, dolo ou omissão
de seus agentes e ainda terá como comprovar que contribuíram para a ocorrência dos danos, atos
de terceiros, seja por negligência, dolo ou omissão.
a) da Convenção para a unificação de regras relativas ao transporte aéreo internacional, firmada em Varsóvia, em 12 de
outubro de 1929, denominada “Convenção de Varsóvia”; b) do Protocolo de Haia, de 28 de setembro de 1955, que modificou a
referida Convenção, cognominado “Protocolo de Haia”; c) da Convenção de Guadalajara, firmada em 18 de setembro de 1961;
d) do Protocolo de Guatemala, assinado em 8 de maio de 1971; e) dos Protocolos n. 1, 2, 3 e 4 de Montreal, firmados em 25 de
setembro de 1975.
18
GRASSI, ibid., p. 4805.
19
Ibid., p. 4806.
17
118
A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR AÉREO: UMA
BREVE ANÁLISE SOB O ASPECTO DO CONFLITO DE NORMAS.
Ainda resta esclarecer que a Convenção de Montreal adota como unidade monetária para
instruir as indenizações o chamado “Direito Especial de Saque” (DES) em substituição ao “Franco Poincaré”, antes estipulado pela Convenção de Varsóvia. O “Direito Especial de Saque”, como
unidade monetária, é definido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
O FMI, Instituição criada em 1944, pelo Acordo de Bretton Woods, desenvolveu, em
1969, o Direito Especial de Saque – DES - (em inglês: Special Drawing Rights - SDR),
moeda escritural utilizada como Reserva dos Estados, naquela Instituição, juntamente com o ouro e moedas de alguns países de economia forte e estável, constituindo as Reservas dos Estados junto ao FMI. Até então, os Estados lastreavam suas
moedas em ouro, contudo, nos primeiros anos da década de setenta, os Estados
começaram a substituir suas reservas em ouro por Direitos Especiais de Saque e
moedas fortes de outros países, abandonando o lastro-ouro, até então adotado.20
A Convenção de Montreal, ao contrário de Varsóvia, definitivamente adota a teoria do
risco do empreendimento, enquanto a segunda lastreava-se pela presunção de culpa. Porém,
para a Convenção de Montreal, a responsabilidade é objetiva até o limite de 100.000 DES. Essa
situação não perquire hipóteses de isenção de responsabilidade. Caberá à vítima a demonstração, apenas, de que o dano ocorreu a bordo da aeronave ou durante as operações de embarque
ou desembarque. Essa aferição caberá ao judiciário quando do julgamento de cada caso. Quando
o dano efetivo superar o patamar de 100.000 DES, emergirá a teoria da presunção de culpa do
transportador que lhe possibilitará a prova de que o evento danoso não ocorreu por negligência,
ação ou omissão de seus agentes a fim de eximir-se do dever de indenizar.
Já no que tange ao conflito entre as disposições do Código de Defesa do Consumidor e o
Código Brasileiro de Aeronáutica, Ali Taleb Fares, esclarece:
Já no que se refere ao conflito criado pelo Código de Defesa do Consumidor, este,
por ser lei nova, prevalece sobre o Código Brasileiro de Aeronáutica. Apesar de
alguns dizerem que a lei geral posterior (CDC) não revoga a lei especial anterior
(CBA), não procede o argumento, pois tal regra não é absoluta e não se aplica ao
caso em exame. Conforme ensina Antonio Herman Benjamin, “o Código de Defesa
do Consumidor pertence àquela categoria de leis denominadas ‘horizontais’, cujo
campo de aplicação invade, por assim dizer, todas as disciplinas jurídicas (...) São
normas que têm por função, não regrar uma determinada matéria, mas proteger
sujeitos particulares, mesmo que estejam eles igualmente abrigados sob outros regimes jurídicos” . É o Código de Defesa do Consumidor lei especial, no sentido de
atingir toda e qualquer relação de consumo; sempre que houver tais relações, aí
incidirá o Código. Assim, tratando-se de relações de consumo, o Código de Defesa
do Consumidor é lei própria, específica e exclusiva. 21
PEREIRA, Guttemberg Rodrigues. Conferência de Direito Aeronáutico. 18 a 28 de maio de 1999 – Montreal, Canadá - Convenção para unificação de certas regras relativas ao transporte aéreo internacional. Revista Brasileira de Direito Aeroespacial.
Disponível em: <http://www.sbda.org.br/artigos/Anterior/07.htm >. Acesso em: 19 mar. 2009.
21
FARES, Ali Taleb. Novo panorama da responsabilidade civil no transporte aéreo. Disponível em: <http://www.sbda.org.
20
119
Artigo 8
O CBA, a exemplo da Convenção de Varsóvia, também limita a responsabilidade do transportador aéreo22 e como já se ressaltou, tal limitação encontra resistências na jurisprudência brasileira. Em seu Artigo 248, o CBA estabelece que os limites não se aplicam quando o dano resultar de
dolo ou culpa grave do transportador ou de seus prepostos. Segundo José da Silva Pacheco “uma
ação ou omissão temerária e consciente da probabilidade da ocorrência do dano [...]”23.
Marco Fábio Morsello parte do pressuposto de que o Código de Defesa do Consumidor já
seria preponderante simplesmente pelos critérios cronológicos, da especialidade e da hierarquia24.
Porém, o autor ainda elenca outras razões para a antinomia entre ambos os estatutos
como a regra do Artigo 246, do Código Brasileiro de Aeronáutica, a qual impõe limitação aos danos, no caso de responsabilidade contratual do transportador, quanto às hipóteses dos Artigos
257, 260, 262 e 277, do CBA. Isso ocorre devido à grave afronta aos preceitos constitucionais (Art.
5°, XXXII e Art. 170, V) e Art. 6º, VI, do Código de Defesa do Consumidor.25
Morsello ainda ressalta a preponderância do CDC afirmando que o prazo prescricional
desse código, que é de cinco anos conforme Artigo 27, para a pretensão indenizatória, é mais
favorável ao consumidor em relação ao prazo de dois anos do Artigo 317, I a III do Código Brasileiro de Aeronáutica. 26
Entretanto, reitere-se que o conflito de normas somente se impõe na parte em que as legislações em questão tratam da responsabilidade civil. Também, desde a edição do CDC, muitos
de posicionaram pela impertinência da velha regra lex posterior generalis non derragat priori speciali, pois, como “lei própria, específica e exclusiva [...] nenhuma outra lei pode e ele (Código)
se sobrepor ou substituir”. [...]. Sendo o Código do Consumidor uma lei mais nova e da mesma
hierarquia das leis anteriores que pontualmente disciplinam a matéria, toda evidência há de
prevalecer naquilo que inovou, de acordo com as regras do Direito Intertemporal. 27
A transição entre a Convenção de Varsóvia e a de Montreal ainda está sendo assimilada
pela jurisprudência brasileira, entretanto, no que tange às excludentes de responsabilidade disciplinadas pelo sistema anterior, já recebiam críticas quanto à denominada “Teoria da Diligência”.
Ocorre que a Convenção de Varsóvia autorizava ao transportador, para isentar-se do dever de
indenizar, a comprovação de que havia tomado todas as medidas necessárias para evitar o dano
ou de que era impossível evitá-lo. Mas, como já se ressaltou anteriormente, ao se tratar de relação de consumo, onde vigora a Teoria do Risco do Empreendimento ou Teoria do Risco Proveito,
aquela excludente não encontra espaço.
br/artigos/Anterior/1731.htm >. Acesso em: 22 nov. 2008.
22
Artigo 246: “A responsabilidade do transportador, por danos ocorridos durante a execução do contrato de transporte, está
sujeita aos limites estabelecidos neste Título”.
A
rtigo 257: “A responsabilidade do transportador, em relação a cada passageiro e tripulante, limita-se, no caso de morte ou
lesão, ao valor correspondente, na data do pagamento, a 3.500 (três mil e quinhentas) Obrigações do Tesouro Nacional (OTN),
e, no caso de atraso do transporte, a 150 (cento e cinquenta) Obrigações do Tesouro Nacional (OTN)”.
§
1º - Poderá ser fixado limite maior mediante pacto acessório entre o transportador e o passageiro.
§
2º - Na indenização que for fixada em forma de renda, o capital para a sua constituição não poderá exceder o maior valor
previsto neste artigo.
23
PACHECO, ibid., p. 377.
24
MORSELLO, Marco Fábio. Responsabilidade civil no transporte aéreo. São Paulo: Atlas, 2006, p. 413.
25
Ibid., p. 414.
26
Ibid., p. 415.
27
CAVALCANTI, André Uchôa. Responsabilidade civil do transportador aéreo: tratados internacionais, leis especiais e Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 119.
120
A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR AÉREO: UMA
BREVE ANÁLISE SOB O ASPECTO DO CONFLITO DE NORMAS.
Aliás, o próprio Código Brasileiro de Aeronáutica já afastou essa disposição de Varsóvia
(Artigos 256, 261 e 264) criando, assim, mais uma crise de subsistência entre os dispositivos legais.
Marco Fábio Morsello, inclusive, propõe uma releitura da Teoria da Diligência afirmando
que as duas correntes que a interpretaram não mais se valem isoladas. Uma das correntes, escudada no critério objetivo, baseia-se na exigibilidade da conduta do transportador e em parâmetros de razoabilidade da atividade28. Ou seja, que todas as medidas necessárias para se evitar
o dano seriam todas aquelas razoáveis e que o acidente teria sido causado por algo superior às
possibilidades do transportador e de seus agentes.
A outra corrente, em consonância com a “Teoria subjetiva”, valora “o comportamento e
condições psicológicas do sujeito que se encontrava executando a prestação do transporte”. 29
Marco Fábio Morsello ressalta que além da prova da razoabilidade e da adoção de todas as medidas ou de não se tê-las adotado por serem impossíveis, o transportador há de provar, ainda, o
“fato externo, insuperável ou invencível [...]”, o que o autor chama de “força maior extrínseca”. 30
A culpa exclusiva da vítima, por outro lado, é acatada pelo próprio Código de Defesa do
Consumidor como excludente de responsabilidade (Artigo 14, § 3º, II). Igualmente o faz o Artigo
21, da Convenção de Varsóvia. Como alerta Sérgio Cavalieri Filho, o fato exclusivo da vítima
pode ser invocado pelo transportador sempre que o único agente determinante para o evento
danoso tenha sido o próprio passageiro. Mas, essa excludente afasta-se do campo da culpa para
se inserir especificamente na seara do nexo causal. 31
Conquanto trate-se, no caso concreto, de culpa concorrente do passageiro, José de Aguiar
Dias pontifica que “a responsabilidade é de quem interveio com culpa eficiente para o dano”.
O autor ainda esclarece que quando uma culpa exclui a de outrem, a intervenção de um agente
concorrente deve ser de tal forma decisiva que a culpa do outro passa a ser irrelevante. Mas
essa análise deve ficar a critério do magistrado ao apreciar o caso concreto. 32 É o caso de pessoa
que traz consigo para o interior da aeronave artefato explosivo que em pleno voo é detonado
causando-lhe a morte e sem maiores consequências para os demais passageiros.
Já o fato de terceiro somente exonera o transportador do dever de indenizar efetivamente
se configurar causa estranha ao contrato de transporte, eliminando totalmente a relação de causalidade entre o dano e a execução do contrato.33
Carlos Roberto Gonçalves afirma que o fato de terceiro equipara-se ao caso fortuito, porém, lembra que a jurisprudência rechaça essa excludente ao argumento de que a responsabilidade não é elidida por fato de terceiro porque contra esse o transportador possui ação regressiva
(Súmula 187, do Supremo Tribunal Federal).34 É o caso, por exemplo, de atrasos e cancelamentos
de voos em razão de ação dos controladores de tráfego aéreo.
MORSELLO, ibid., p. 287.
MORSELLO, ibid., p. 287.
30
Ibid., p. 287.
31
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 293.
32
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10. ed. v. I. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 946.
33
Ibid., p. 926.
34
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 747.
28
29
121
Artigo 8
Tal exoneração restaria admitida quando o fato de terceiro for considerado doloso e que
não guarde nenhuma relação com os riscos do empreendimento.35 Ocorre que o fato de terceiro
há de ser atribuído a alguém especificamente.
Se o dano não pode ser atribuído a alguém, nesse sentido de que se deve a ação humana, estranha aos sujeitos da relação vítima-responsável, não há fato de terceiro,
mas caso fortuito ou força maior. 36
Certamente, as maiores dúvidas pairam sobre a configuração do caso fortuito e da força
maior, notadamente, ao se tratar de transporte aéreo. Cumpre traçar um breve conceito de força
maior e caso fortuito. Opiniões abalizadas, como as de Sergio Cavalieri Filho, sustentam a inexistência de diferença entre ambos. Segundo o autor, o fortuito se caracterizaria pela imprevisibilidade enquanto a inevitabilidade seria a força maior. 37
Entretanto, em decorrência da alta tecnologia que envolve o sistema de tráfego aéreo na
atualidade e que equipa as aeronaves comerciais, a imprevisibilidade deixou de ser um fator
preponderante para a isenção de responsabilidade.
Já o caso fortuito, a fim de servir como fator excludente da responsabilidade, é dividido
pela doutrina em fortuito interno e externo. O interno está sempre relacionado à organização da
empresa como o estouro de um pneu durante o pouso, o choque com pássaros durante a decolagem que danificam estruturas ou motores da aeronave ou o mal súbito do comandante que lhe
causa a morte.
O fortuito externo, por sua vez, também é fato imprevisível e inevitável, porém, estranho
aos negócios da companhia, que com ela não guardam nenhuma relação. Há quem o compare
com a força maior, razão pela qual, a doutrina quase não faz distinções entre ambas as excludentes. Ocorre que, previsível ou não, a jurisprudência não acolhe sequer o fortuito externo, quanto
mais o interno. Segundo o Código de Defesa do Consumidor, basta haver um defeito do serviço
para obrigar ao transportador o pagamento da devida indenização. A justificativa está no fato
de que, embora extrínseco o evento danoso, a maioria deles, dado o avanço da ciência e da tecnologia, tornou-se previsível ou, ao menos, superável.
Em sua obra, Marco Fábio Morsello menciona jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº. 140.659-RJ, publicado em 11/02/99,
o caso fortuito foi classificado como uma “força ininteligente, em condições que não podiam
ser previstas pelas partes”. Já a força maior, tratar-se-ia de um fato de terceiro, criadora de um
obstáculo cuja boa vontade do devedor não é suficiente para vencê-la. O autor ainda menciona
outra decisão do mesmo Tribunal (Recurso Especial 120.647/SP, julgado em 16/02/2000), em que
3ª Turma considerou para caracterização do caso fortuito a necessidade de restarem plenamente
demonstradas a inevitabilidade e a não imprevisibilidade, porém, dentro de um critério de razoabilidade daquilo que seria exigível do transportador. 38
CAVALIERI FILHO, ibid., p. 295.
DIAS, ibid., p. 928.
37
Ibid., p. 291.
38
MORSELLO, ibid., p. 27.
35
36
122
A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR AÉREO: UMA
BREVE ANÁLISE SOB O ASPECTO DO CONFLITO DE NORMAS.
Há, no entanto, que se levar em consideração que mesmo previsíveis ou superáveis tais
ocorrências podem tornar-se irresistíveis. Relatos de turbulências com forças destrutivas raras,
porém, indetectáveis aos mais modernos instrumentos, servem como exemplo.
Ainda outro tema que merece atenção são as condições meteorológicas que repercutem
no campo da responsabilidade civil. É sabido que o fator meteorológico adverso não se apresenta como um fenômeno imprevisível. As condições climáticas que ensejem interrupção da execução do contrato de transporte, no entanto, devem ser consideradas em conjunto com outros
fatores como, por exemplo, as providências tomadas pelo transportador, as ordens emanadas
das autoridades aeronáuticas para a proteção do voo (princípio da proteção). Certas condições
climáticas podem se tornar irresistíveis, notadamente, quando a aeronave já estiver em voo.
Nessas hipóteses, é forçoso, por parte do comandante da aeronave, a tomada de decisão imediata que lhe obrigaria o desvio de rota ou inclusive, o pouso em aeródromo diverso do previsto
como destino. Nesses casos, a excludente de responsabilidade subsiste.
Ademais, os fenômenos meteorológicos são detectados com facilidade pelos equipamentos da aeronave e de solo, o que torna fácil a tomada de medidas preventivas para elidir a irresistibilidade. Apenas quando impossíveis tais medidas é que haverá preponderância da excludente. No caso extremo de cancelamento do voo cumprirá, ao transportador, a adoção das
providências de praxe como, hospedagem aos passageiros, traslado, alimentação, recolocação
em outro voo da companhia ou devolução dos valores pagos. Tais medidas elidem o dever de
indenizar.
Por fim, através da Resolução nº. 37, de 07 de agosto de 2008, a ANAC promove a atualização dos limites de indenização de que trata o Código Brasileiro de Aeronáutica. Ocorre que
entre a extinção da OTN em 1986, até a criação do Real em 1994, os valores das apólices de seguros eram atualizados por critérios definidos pelo Instituto de Resseguros do Brasil, atual IRB-BRASIL RESSEGUROS S.A. A última atualização foi realizada pelo Instituto em 1995, através
do comunicado DECAT-001/95.
Por recomendação do Ministério Público Federal, a ANAC aprovou a Resolução 37/08,
a qual, no Artigo 01º, estabelece o valor unitário da OTN em R$ 11,70 (onze reais e setenta centavos), adotando o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) como critério de
atualização monetária, desde julho de 2008.
4 Considerações finais.
O Código de Defesa do Consumidor é consideravelmente mais favorável ao usuário do
transporte aéreo porque consagra a responsabilidade civil objetiva e mesmo que o caso, sob
apreciação do Poder Judiciário brasileiro envolva um transportador aéreo internacional, o julgador poderá decidir em conformidade com o ornamento jurídico pátrio. Isto porque o CDC não
limita a indenização assim como fazem os tratados.
O concessionário de serviço público, assim como as companhias aéreas, responde por
suas ações perante terceiros de acordo com os mesmos critérios e princípios que regem a res123
Artigo 8
ponsabilidade do Estado, nos moldes do Artigo 37, § 6º, da Constituição Federal,39 portanto, a
responsabilidade é objetiva.
As normas do consumidor foram trazidas pela Constituição Federal de 1988, ao status de
Direito Fundamental, nos termos do artigo 5º, inciso XXXII.
Em relação ao contrato de adesão, sequer há um documento formal com as intenções do
contratante/passageiro. Via de regra, as cláusulas estão compreendidas no bilhete de embarque,
emitido pela empresa, caracterizando a aceitação tácita às condições e não existindo, ao passageiro, qualquer hipótese de discussão da forma como o contrato será executado. Esse é mais um
dos motivos para que o usuário, entendido como parte hipossuficiente da relação, tenha em seu
favor a Lei 8078/90.
Por outro lado, está igualmente implícita no contrato de transporte aéreo de passageiros
a cláusula de segurança ou incolumidade, porquanto, ela é inerente ao contrato. Aliás, como
ensina José de Aguiar Dias, “quem utiliza um meio de transporte regular celebra com o transportador uma convenção cujo elemento essencial é a incolumidade, isto é, a obrigação, para o
transportador, de levá-lo são e salvo ao lugar de destino”.40
Todas as empresas concessionárias de serviços públicos de transporte aéreo de passageiros obrigam-se a prestar serviço adequado e satisfazer às condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade e cortesia, conforme definido em atos
normativos da ANAC e constantes na legislação geral em vigor.
Não se pode também negar que o serviço de transporte aéreo no Brasil é determinado
por fatores de concentração geográfica, influenciado por indicadores sociais. A universalização
do serviço foi sacrificada por uma desproporcional cobertura de infraestrutura ao longo do território nacional; portanto, a complexidade do setor aéreo se ressente de um acompanhamento
constante e de um planejamento em níveis estratégicos e operacionais. O crescimento da demanda saturou a infraestrutura e muitos aeroportos já operam acima da sua capacidade. Por isso,
importa também reconhecer que as companhias áreas exercem uma atividade e se beneficiam
dela, devendo responder pelo ônus da má execução dos serviços.
Assim, a par da teoria do risco e de um alcance limitado das convenções internacionais, é
que não há mais dúvida quanto à incidência das regras que determinam a responsabilidade civil
objetiva do transportador aéreo.
Referências
BRAGA, Luiz Gustavo Thadeo. Caos aéreo: responsabilidade do Estado em face dos atrasos e
cancelamentos de voos. Consulex, Revista Jurídica, ano 11, nº. 249, maio, p. 26-31, 2007.
BRASIL. Resolução nº. 037 de 07 de agosto de 2008. Dispõe sobre a atualização dos limites de
indenização do que trata o Titulo VIII do Código Brasileiro de Aeronáutica – CBAer. Disponível
A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, os seguinte:
§
6º - As pessoas jurídicas de direito público e privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus
agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou
culpa.
40
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10. ed. v. I. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 185.
39
124
A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR AÉREO: UMA
BREVE ANÁLISE SOB O ASPECTO DO CONFLITO DE NORMAS.
em: <http://www.anac.gov.br/biblioteca/resolucao.asp> Acesso em: 03 maio 2015.
______. Lei nº. 11.182, de 27 set. 2005. Cria a Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC, e dá
outras providências.
______. Lei nº. 8.078 de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá
outras providências.
______. Lei nº. 7.565 de 19 dez.1986. Código Brasileiro de Aeronáutica (Substitui o Código
Brasileiro do Ar).
CAVALCANTI, André Uchôa. Responsabilidade civil do transportador aéreo: tratados
internacionais, leis especiais e Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002.
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10. ed. v. I. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
FARES, Ali Taleb. Novo panorama da responsabilidade civil no transporte aéreo. Disponível
em: <http://www.sbda.org.br/artigos/Anterior/1731.htm>. Acesso em: 22 nov. 2008.
FERRAZ, Renée Baptista; OLIVEIRA, Alessandro Vinícius Marques de. A estratégia de
overbooking e sua aplicação no mercado de transporte aéreo brasileiro. Disponível em: <http://
www.nectar.ita.br>. Acesso em: 13 mar. 2009. p. 09.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2013.
GRASSI, Roberto Neto. Crise no setor de transporte aéreo e a responsabilidade por acidente de
consumo. In: Xvi Congresso Nacional Do CONPEDI. Anais Eletrônicos... Belo Horizonte, 2007.
Disponível em: <http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/bh/roberto_grassi_neto.pdf>.
Acesso em: 10 dez. 2008.
LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade civil nas relações de consumo. São Paulo: RT, 2001.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 24. ed. rev. e atual. até a
emenda constitucional 55 de 20.9.2007. São Paulo: Malheiros, 2007.
MORSELLO, Marco Fábio. Responsabilidade civil no transporte aéreo. São Paulo: Atlas, 2006.
PACHECO, José da Silva. Comentários ao Código Brasileiro de Aeronáutica. 4. ed. rev. e atual.
Rio de Janeiro: Forense, 2006.
PEREIRA, Guttemberg Rodrigues. Conferência de Direito Aeronáutico 18 a 28 de maio de 1999
– Montreal, Canadá - Convenção para unificação de certas regras relativas ao transporte aéreo
internacional. Revista Brasileira de Direito Aeroespacial. Disponível em: <http://www.sbda.
org.br/artigos/Anterior/07.htm >. Acesso em: 19 mar. 2009.
STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: RT, 2004.
125
Artigo 9
REFLEXÕES A PARTIR DO “CONCEITO
DE POLÍTICO”
1
Mara Angelita Nestor Ferreira2
Resumo
Neste artigo, pretende-se abordar, de maneira sucinta, a interpretação do filosofo Carl Schmitt,
importante pensador do século XIX, através da análise do texto “O conceito de Político”,
onde, além de trazer novas categorias, também pretende avistar as modificações ocorridas no
decorrer do tempo e provocar a reflexão acerca do estabelecimento de outros marcos para o
binômio amigo-inimigo.
Palavras Chave: Carl Schmitt; Teoria do Partisan; conceito de político.
Abstratc
In this article, it intends approach, in way sucinta, the interpretation of the philosopher Carl
Schmitt, a leading thinker of century XIX, through the analysis of the text “The concept of
the Political”, where in addition to bringing new categories, also plans to catch sight of the
modifications occurred over time and cause reflection on the establishment of other milestones
for the binomial friend-enemy.
Key words: Carl Schmitt; Partisan theory; Political concept.
1Introdução
Efetivamente, o mundo mudou! Mudou e muda com tanta velocidade que fica difícil manter-se atualizado diante de tanta novidade. Nada mais permanece – não há tempo para consolidação, o envelhecimento ocorre antes mesmo da preensão das estratégias. Corolário, aprender
com as experiências buscando balizar-se em direção ao movimento futuro é pouco recomendável, já que práticas anteriores não dão conta de responder às necessidades de mudanças rápidas
e, quase sempre, imprevisíveis. Nesse cenário, realizar análise de tendência baseada em dados
do passado é uma temeridade. Toda essa situação de instabilidade e, aparente desordem, direciona a vivência diária orientada por valores outros – voláteis, egoísta e hedonistas. Tudo porque
se vive na sociedade líquido-moderna3, de tempos, de amor, de vida, de modernidade fluída.
Tais mudanças repercutem no entendimento de conceitos bem sedimentados, trazidos
por outras épocas, carecendo de necessária releitura, de forma a absorver ditas alterações.
SCHMITT, Carl. O conceito de político – teoria do partisan. Belo Horizonte. Del Rey, 2008. Texto escrito por Carl Schmitt e
publicado em 1832, foi um jurista, filósofo político e professor da Universidade de Colonia, Alemanha. Este curto ensaio de
Schmitt, é um dos grandes clássicos da filosofia política contemporânea, surgiu originalmente de uma conferência proferida na
Deutsche Hochschuhle für Politik em Berlim por ocasião de um ciclo de conferências dedicado ao problema da democracia,
sendo publicado com o título “Der Begriff des Politischen”.
1
Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Advogada da Companhia Paranaense de Energia. Professora da Faculdade Dom Bosco
3
Líquido-moderna é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do
que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir. (BAUMAN, Zigmunt. Vida líquida. (trad.
Carlos Alberto Medeiros) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005).
2
126
REFLEXÕES A PARTIR DO “CONCEITO DE POLÍTICO”
O presente trabalho, além de trazer a visão específica e pontual de Carl Schmitt acerca
do conceito de “político”, pretende avistar as modificações ocorridas no decorrer do tempo e
provocar a reflexão acerca do estabelecimento de outros marcos para o binômio amigo-inimigo,
para além do texto original. Lança-se mão, para tanto, de algumas obras de Zigmunt Bauman4,
onde o autor conduz à diversas possibilidades de mediações diante da nova realidade posta,
caracterizada pela efemeridade, versatilidade, insegurança, enfim, àquelas peculiares à fluidez
líquido-moderna. Também, traz uma abordagem da mudança refletida na sociedade, que de
produtores transformou-se em sociedade de consumidores, os indivíduos se tornaram ao mesmo tempo, promotores de mercadoria e a própria mercadoria que promovem, habitando o espaço social denominado de “mercado”
O Conceito de político segundo Carl Schmitt
Escrito em 1932, o texto tem caráter didático e busca uma tópica para seus conceitos (enquadramento teórico). Não partiu, segundo seu autor, de definições intemporais, mas de critérios: relação e posição recíproca dos conceitos estatal e político versus guerra e inimigo.
Carl Schmitt esclarece que o conceito de Estado pressupõe conceito de político, que se
constitui status de um povo organizado numa unidade territorial. Os sinais característicos da
representação de Estado adquirem sentido mediante o marco do político, que pede distinção. A
noção do político é dada apenas como antítese, ou seja, negativamente e em contraposição a diversos outros conceitos, como política e economia, política e moral e no Direito, política e Direito
Civil. Não oferece uma determinação do que seja específico. Em geral “político” é equiparado a
alguma forma de “estatal” ou, pelo menos, relacionado ao Estado. O Estado surge então, como
algo político, o político, porém, como algo estatal – circulo que não se satisfaz.
Na literatura jurídica encontram-se muito as paráfrases do político, que devem ser compreendidas a partir do interesse prático-técnico da decisão jurídica ou administrativa de casos
particulares - pressupõe uma forma não problemática de Estado existente. Assim, há uma jurisprudência e literatura acerca do conceito de “associação política” ou de “assembleia política”,
no direito de associação. Tais determinações não visam a definição do político como tal. Saem-se
bem enquanto o Estado e as instituições puderem ser pressupostos como algo evidente e sólido.
A equivalência do Estatal e Político mostra-se incorreta e enganosa, na mesma medida em
que Estado e sociedade se interpenetram, todos os assuntos até então políticos, tornam-se sociais
e vice-versa, assuntos até então apenas sociais (não-estatais) tornam-se estatais, como ocorre,
necessariamente, em uma coletividade democraticamente organizada. Áreas até então neutras
– religião, cultura, educação, economia – perdem essa conotação no sentido de não estatal e não
político.
Exemplo mais radical dessa equivalência ocorre no Estado Total: tudo é político e a referência ao Estado não mais consegue fundamentar um marco distintivo específico do “político”.
Essa transformação vai do Estado Absoluto, do século XVIII, passa pelo Estado Neutro, do sécu4
Sociólogo polonês, professor emérito de Sociologia das Universidades de Leeds e Varsóvia.
127
Artigo 9
lo XIX, até ao Estado Total, do século XX. A Democracia revoga as distinções e as despolitizações
típicas do século XIX, liberal, e, ao apagar a oposição entre Estado-Sociedade (político oposto ao
social), contribui para o desaparecimento das contraposições e das separações que correspondem à situação do século XIX – religioso como oposto ao político, cultural, econômico, jurídico,
científico.
Pensadores mais profundos do século XIX perceberam tal situação prematuramente: Burckhardt, em 1870, afirmou sobre a Democracia: “para ela o poder do Estado sobre o indivíduo
jamais é suficientemente grande, de modo que ela apaga os limites entre Estado e Sociedade,
atribui ao Estado tudo aquilo que a sociedade provavelmente não fará...”5.
A doutrina alemã do Estado não renunciou de saída à ideia de que o Estado frente à sociedade é algo de distinto e de superior. A confusão que ocorre no âmbito dessa equivalência pede
a distinção entre amigo-inimigo, critério do político. Uma determinação conceitual do político
requer identificação das categorias especificamente políticas. O político tem critérios próprios
frente aos domínios diversos e relativamente independentes do pensamento e do agir humano,
especialmente o moral (bom e mau), o estético (belo e feio) e o econômico (útil e prejudicial). O
que move o político é a distinção entre amigo-inimigo – grau de ligação teórica sem necessidade
de se valer de outras categorias. Fornece um critério, não como definição exaustiva ou especificação de conteúdos. Essa diferenciação pode subsistir, sem a necessidade de dizer acerca do
inimigo, que ele seja moralmente mau, esteticamente feio ou que é concorrente econômico.
O inimigo político é justamente o Outro, o estrangeiro – bastando que ele seja existencialmente Outro e estrangeiro, de modo que exista a possibilidade de conflitos. Tais conflitos não
podem ser decididos mediante normatização geral previamente estipulada, nem pelo veredicto
de um terceiro “desinteressado” (imparcial), uma vez que não há como julgar senão participando (interesse existencial), na medida em que cada um tem de decidir por si mesmo. Dessa forma,
psicologicamente, o inimigo passa a ser tratado de mau, feio, entre outros, pois a política (forte
e intensiva) pede auxílio às demais.
Os conceitos de amigo-inimigo não podem embaralhar outros, mas entendidos no sentido
concreto existencial, pois, os povos se agrupam sob o signo amigo-inimigo, onde o inimigo não
é concorrente ou adversário particular – é público, é o antagonismo. Inimigo é um conjunto de
homens, pelo menos eventualmente, isto é, segundo a possibilidade real, “combatente”, que se
contrapõe a um conjunto semelhante; o inimigo é “hostil”.
O antagonismo político é a mais intensa e extrema contraposição e qualquer antagonismo
concreto. É tanto mais político quanto mais se aproximar do ponto extremo, do agrupamento
amigo-inimigo. O Estado, ao lado das decisões primariamente políticas e sob a proteção das
decisões tomadas, produz numerosos conceitos “secundários” de “político”, ocasionando, por
exemplo, que se contraponha uma “política de Estado” a uma “política partidária” e que se
possa falar de uma política religiosa, escolar, comunal, social, entre outras. Desenvolvem-se
espécies ainda mais atenuadas de “política”, chegando ao “parasitário” e caricaturalmente de5
BURCKHARDT,Jacob. Reflexões sobre a História. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1961, p. 62.
128
REFLEXÕES A PARTIR DO “CONCEITO DE POLÍTICO”
formado, nas quais resta apenas, do originário agrupamento amigo-inimigo, algum momento
antagonista que somente se expressa em táticas e práticas de todo tipo, concorrências e intrigas,
designando os mais bizarros negócios e manipulações denominadas também “política”.
Nessas referências concretas encontra-se a essência das relações políticas, que se expressam pelo uso corrente da linguagem, produzindo dois fenômenos imediatamente constatáveis:
I) Todos os conceitos, representações e palavras políticas têm um sentido “polêmico”,
cuja consequência extrema é um agrupamento amigo-inimigo (manifestado na guerra
ou revolução) e se transformam em abstrações vazias e fantasmagóricas quando essa
situação é esquecida. Palavras como Estado, República, sociedade, classe, soberania,
Estado de Direito, absolutismo, ditadura, planejamento, Estado Neutro ou Total, etc,
são incompreensíveis quando não se sabe quem, em concreto, deve ser atingido, combatido, negado ou refutado com tal palavra. O caráter polêmico rege, sobretudo, também o próprio uso linguístico da palavra “político”, quer se coloque o adversário como
“apolítico”, quer se queira pelo contrário, desqualificá-lo e denunciá-lo como político;
II) Na polêmica diária intra-estatal “político” é empregado como “político partidário”,
contribuindo para que a distinção amigo-inimigo imanente a todo comportamento,
seja reducionista, propondo uma despolitização, que só é possível quando se relativize
todos os partidos intrapolíticos. No entanto, quando os antagonismos intra-estatais
assumem maior intensidade, ou seja, agrupamentos amigo-inimigo intra-estatais, não
de política externa, estão presentes às condições necessárias para o confronto armado,
a guerra civil – a possibilidade de luta que sempre deve estar presente para que se possa falar de política refere-se, por conseguinte, a tal “primado da política interna”, não
mais à guerra entre povos, organizados em unidades políticas (Estados e impérios).
Segundo Carl Schmitt6, a guerra pode ser a luta armada entre duas unidades políticas
organizadas (guerra externa) e a luta armada no interior de uma unidade política (guerra civil),
que se torna mais problemática. Entenda-se luta armada como a eliminação física de pessoas e,
portanto, os conceitos de amigo-inimigo adquirem seu real sentido pelo fato de terem e manterem primordialmente uma relação com possibilidade real de aniquilamento físico, não bastando
o combate de ideias ou simbólico. A negação ontológica do outro “ser” é a realização extrema
da inimizade e deve permanecer presente como real possibilidade, enquanto o inimigo tiver
sentido. Todavia, não se pode considerar a ação política como ação militar, pois, a definição do
político não é belicista, nem militarista, imperialista ou pacifista.
Na guerra, a decisão política já definiu quem é inimigo (uniforme) e que o político estaria
mais preparado do que o soldado para essa tomada de decisão, já que a distinção amigo-inimigo
na guerra deixa de ser um problema político que deve ser resolvido pelo soldado em combate. A
guerra não é fim e objetivo, não é sequer conteúdo da política, porém, é o “pressuposto” sempre
presente como possibilidade real, a determinar o agir e o pensar humanos de modo peculiar,
efetuando assim, um comportamento especificamente político.
6
SCHMITT, Carl. O conceito de político – teoria do partisan. Belo Horizonte. Del Rey, 2008
129
Artigo 9
O critério da distinção amigo-inimigo não significa, portanto, que determinado povo deva
sempre ser amigo ou inimigo de outro, como também não significa que neutralidade não possa
ter sentido, politicamente. Mas, o conceito de neutralidade implica no pressuposto extremo da
real possibilidade de um agrupamento amigo-inimigo e se na terra houvesse apenas neutralidade, acabaria não somente a guerra, como também a própria neutralidade. Com a política acontece o mesmo, deixa de existir e não existe mais possibilidade de luta. O fator determinante é a
real possibilidade e eventualmente, a decisão assim tomada para o combate real concede à vida
das pessoas uma dimensão política.
Um mundo pacificado, sem a distinção entre amigo e inimigo, seria um mundo sem política. Não se questiona acerca do que é desejável, bom e ideal em um mundo sem política. O fato
é que o fenômeno político só pode ser compreendido mediante referencia a real possibilidade do
agrupamento amigo-inimigo. Nada pode escapar a essa consequência do político. Se a oposição
pacifista contra a guerra se tornasse tão intensa a ponto de os pacifistas travarem uma guerra
contra a guerra, comprovar-se- ia que ela realmente tem força política, por ser suficientemente
forte para agrupar os homens no binômio amigo-inimigo. O político não reside na luta em si,
mas no reconhecimento de sua situação amigo-inimigo.
Realizar guerra por motivos morais, religiosos é contrassenso, apesar dos mesmos serem
utilizados para sua efetivação, mesmo porque, toda contraposição moral, econômica, religiosa
se transforma numa contraposição política se tiver força suficiente par agrupar as pessoas. O
Estado tem a capacidade de determinar seu inimigo e combatê-lo, sendo que a técnica e os meios
de ação não interessam à dimensão política.
O mundo moderno desenvolveu formas de agrupamento e criou outras novas – visando a
possibilidade de fazer guerra e de dispor sobre a vida dos homens dessa unidade política (guerra externa), com vistas a manter a paz e ordem. Observe-se que também determina o inimigo
interno. Tal situação ocorre em razão de que o político pode extrair sua força de vários setores da
vida humana; corolário, num primeiro momento essa força de contraposição não política (moral), passa da condição de secundária para primordial, uma vez que assume a dimensão política.
O Estado, por sua vez, não pode ser colocado na mesma condição de outras associações,
pois, tem unidade normativa diferente das demais associações que não pode ser transferida,
sob pena de renunciar à unidade política, pois, a guerra justa se constitui na finalidade política.
Mesmo que não haja interesse em realizar a guerra, deve-se distinguir amigo-inimigo – caso
contrário será colocado na mesma dimensão do inimigo. A tomada de decisão e a designação do
inimigo constituem o papel do político – o fato do povo não querer estar na esfera do político,
não faz o político desaparecer de cena, mas torna o povo fraco.
A partir do político derivam consequências pluralistas, uma vez que o mundo não é uma
unidade política, mas sim, um pluriversum político, já que a unidade política pressupõe a possibilidade real do inimigo e, consequentemente, outra unidade política coexistente. Não há possibilidade de um Estado mundial englobar todos os povos, eis que a humanidade não pode fazer
guerras em razão de que não tem inimigo. No entanto, guerras podem ser efetivadas em nome
130
REFLEXÕES A PARTIR DO “CONCEITO DE POLÍTICO”
da “humanidade”’ - alguém se apropria da legitimidade de defender a humanidade em nome
de todos, utilizando essa terminologia como instrumento ideológico, pois quem diz humanidade pretende enganar, já que “humanidade” não é um conceito político.
A falta de capacidade para diferenciar o inimigo é sintoma do término da dimensão do
político, até porque, poderiam ser examinadas questões de todas as teorias do Estado e ideias
políticas com correspondente corrente antropológica, pois, a partir desse traço fundamental da
natureza humana surge o fundamento para toda vida política.
Schmitt7, considera o liberalismo como o responsável pela desnaturalização de todas as
representações políticas, uma vez que em todo mundo os liberais se uniram e fizeram política.
Faz referência, via de regra, à luta política interna contra o poder estatal, oferecendo métodos
para controlar o poder do Estado visando à proteção da propriedade privada. O pensamento
liberal ignora/desconfia do Estado e da política, sendo explicado a partir de princípios – todo
estorvo à liberdade individual e à propriedade é tida como violência. O Liberalismo permite ao
Estado atuar reduzidamente em relação às condições de liberdade, através de sistema completo
de conceitos despolitizados. Da dominação do poder surge a propaganda e sugestão de massa
(espiritual) e controle (econômico), tudo para submeter o Estado e a política ao Direito Privado.
O mesmo autor8 demonstra o pseudo progresso da humanidade no transcorrer dos séculos – no século XVIII, o aperfeiçoamento intelectual e moral; no século XIX, a dialética de Hegel
e antíteses de Marx, indagam acerca da evolução da humanidade: foi efetiva? As oposições econômicas se tornam políticas demonstrando que o ponto político é atingível a partir da economia.
No entanto, é equivoco acreditar que a posição política pode ser conquistada graças à supremacia econômica, em razão de que o Imperialismo, fundado economicamente, pode promover
um estado de coisas onde seja possível aplicar os meios e entraves por intermédio do poder
econômico.
A forma de atuação não é belicosa, já que não pega em armas, entretanto, se utiliza de
meios coercitivos apolíticos, como embargo, sanção, entraves, e outros. Contudo, mantém um
discurso pacifista: não chama o adversário de inimigo e só é levado à guerra para defesa de seu
poder econômico. Utiliza-se de propaganda sob o ícone da “última guerra da humanidade”,
com pecha de “para o bem da humanidade”. Apesar de aparentemente, considerado apolítico,
resta por servir ao agrupamento de amigo-inimigo e daí, ao final, não consegue escapar da consequência natural do político.
Por isso, na era das neutralizações e despolitizações, faz-se mister tomar consciência da
realidade presente a partir do regate histórico através dos quatro passos - teológico, metafísico, humanitário moral e econômico. Somente se pode entender a partir desses centros, pois há
alternância na condição de dominação mundial. As neutralizações e despolitizações decorreram
dessa superação paradigmática, diante da sua insuficiência frente à concreta realidade.
7
8
Op. Cit.
Idem.
131
Artigo 9
O Estado - nação
É comum afirmar que o nascimento da ideia de nação ocorreu nos séculos XIV e XV, durante a Guerra dos Cem Anos, entre a França e a Inglaterra, quando os ingleses e franceses, após
todos os combates, teriam se identificado como povo e, a partir daí, teriam constatado a necessidade de se constituírem em uma comunidade politicamente organizada.
Entretanto, o primeiro Estado Nacional que surgiu foi o Português, no século XIII, patrocinado pela rica Burguesia comerciante de Lisboa; já o surgimento do Estado Nacional Alemão
e Italiano se deu no século XIX, diferentemente das bases anteriores à era Moderna, quando a
garantia à união e coesão da sociedade eram ligações de cunho religioso – como no caso da Idade
Média - ou de dominação e subjugação – do Império Romano.
Diante da situação posta, buscou-se um novo modo de explicar o surgimento do conceito
de nação: a Burguesia estava interessada em encontrar meios suficientes de livrá-la das lutas
religiosas e dinásticas, atreladas às ambições de conquista de seus governantes. Sob tais circunstâncias, foi indispensável a disseminação de ideologia que legitimasse a soberania popular
contra os arbítrios do monarca. Mas, para a efetivação da soberania popular, foi imprescindível
o aparecimento de um símbolo de unidade do povo, destinado a reuni-lo (mesmo que pela via
emocional), em favor da luta contra o Absolutismo e pela institucionalização de lideranças.
Esse elo que pretendeu a unidade do povo assumiu seus contornos através do conceito de
nação, criado artificialmente e vastamente explorado no século XVIII pela Burguesia, conduzindo-a ao poder político. Daí, a disseminação da ideia de que era em nome da nação que se lutava
contra a Monarquia Absoluta, tornando o processo justo, posto ser fundamental que o povo
assumisse o seu próprio governo. No entanto, com o advento da Revolução Francesa e da Revolução Americana, a nação cedeu espaço ao governo do Estado – a nação passou a ser identificada
com o próprio Estado. Corolário, no transcorrer dos séculos XIX e XX ocorreu o florescimento
da corrida imperialista e movimentos maculados pelo sentimento nacionalista, que em nome da
grandeza das nações, eclodiu em duas guerras mundiais de consequências trágicas. Foi naquele
contexto que se formou o Estado - Nação: entidade política com unidade territorial e pretensão
de identidade cultural. Com efeito, a nação constituiu-se em instrumento principal do Estado,
na sua luta pela soberania sobre o território e sua população9.
Nesse mesmo viés, Carl Schmitt propõe em sua obra, que o conceito de Estado pressupõe
conceito de político - status de um povo organizado em uma unidade territorial, sendo fundamental a necessidade de definir quem é o inimigo – sendo esse um conjunto de homens com
possibilidade real para o combate.
Crise do Estado - nação e mundialização do capital
Segundo Zygmunt Bauman, o mundo está passando por transformações sem precedentes – da fase “sólida” para a “líquido-moderna”10. Na era líquido-moderna, as organizações não
9
10
BAUMAN, Zigmunt. A modernidade líquida. (trad. Plínio Dentzien) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 211.
BAUMAN, Zigmunt. Tempos líquidos. (trad. Carlos Alberto Medeiros) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 08.
132
REFLEXÕES A PARTIR DO “CONCEITO DE POLÍTICO”
podem mais manter sua forma por muito tempo, pois, tudo é muito fluido, a vida é precária, as
estratégias existenciais são de curto prazo, destinadas a um projeto de vida individual. O Estado, que antes era visto como agente que detinha os recursos necessários para impor regras e normas destinadas a regular o rumo das coisas dentro de determinado território, sofre alterações
consideráveis: a política global baseada no poder soberano dos estados, ainda que divididos em
blocos antagônicos, tendo como meta a soberania, sucumbe diante da era das incertezas.
Ocorre a separação entre política e poder, quando este último, disponível ao Estado moderno, migra para a direção do espaço global e até extraterritorial, “politicamente descontrolado, enquanto a política – a capacidade de decidir a direção e o objetivo de uma ação – é incapaz
de operar efetivamente na dimensão planetária, já que permanece local”11.
Corolário falta de controle político gera profunda incerteza, enquanto a falta de poder torna as instituições políticas existentes irrelevantes para os problemas dos cidadãos, encorajando
o Estado a terceirizar um volume considerável de funções estatais. Outra alteração importante
trazida pelos tempos líquidos refere-se à retração da segurança da ação coletiva – a dimensão
da “comunidade” como forma de referência à totalidade da população que habita o território
soberano do Estado dilui-se diante da fragilidade dos laços intersubjetivos que antes serviam
de sustentáculo para balizar o sacrifício de interesses individuais. Atualmente, a “exposição dos
indivíduos aos caprichos dos mercados de mão-de-obra e de mercadoria inspira e promove a
divisão e não a unidade”12.
Com a mundialização do capital inicia-se o definhamento do Estado-Nação diante da organização de empresas supranacionais, cujo objetivo precípuo é aumentar os lucros. Se antes a
política produzia uma imagem da totalidade – ordem global das coisas (a formação de dois blocos de poder – nada fugia ao controle desses dois blocos), onde o conceito de ordem era “estar no
controle”, hoje, verifica-se uma desordem mundial, um campo de forças díspares onde ninguém
e, ao mesmo tempo, alguns estão no controle.
Atualmente, o Estado não mais controla, eis que abalado no seu tripé – exceto policiar o
território e a população, uma vez que os mercados financeiros impõem suas próprias regras, as
quais são seguidas inclusive pelos governos13, sob pena de entrarem em colapso diante das pressões mercadológicas, que dirá controlar politicamente, a ação mercadológica.
Surgida na década de 1980, a palavra “globalização” significou para os grandes industriais, ter consciência de seus interesses comuns e cooperar uns com os outros. Nesse contexto,
Bauman considerou – os ricos mais ricos e os pobres mais pobres, cujo objetivo era criar e/ou
aumentar a zona de exclusão em todas as dimensões humanas14.
BAUMAN, Zigmunt. Tempos líquidos. (trad. Carlos Alberto Medeiros) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 08.
Op. cit. p. 09.
13
Relacionados a conceitos de Estado mínimo, reforma administrativa do Estado, etc.
14
BAUMAN, Zigmunt. Globalização: consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de
J
aneiro: Jorge Zahar, 1999.
11
12
133
Artigo 9
Bonavides (1999) coloca que:
A globalização econômica coloca o capitalismo outra vez na selva. Do estado de
natureza ele sairá tão-somente pela artéria da globalização política se esta assumir
a feição democrática. A sociedade sem lei, onde, já uma vez, o capitalismo imperou,
ao ensejo da chamada revolução Industrial, se reproduz, por analogia, na sociedade global contemporânea, ou seja, com a globalização, conceito tão em voga no
vocabulário da economia contemporânea.15
Há afirmações no sentido de que o modelo econômico que se prestou à proliferação de
conceitos ligados à globalização foi o Neoliberalismo, o qual, apesar da disseminação política e
ideológica, persiste o entendimento de que o Neoliberalismo não objetiva a globalização política, com meta(s) disfarçada(s):
[...] o Neoliberalismo não se ocupa da globalização política; deixa o tema submerso
no esquecimento e omissão. ... Mas ela – a globalização oculta, invisível e dissimulada do Neoliberalismo – também já se pôs em marcha, de forma indireta, silenciosamente, subrepticiamente, empurrada pelas forças do próprio capitalismo, de
uma mídia internacional, de seus teoristas neoliberais, que constroem a doutrina
da decadência e abolição dos conceitos clássicos de Estado, Nação e Soberania.16
A ideia nuclear propalada consiste na adoção desse modelo neoliberal como a única alternativa de sobrevivência para os estados modernos, mesmos à custa de muitos sacrifícios dos
cidadãos, já que “a globalização é ainda um jogo sem regras; uma partida disputada sem arbitragem, onde só os gigantes, os grandes quadros da economia mundial, auferem as maiores
vantagens e padecem os menores sacrifícios”17.
Henderson (2003) entende que a globalização move-se através de duas correntes18:
i) a primeira é a tecnologia, que acelera a inovação, a computação as fibras óticas os
satélites e outros meios de comunicação;
ii) a segunda é fruto de um processo de desregulamentação dos mercados globais,
privatização, liberalização dos fluxos de capitais, abertura das economias, enfim,
a pratica de um paradigma econômico promovido pelos Estados Unidos, Banco
Mundial e Fundo Monetário Nacional.
Em citação à obra do sociólogo espanhol Manuel Castells, Henderson (2003) transcreve a
seguinte declaração:
15
16
17
18
BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial. Malheiros: São Paulo, 1999. p. 140.
Ibid., p. 141.
BONAVIDES, op.cit., p. 139.
HENDERSON, Hazel. Além da globalização. São Paulo: Cultrix, 2003, p. 51.
134
REFLEXÕES A PARTIR DO “CONCEITO DE POLÍTICO”
Um novo mundo está se formando neste final de milênio. Ele se origina na coincidência histórica, em torno do final dos anos 60 e meados dos 70, de três processos
independentes, a revolução da tecnologia da informação, a crise econômica tanto
do capitalismo quanto do estatismo e suas subsequentes reestruturações; e o surgimento de movimentos culturais e sociais, tais como a doutrina do livre-arbítrio,
os direitos humanos, o feminismo e o ambientalismo.... as interações entre esses
processos e as reações que eles provocaram fizeram surgir uma nova e dominante
estrutura social, a sociedade de rede ... e a nova economia global da informação
bem como um nova cultura19.
Essas redes de mercados criadas a partir da globalização desencadearam o aumento das
desigualdades, ampliando a distância entre países ricos e pobres: surgiu uma nova divisão política – os ricos em informação (info-ricos) e os pobres em informação (info-pobres), com o consequente aumento geral da pobreza mundial.
Muitas características da mundialização do capital mantêm as características peculiares
de épocas anteriores ao Capitalismo, contudo, o conteúdo da acumulação de capital e seus resultados são bastante diversos “ o capitalismo parece ter triunfado e parece dominar todo o planeta,
mas os dirigentes políticos, industriais e financeiros dos países do G7 cuidam de se apresentarem como portadores de uma missão histórica de progresso social” 20.”
Depara-se com o Estado impotente - o Estado pode tudo desde que não toque na economia sob pena de punição dos mercados mundiais, mesmo porque, é objetivo dos Estados manter
orçamento equilibrado, quer por opção ou imposição do FMI ou Banco Mundial. A globalização
vive de Estados fracos, eis que a fragmentação política viabiliza sua própria implementação.
Quem está fora deve promover mudanças para se adaptar. Por exemplo, tecnologicamente, a
globalização é tida como processo benéfico e necessário.
Outras alterações são requeridas: adaptar-se às estratégias das multinacionais, que pressupõem a desregulamentação e a liberalização, chegando a tratar a globalização como sinônimo
de comércio exterior. Economicamente, deve adaptar-se às imposições naturais do mercado financeiro, em que os mercados financeiros sinalizam aos governos; já o oligopólio mundial não
se constitui em uma zona tranquila, mas sim, de concorrência acirrada e rivalidade industrial,
mas também de colaboração. O objetivo é manter a situação de dominação, reafirmando a polarização interna uma vez que diante do binômio oligopólio mundial-periferia, não mais se fala
em opressores e oprimidos como na era imperialista, mas, são áreas de pobreza com peso morto
– emigrantes ameaçam os chamados países democráticos.
As relações de trabalho devem se adaptar diminuindo a gordura de pessoal, através da
flexibilização da relação empregatícia e desmantelamento dos sindicatos. As grandes empresas
não precisam se deslocar em grandes distâncias para implementar suas atividades. Graças a
essas modificações, torna-se factível a manutenção do status quo do mercado financeiro, a pos19
20
Ibid., p. 52.
CHESNAIS, François. A Mundialização do Capital. São Paulo: Xamã, 1996, p. 14.
135
Artigo 9
sibilitar a construção de zona de baixos salários e reduzida proteção social, tudo em nome da
civilização mundializada, onde a produção de meio padrão para a valorização do capital, o
nivelamento da cultura e homogeneização, tornam o sentimento de coletividade sem conteúdo.
Falar-se em mundialização do capital significa falar em capacidade estratégica de um grande
grupo oligopolista em adotar uma conduta global que lhe favoreça, contribuindo para a desregulamentação e interligação dos mercados mundiais.
Mas, não são todos os países (globais) que interessam ao capital, somente aqueles que lhe
favorecem economicamente - os que não interessam ao capitalismo são excluídos do círculo de
exploração. Transmite-se, propositadamente, a ideia de que a riqueza, é global e a miséria, é local.
Bauman cita Ryszard Kapuscinski para demonstrar como os meios de comunicação se
utilizam de estratégias subliminares para disseminar assertivas de que os próprios pobres são
responsáveis pela sua pobreza; que a pobreza é restrita ao conceito de fome ou ainda, a parte
desenvolvida do globo monta um muro para separar tudo que é ameaçador, dando a ideia de
que o que é ruim está longe. Como consequência, nega-se o direito de migração – da fome para
a comida.
Re- significação do conceito amigo-inimigo
Se, como exposto por Carl Schmitt, para o estabelecimento do critério do político há necessidade de distinção entre amigo-inimigo, essa distinção era mais fácil na época em que o texto foi
escrito, pois, estava em vigência o modelo de Estado-Nação, constituído por unidade territorial,
Estado forte, nacionalista, buscando a defesa de seus interesses enquanto nação ou reconhecimento de sua supremacia diante das demais nações.
A situação atual é menos confortável, pois a globalização21 trouxe a “nova desordem mundial” - não tem sede, não tem escritório, não tem uniforme militar, unidade territorial (nação),
não tem língua oficial, uma vez que o estabelecimento das empresas sem nacionalidades é interessante economicamente – seus interesses são supranacionais.
Atualmente, o estilo de acumulação se dá pela centralização de capitais financeiros – daí
que a esfera financeira é que comanda a repartição e a destinação social dessa riqueza, ou seja,
nenhuma. Na realidade, refere-se ao capital virtual que se movimenta segundo mecanismos
próprios – transferência efetiva de riqueza para a esfera financeira, aliada à dívida pública e
políticas monetárias. O capital monetário é nervoso – sua movimentação se dá de acordo com o
mercado financeiro. Corolário, a movimentação governamental é restrita e se realiza em conformidade com esses mercados, cujas bases são altas taxas de juros e inflação zero, ditando inclusive, a conduta das empresas.
Para fazer o “mercado girar” é necessário que o consumo se perpetue, ou seja, a vida líquida é uma vida de consumo22 – projeta o mundo e todos como objetos de consumo, que perdem a
Prefere-se o uso do termo globalização ao invés de mundialização em razão da mensagem ideológica que o termo mundialização carrega, já que o globo não dá a dimensão exata do mundo (inglês e francês), lembrando ainda que globalização
pressupõem a existência de um centro com uma periferia.
22
BAUMAN, Zigmunt. Tempos líquidos. (trad. Carlos Alberto Medeiros) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
21
136
REFLEXÕES A PARTIR DO “CONCEITO DE POLÍTICO”
utilidade enquanto são usados, possuindo limitada expectativa de vida útil. Uma vez ultrapassado esse limite, tornam-se impróprios, devendo ser substituídos.
Por isso, Bauman afirma que “para se livrar o embaraço de ser deixado para trás, de ficar
preso a algo com o qual ninguém mais quer ser visto, de ser pego cochilando e de perder o trem
do progresso em vez de viajar nele, você deve ter em mente que é da natureza das coisas exigir
vigilância, não lealdade. No mundo liquido-moderno, a lealdade é motivo de vergonha, não de
orgulho”23.
Afinal, na sociedade dos consumidores, ninguém pode deixar de ser um objeto de consumo e a não satisfação dos desejos que permitam à sociedade de consumo continuar existindo,
movimentando o mercado e a indústria de consumo. “A sociedade de consumo consegue tornar
permanente a insatisfação. Uma forma de causar esse efeito é depreciar e desvalorizar os produtos de consumo logo depois de terem sido alcançados ao universo dos desejos do consumidor”24.
Aliás, trata-se de forma eficaz de dissimular o método utilizado para manutenção da sociedade
de consumo: satisfazer as necessidades humanas de maneira a provocar outras.
Dizer sociedade de consumo é ir além da mera observação passiva da realidade fática de
que consumir é agradável, uma vez que, esconde ou dissimula a verdadeira necessidade a ser satisfeita pelo homem: é afirmar que o ambiente social segue orientado pela síndrome consumista,
onde a “política de vida”, que contém a Política com “P” maiúsculo, assim como a natureza das
relações interpessoais, tende a ser remodelada à semelhança dos meios e objetos de consumo e
segundo as linhas sugeridas pela síndrome consumista”25.
Considerações finais
Percebe-se que diante das alterações trazidas pelos ventos dos tempos líquido-modernos,
ocorreu uma separação entre política e economia, quando existe a tendência de proteger a economia de uma intervenção política estatal.
A insegurança é a marca desses tempos líquido-modernos, sobretudo, nas grandes cidades onde os mecanismos de proteção aos menos favorecidos, somados aos efeitos incomensuráveis e descontrolados produzidos pela globalização, restou por originar um ambiente inseguro
por definição.
Aliás, “construídas para fornecer proteção a todos os seus habitantes, as cidades hoje
em dia se associam com mais freqüência ao perigo que à segurança”26. Bauman afirma que é no
medo que se baseia a legitimidade da política contemporânea diante da incapacidade de atingir
o núcleo global dos problemas que afetam a civilização atual. Assim, a sociedade dos produtores
está encerrada, pelo menos em parte do globo, e foi substituída pela sociedade de consumidores,
sendo que o novo habitat natural dos consumidores é o mercado - lugar destinado a comprar e
vender, representados pelos Shoppings Centers, ruas com mercadorias de grifes expostas com o
objetivo de dotar o público do seu pseudo valor.
23
24
25
26
Op. cit., p. 17.
Op. cit. p. 106.
Op. cit. p. 109.
Op. cit. p. 138.
137
Artigo 9
Na sociedade atual, o indivíduo deixou de ser cidadão em sua essência e foi transformado
em consumidor, propositalmente. Nesse sentido, Bauman esclarece em sua obra, sobre o papel
da educação, da capacitação e do processo de aprendizagem, os quais se constituem em instrumentos destinados a retomar a reflexão na sociedade e a conscientização acerca da cidadania.
Não se trata apenas de adaptar as habilidades humanas ao ritmo acelerado da mudança mundial, mas, busca tornar o mundo em rápida mudança, mais hospitaleiro para a humanidade27.
Citando Henry A. Giroux e Susan Giroux, Bauman traz a seguinte passagem:
A democracia está em perigo quando os indivíduos são incapazes de traduzir sua
miséria privada em preocupações públicas e ação coletiva. Como as corporações
multinacionais moldam cada vez mais os conteúdos da maior parte da grande
mídia, privatizando o espaço público, o engajamento cívico parece cada vez mais
impotente e os valores públicos tornam-se invisíveis. Para muitas pessoas hoje em
dia, a cidadania foi reduzida ao ato de comprar e vender mercadorias (incluindo
candidatos), em vez de aumentar o escopo de suas liberdades e direitos a fim de
ampliar as operações de uma democracia substancial.28
Corroborando idêntica posição, Hannah Arendt afirma que a retirada da política e da
esfera pública compõe a “atitude básica do indivíduo moderno, o qual em sua alienação em
relação ao mundo, só pode revelar-se verdadeiramente na privacidade e intimidade dos contornos face a face”29.
Como sociedade transformada em consumidores, as relações humanas são moldadas pela
visão do mundo e por padrões de conduta inspirados pelo “mercado” – que tudo compra e tudo
vende. Nessa sociedade líquido-moderna de consumo, as pessoas se sujeitam ao constante remodelamento para que, ao contrário das roupas que saem de moda (ficam démodé), não fiquem
ultrapassadas e sejam substituídas por modelos mais modernos. Por isso, a necessidade de repensar a relação entre amigo-inimigo, já que os discursos, os meios e instrumentos utilizados
pela sociedade de consumo são dissimulados, sorrateiros, subliminares e conduzem o indivíduo ao abandono da cidadania, retira da ação coletiva sua substância, relega o espaço público
e a ação política à condição de insignificância diante da alta relevância que o mercado ocupa,
produzindo resultados econômicos. Nesse contexto, a ação política, fica em último plano, até
porque, pode esperar... Será tratada depois da visita ao Shopping mais próximo!
Referências
BAUMAN, Zigmunt. Vida líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005.
___________. A modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
___________. Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
27
28
29
Op. cit. p. 164.
Op. cit. p. 164.
Op. cit. p. 169.
138
REFLEXÕES A PARTIR DO “CONCEITO DE POLÍTICO”
___________. Globalização: consequências humanas. Trad. Marcus Penchel.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
___________. Vida para o consumo. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2008.
BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial. São Paulo: Malheiros, 1999.
BURCKHARDT, Jacob. Reflexões sobre a História. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1961.
CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.
HENDERSON, Hazel. Além da globalização. São Paulo: Cultrix, 2003.
SCHMITT, Carl. O conceito de político- teoria do partisan. Belo Horizonte. Del Rey, 2008.
139
Artigo 10
DIREITO E PSICANÁLISE: DIÁLOGO
NECESSÁRIO
Lijeane Cristina Pereira Santos1
Um primeiro olhar para o nó borromeu (construção lacaniana sobre a estrutura do sujeito)
e os últimos nós que uniam o pensamento a uma lógica cartesiana – aumentada pelo silogismo
prático do direito de subsumir um fato a uma norma buscando encontrar, em um processo cheio
de regras, “a verdadeira verdade” –, desfizeram-se. E já não basta apenas encontrar uma solução
fundamentada na lei. É preciso mais. É necessário buscar o fundamento da subjetividade daqueles envolvidos e submetidos às leis sociais. Mas onde encontrar as explicações necessárias para
entender os aportes trazidos pela teoria psicanalítica?
E com a resposta sobre o nó borromeu vieram outros nós que ligaram o direito e a psicanálise. Hoje é impossível separar a lei, o direito e a justiça das explicações que traz a psicanálise
sobre a constituição dos sujeitos. É necessário dar asas ou, simplesmente, dar um nó unindo os
dois discursos, de modo a se estabelecer um diálogo.
Mas como a psicanálise pode ajudar na leitura do Direito?
Há muito se sabe que a psicanálise tem como objetos mais relevantes de estudo os fatores
psíquicos do ser humano, o reconhecimento da existência de um inconsciente e a importância da
linguagem para a constituição subjetiva e inserção social dos homens. Sobre a psicanálise e seu
futuro como ciência, leciona com precisão Elizabeth Roudinesco2:
“A psicanálise atesta um avanço da civilização sobre a barbárie. Ela restaura a idéia
de que o homem é livre por sua fala e de que seu destino não se restringe a seu ser
biológico. Por isso, no futuro, ela deverá conservar integralmente o seu lugar, ao
lado das outras ciências, para lutar contra as pretensões obscurantistas que almejam reduzir o pensamento a um neurônio ou confundir o desejo com uma secreção
química”.
Trata-se, assim – com toda a certeza – de um discurso rigoroso, no mesmo patamar onde
se localiza o discurso do Direito3.
Professora de Psicologia Jurídica, Direito de Família e Direito da Criança e do Adolescente, no Curso de Direito das
Faculdades Dom Bosco, em Curitiba; Professora de Psicologia Forense, no curso de Psicologia das Faculdades Dom Bosco,
em Curitiba; Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná; especialista em Direito
Processual Civil; formada em teoria psicanalítica pela Associação Psicanalítica de Curitiba; Membro da Comissão de Direito de
Família da OAB/PR, advogada em Curitiba, Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da PPGD UFPR.
2
ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a psicanálise? (Tradução de Vera Ribeiro) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 09.
3
Sobre o assunto, vide Agostinho Ramalho Marques Neto, no texto entitulado Subsídios para pensar a possibilidade de
articular Direito e Psicanálise. (MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Subsídios para pensar a possibilidade de articular
direito e psicanálise. In: Direito e Neoliberalismo – elementos para uma leitura interdisciplinar. Curitiba: EDIBEJ, 1996, p. 20):
“Psicanálise e Direito, com efeito, não são, segundo penso, propriamente ciências, sobretudo se se toma este termo na acepção
neopositivista, que parece ser, ainda, sua acepção dominante. Isso não quer dizer, todavia, que não sejam ou não possam ser,
discursos teóricos rigorosos”.
1
140
DIREITO E PSICANÁLISE: DIÁLOGO NECESSÁRIO
Sim, o Direito é, sobretudo, um discurso! E, como tal, sujeito às regras da linguagem e às
subjetividades de seus enunciadores. E é aí, justamente aí, que se pode colocar a Psicanálise ao
seu lado, como auxiliar do seu discurso. Como auxiliar, mas não em justaposição de discursos. É
necessário, para que se possa sustentar a possibilidade de um diálogo entre Direito e Psicanálise,
que estes discursos sejam respeitados e organizados lado a lado, apenas e tão-somente onde se
puder colocá-los nesta posição. É um erro, por exemplo, fazer com que se tente falar de Direito
utilizando a simples e pura transposição de conceitos psicanalíticos. A partir deste erro, analisaríamos juízes, réus, promotores como se houvesse, nos fóruns, nas audiências ou nos corredores
dos tribunais, ambiente propício para qualquer espécie de transferência. Mas, como se sabe, não
há transferência apta a fundamentar a clínica psicanalítica longe dos consultórios.
Os conceitos psicanalíticos devem ser estudados a princípio dentro de um campo psicanalítico – e neste campo, quem sabe, sustentar-se-ia que precisam alguns juízes, por exemplo,
de bons analistas – para depois, no que convier serem aplicados ao estudo do Direito, como
auxiliares.
Tudo isto para lembrar que o Direito e a Psicanálise são discursos diferentes, que partem
de premissas diferentes. Como enuncia Jacinto Nelson de Miranda Coutinho4:
“Os elementos dos campos (direito e psicanálise), por outro lado, não têm a mesma estrutura e não podem ser tomados como lugar-comum. Arriscar a identidade
é ceder à comodidade, mas incorreto, para não dizer falso. Atitude empulhadora,
deslumbra na primeira aparência pelas fórmulas fáceis, mas oferece o cadafalso no
momento seguinte. Isto não quer dizer que não se deva buscar as possibilidades
de interseção (o perigo reforça o desejo), mas enuncia a tortuosidade do caminho”.
Por oportuno, a psicanálise, como é de conhecimento de todos, teve seus primeiros estudos traçados no final do século XIX e início do século XX, com Sigmund Freud. Tais estudos proporcionaram ao mundo uma nova maneira de observar o individuo em sua subjetividade, tendo
em vista que reconheciam a existência de um inconsciente, organizavam o que se denominou de
aparelho psíquico e, a partir das manifestações do inconsciente e de métodos de utilização do
discurso denominados condensação e deslocamento, propuseram a cura para as neuroses cotidianas, como as histerias, através do método da associação livre de palavras. Era o nascimento
do que se designou a “cura pela palavra”, como também do fortalecimento da idéia filosófica
que deu origem ao paradigma da linguagem.
A partir destas premissas freudianas, os operadores do direito trataram de organizar princípios que pudessem ser aplicados, sobretudo, no estudo da conduta delituosa, da psicologia do
testemunho e das decisões judiciais.
O que se não esperava é que o ensino da Psicanálise aplicada ao Direito (assim como a
própria Psicanálise) tivesse uma mudança profunda em sua estrutura com o advento e difusão
das idéias de Jacques Lacan.
4
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Jurisdição, Psicanálise e mundo neoliberal. In: Direito e Neoliberalismo – elementos para uma leitura interdisciplinar. Curitiba: EDIBEJ, 1996, p. 42.
141
Artigo 10
Isto porque Lacan, através de uma releitura dos textos de Freud, conjugada com os ensinos trazidos pela lingüística de Sausurre e Jakobson, trouxe para a Psicanálise o conceito de que
o inconsciente é estruturado como uma linguagem, por significantes e significados, articulados
diante do nó borromeu (àquele cujo qual dá-se longínquos passos atrás de seu significado), que
é a forma de entrelaçamento entre os campos do real, do imaginário e do simbólico. Todos os
discursos, para ele, podem ser organizados estruturalmente desta mesma forma e, com o Direito, não é diferente.
A diferença em relação ao campo do Direito é traduzida, para Lacan, no fato do discurso
do Direito ser, por excelência, um discurso que trata do gozo. No Seminário 20, intitulado “Mais,
ainda”, o autor, durante o texto, define o que é o Direito5:
“...eu não me achava deslocado por ter que falar numa faculdade de direito, pois é
onde a existência dos códigos torna manifesta a linguagem....
(...) e lembrarei ao jurista que, no fundo, o direito fala do que vou lhes falar – o
gozo.
(...)
Esclarecerei com uma palavra a relação do direito com o gozo. O usufruto (...). É
nisso mesmo que está a essência do direito – repartir, distribuir, retribuir, o que diz
respeito ao gozo.”
Ou seja, “O direito, com suas leis, representa uma forma de barrar ou enquadrar a tendência do homem a fazer do outro o objeto de suas pulsões destrutivas”6. O Direito é, assim, uma
forma de regulamentar socialmente o gozo7. A regulamentação pessoal do gozo viria do mito
de cada indivíduo, traduzido pelo nome-do-pai, transmitido para a criança por aquele que faz a
função de pai8. Quando a função é exercida satisfatoriamente, a criança é introduzida no mundo
da linguagem e da cultura.
A regulamentação social do gozo parte da idéia lacaniana de existência de um Outro
(grande outro), representativo de uma ordem simbólica estruturada pela linguagem e, por isso,
fundante de todos os significantes.
A leitura do Direito a partir da psicanálise, mormente pelo que se propõe como função de
regulamentação social do gozo difere – e muito – da leitura tradicional do Direito como sistema
normativo coercitivo advindo de uma autoridade estatal. É preciso, para dialogar com ambas as
áreas dar maior importância para os sujeitos envolvidos pelo Direito, destinatários das normas,
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. 2. ed., Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1985, p. 10-11.
6
QUINET, Antonio. O gozo, a lei e as versões do pai. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha; GROENINGA, Giselle Câmara. Direito de Família e Psicanálise – rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p. 56.
7
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: A bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 10: “ E o
Direito, na forma que se conhece, também procura estabelecer a ordem social, colocando limites às pulsões, na pretensão de
coibir o excesso de gozo em nome da Civilização. Busca barrar os impulsos, principalmente dos que não conseguem respeitá-los sem (a ameaça de) sanção”.
8
Por sinal, o fato da transmissão do nome-do-pai ser realizada por aquele que faz a função de pai, desvincula a paternidade
da biologia, corroborando com o conceito de paternidade afetiva, muito usado nos casos de guarda, alimentos e adoção no
Direito de Família.
5
142
DIREITO E PSICANÁLISE: DIÁLOGO NECESSÁRIO
ao invés de tratar como mais relevante o estudo da fundamentação delas e da autoridade estatal
de que são advindas.
Neste aspecto, leituras críticas do Direito se destacam e nelas os conceitos utilizados são
voltados para os seres humanos destinatários das normas jurídicas. Quem são eles? Como são
constituídos? Qual é a sua forma de organização social? Consegue um ser humano prescindir
de normas jurídicas e conviver em sociedade? A “desconstrução” dos conceitos tradicionais da
teoria do direito está, neste viés, posta pela teoria crítica e a utilização da psicanálise para sua
leitura tem apenas, e dentro dos limites expostos, a acrescentar.
Assim, necessário olhar para o Direito com um enfoque além do humanista. Relê-lo sob
uma perspectiva que dê o devido lugar não somente para o ser humano, mas para o sujeito também em seus aspectos psíquicos. Esta é a proposta daqueles que pretendem um diálogo entre o
Direito e a Psicanálise e procuram trazer novos saberes para ambos os discursos.
A importância de tal leitura torna-se evidente quando se passa a trabalhar com os problemas sociais de que se tem notícia na contemporaneidade, restando eles refletidos – todos! – no
Direito. Como síntese desses problemas, Charles Melman fala em mudança de economia psíquica, trazida pela exacerbação da cultura capitalista e pela perda de referência simbólica. Em suas
palavras9:
“Passamos de uma cultura fundada no recalque dos desejos e, portanto, cultura
da neurose, a uma outra que recomenda a livre expressão e promove a perversão.
Assim a ‘saúde mental’, hoje em dia, não se origina mais numa harmonia com o
Ideal, mas com um objeto de satisfação. (...) Há uma nova forma de pensar, de julgar, de comer, de transar, de se casar ou não, de viver a família, a pátria, os ideais,
de viver-se. (...) o céu está vazio, tanto de Deus quanto de ideologias, de promessas,
de referências, de prescrições, e que os indivíduos têm que se determinar por eles
mesmos, singular e coletivamente”.
Tal mudança é sentida pelo Direito, que procura uma forma de superação dos problemas.
Pois se a nova economia psíquica promove o “gozo a qualquer preço”, a realização das pulsões
através de um objeto materializado e não mais o recalque delas por ser portador de uma referência simbólica, promovendo a auto-determinação singular e coletiva dos indivíduos, como lidar
com o Direito que, como afirmado acima, tem a função de regulamentar socialmente o gozo?
Mas o reflexo desta crise ainda está para ser sentido pelos estudiosos do Direito e cabe aos
que trabalham com ele, ao menos, cogitar as soluções para melhor resolver os problemas criados
por conta destas mudanças. Observar, conhecer e estudar as crises apontadas já será um grande
avanço no que concerne com a “desconstrução” e reconstrução da teoria do Direito, restando
dúvidas, apenas, quanto ao futuro, quanto ao amanhã.
9
MELMAN, Charles. O homem sem gravidade – gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003, p. 15-16.
143
Artigo 10
Quanto ao futuro da psicanálise e dos domínios da cultura, da mídia e do direito, preconiza Jacques Derrida10:
“Não sei aonde tudo isso irá. Não saberia nem mesmo desenhar a silhueta do que
vai acontecer. Um processo complexo está evidentemente deflagrado, tanto no seio
do que se intitula comunidade, corporação ou instituição psicanalítica como nos
lugares denominados confins da psicanálise: a psiquiatria, os domínios da ‘terapia’
e, se é que existem, os domínios alheios à preocupação terapêutica, a cultura geral,
as mídias, o direito. Sobre essas fronteiras móveis, instáveis, porosas, afetando justamente a forma e a existência dessas próprias fronteiras, a mudança não cessará
de se acelerar.”
E, na seqüência, conclui em seu estilo “desconstrutivista”: “Para chegar aonde? Não sei.
É preciso saber, é preciso sabê-lo, mas é preciso também saber que sem algum não-saber, nada
acontece que mereça o nome de ‘acontecimento’”.
Referências
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Jurisdição, Psicanálise e mundo neoliberal. In: Direito
e Neoliberalismo – elementos para uma leitura interdisciplinar. Curitiba: EDIBEJ, 1996.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O estrangeiro do Juiz ou o Juiz é o Estrangeiro? In:
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Direito e psicanálise – interseções a partir de
“O Estrangeiro”de Albert Camus. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006.
DERRIDA, Jacques. Força de Lei – o fundamento místico da autoridade. (Tradução Leyla
Perrone-Moisés). São Paulo: Martins Fontes, 2007.
DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã...diálogo. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004.
FREUD, Sigmund. A negativa. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro, Imago, vol. XIX.
LACAN, Jacques. O Seminário livro 20, mais, ainda. 2. ed, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Subsídios para pensar a possibilidade de articular
direito e psicanálise. In: Direito e Neoliberalismo – elementos para uma leitura interdisciplinar.
Curitiba: EDIBEJ, 1996.
MELMAN, Charles. O homem sem gravidade – gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 2003,
NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdiciplinaridade. Tradução de Lúcia Pereira de Souza, 2. ed.,
São Paulo: TRIOM, 1999.
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei – uma abordagem a partir da leitura cruzada entre Direito e Psicanálise.
Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
QUINET, Antonio. O gozo, a lei e as versões do pai. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha; GROENINGA,
Giselle Câmara. Direito de Família e Psicanálise – rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: Imago,
2003.
ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a psicanálise? (Tradução de Vera Ribeiro) Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000.
10
DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. Op. Cit., p. 219.
144